Momento de dor.
Não há como negar.
Quando um personagem do tamanho dele parte, a dor nos toma.
Inescapável.
Perdê-lo significa a partida de um ser humano iluminado.
Porque capaz de sempre pelejar.
Cada momento de um jeito.
Nunca, no entanto, deixar de lutar.
Inescapável: fará falta.
A voz serena, lúcida, sábia, corajosa dele será ausência sentida.
Momento de dor.
Mas, inegável: também de celebração.
Bom, muito bom tenhamos sido contemporâneos de um político da dimensão de Pepe Mujica.
De Tupamaro à democracia
Sim, político.
De todos os modos, quis mudar o mundo.
Primeiro, pela luta armada.
Tupamaros, ele um dos dirigentes.
Influenciado pelo espírito daquele tempo, pela visão de que um grupo de homens e mulheres dotados de coragem e vontade podiam mudar o mundo e o país.
Não podiam, mas tentaram.
Ousadia nunca faltou a ele e seus companheiros.
Como aquela façanha de Pando, cidade situada a poucos quilômetros de Montevidéu: tomaram delegacia de polícia, quartel do Corpo de Bombeiros, Central Telefônica, vários bancos.
Era 8 de outubro de 1969.
Como tantas outras ousadas atividades armadas.
Em 1972, ele e tantos outros dirigentes serão presos.
Submetidos a condições carcerárias inimagináveis.
Mais de uma década numa solitária.
Sair de uma prisão como aquela guardando sanidade só a custa de ideais muito sólidos, como os dele e de vários de seus companheiros.
Situa-se então de outro modo na luta política.
Passava a pensar na institucionalidade.
Na democracia.
Numa democracia capaz de promover mudanças na vida do povo.
Fora-se o tempo da luta armada.
Frente Ampla.
Deputado, senador, ministro.
Presidente do Uruguai entre 2010 e 2015.
Novamente senador, em duas eleições, na de 2014 e 2019.
Ateu austero
Ateu, casado com Lucía Topolanski, também militante, ex-guerrilheira, e da vida política, deu exemplos de austeridade ao povo uruguaio.
Dos 230 mil pesos recebidos, algo como pouco mais de 22 mil reais, destinava quase 70% daquele valor ao partido, à Frente Ampla, e a um fundo para construção de moradias.
Na chácara dele, em Rincón del Cerro, zona rural de Montevidéu, cultivava flores e hortaliças.
Cultivava significa: sempre lidou ele próprio com a terra, gostava de fazer isso.
Mantinha-se com o restante do salário, coisa de 30 mil pesos, ajudado por Lucía.
Raro exemplo.
Quando assumiu a Presidência, bom não esquecer, sobretudo nossos inocentes liberais não devem ignorar, inspirava-se na experiência do socialismo do século 21, de Hugo Chávez, a quem considerava o governante mais generoso conhecido por ele. Não terá o mesmo apreço por Nicolás Maduro.
Educação, segurança, meio ambiente e energia, as prioridades anunciadas por ele quando chega à Presidência.
Um dos objetivos essenciais: a erradicação da miséria, redução da pobreza em 50%.
Afrontando o conservadorismo
Afrontou o conservadorismo, colocou-se ao lado das mulheres: descriminalização do aborto, lei aprovada em outubro de 2012.
Foi além: conseguiu aprovar a lei do matrimônio igualitário, em abril de 2013. Com ela, permite-se a adoção aos casais homoafetivos e que a ordem do sobrenome dos filhos seja decidida pelos pais.
O Uruguai, sob Mujica, tornou possível o ingresso de homossexuais nas Forças Armadas.
Seguiu adiante: legalização da maconha.
Já era possível cultivar e possuir maconha para consumo individual, como em outros países.
Agora, no entanto, o Estado passaria a controlar a produção, distribuição e venda.
Medida inédita.
A taxa de desemprego, durante o governo dele, caiu de 13% para 7%.
A pobreza, de 40% para 11%.
Salário mínimo, aumentado em 250%.
O guerrilheiro tupamaro conseguia, na democracia, na ousada democracia uruguaia, começar a mudar a vida do povo.
Nas condições materiais de existência.
Ele, no entanto, não se declarou satisfeito quando saiu da Presidência.
A maior dívida com o povo uruguaio era ainda não ter debelado inteiramente a pobreza.
_ Por que não mudei isso? Porque a realidade é teimosa.
E afirmando valores novos, próprios daquela ousada experiência democrática, liderada por ele.
O mundo mudara.
O guerrilheiro, também.
Não nos sonhos: continuavam os mesmos.
Sabia: o céu não era perto.
Tudo fruto de uma construção cotidiana, a depender da força acumulada pelo povo, e dos engenhos da política fundada na democracia, agora para ele um valor apreciado.
Singular visão de mundo
Com tempo, vai expressando uma visão de mundo, onde misturavam-se o saber vindo das tantas leituras, do marxismo, da literatura, com o conhecimento oriundo da própria experiência, tão rica pelo sofrimento e depois pela beleza da vida política, pelo mergulho no meio do povo.
Visão de mundo da política.
Como numa entrevista a Bob Fernandes, ao criticar as guerras.
A guerra devia ser contra a destruição do meio ambiente.
Devia ser contra o carbono.
Contra a desertificação.
Devia haver uma guerra para multiplicar as florestas.
Guerra para resolver os problemas da infraestrutura mundial.
E o mundo não faz nada disso para valer.
E vivemos, como ele diz, uma atmosfera de mais guerra, armamentismo, e isso numa era atômica.
Nenhuma potência vai aceitar foguete na fronteira, ele diz, provavelmente referindo-se à causa da guerra da Europa e Estados Unidos contra a Rússia.
Na entrevista, reafirma a mentalidade anticonsumista, a preservação da Amazônia, tudo voltado à tentativa de salvar o planeta e os seres humanos do processo destrutivo em andamento.
Defende, como Lula, a quem sempre admirou, uma política de unidade, de cooperação entre os países da América Latina e destaca a importância do Brasil nessa empreitada.
Mas não apenas uma visão de mundo da política estrito senso.
Ia além.
Desenvolve noções de bem viver.
Pobres são os que querem sempre mais
Insista-se: uma visão anticonsumista.
Já se disse: deu exemplo com a própria vida.
Bateu um recorde: o presidente mais pobre do mundo.
E não por cultivo à pobreza.
Por acreditar na vida simples.
Por acreditar poder viver com pouca coisa, o necessário.
Não aceitava esse título, no entanto, o de presidente mais pobre do mundo:
_ Dizem que sou um presidente pobre. Não, eu não sou um presidente pobre.
_ Pobres são os que querem sempre mais, que não se satisfazem com nada. Esses são pobres porque entram em uma corrida infinita. E não terão tempo suficiente na vida.
Um adversário do dinheiro.
Poderia dizer, com Marx, cuja obra conhecia bem: o dinheiro rebaixa todos os deuses do homem e transforma-os numa mercadoria.
Lamentavelmente, o dinheiro é o valor universal de todas as coisas.
O dinheiro é a essência do trabalho do homem, de sua existência. Essa essência, o dinheiro, domina-o, e ele o homem, debaixo do capital, passa a adorá-la.
É Marx.
Poderia ser Mujica.
É Mujica.
Ele investe contra o capitalismo.
Não de modo doutrinarista.
Não querendo afirmar teorias.
Conclamando as pessoas a viver.
A desfrutar da vida.
A não adorar o bezerro de ouro.
Aos jovens: não se rendam ao deus mercado
Se você é jovem, ele dirá, tem de saber de uma coisa: a vida se lhe escapa, vai embora minuto a minuto, e você não pode ir ao supermercado, ao shopping center, comprar a vida.
Então, ele conclama:
_ Lute por vivê-la!
_ Lute por dar conteúdo à vida!
_ A diferença entre a vida do ser humano e outras formas de vida é que você pode, até certo ponto, dar orientação a ela.
_ Você pode, em termos relativos, ser o autor do caminho de sua própria vida.
_ Não é como um vegetal que vive porque nasceu.
_ Pode dar um conteúdo à sua vida.
Ou, então, ele dirá, pode entregar a vida ao mercado, alienar a vida, orientá-la ao consumo desvairado. Tornar-se um ser preocupado em pagar cartões, endividando-se, entregando-se à lógica do dinheiro, aquele capaz, como diria Marx, como assinaria Mujica, de rebaixar todos os deuses do homem.
Esse recado ela dava aos jovens, sobretudo a eles.
Em quem confiava.
Por isso, deixou essa lição de vida.
Desenvolvimento a favor da felicidade humana
O desenvolvimento não pode ser contra a felicidade, ensina.
Tem de ser a favor da felicidade humana, do amor sobre a terra, das relações humanas, de cuidar dos filhos, de ter amigos – era esse o ensinamento singelo e profundo de Mujica.
Era nos jovens que confiava, também, quando disse, pouco antes de morrer, da necessidade de as lideranças mais velhas serem capazes de passar o bastão, depois de terem contribuído para a formação delas.
Lidar com a morte, com a finitude.
Ela chegou.
E ele dizia:
_ Ninguém gosta da morte, mas, a certa altura da vida, você sabe que um pouco antes ou um pouco depois, ela vai chegar. Por favor, não vivam com medo da morte. Aceite-a como os bichos do mato. O mundo vai continuar girando e nada vai acontecer. Não vai ficar com todo esse medo à toa. É preciso ser mais primitivo.
O mais civilizado, democrático, comunista dos primitivos partiu.
Bom seria fôssemos capazes de honrar o extraordinário legado dele.
Capazes de salvar a terra e a humanidade.
Tirar uma e outra das garras da mercadoria, do consumismo.
Criar sociedades fraternas e solidárias.
Capazes de não se assustar com um dirigente político dirigindo um velho fusca, vivendo numa casa simples.
_ Isso chama atenção do mundo? Então esse mundo está louco porque se surpreende com o normal.
Assim, Mujica.
Um homem comum.
De convicções profundas.
Tal e qual Gramsci se definia.
Mujica viveu a política de um modo distinto.
Fala dela com amor.
É bom saber de um homem assim: um ateu movido pelo amor às pessoas, amor ao povo, sem perder a noção da luta de classes.
Quem sabe, devêssemos guardar essas palavras dele, espécie de manifesto dos últimos tempos da existência, uma fala dele para a multidão, muito recente.
_ A vida está cheia de tropeços e fracassos. Pero es hermosa. Vivê-la ao máximo. Com generosidade. Quero o progresso material mas quero antes de mais nada o amor a la vida porque o crescimento econômico não pode ser uma finalidade. Tem que ser um meio.
_ O fundamental é como passam as pessoas pela vida. Se têm tempo para cultivar os afetos. E o que são os afetos? O amor explosivo quando são jovens. Sim, os filhos, a família. Os amigos. _ Quando você é velho, o amor é um doce costume, uma mansidão melancólica, um entretenimento, contando histórias vividas.
_ Por que, ao fim e ao cabo, que merda nós levávamos quando seguimos num caixão?
_ Por isso, companheiros, é muito longa, sinuosa e complexa a luta que temos pela frente. Mas que sentido tem a vida se nos quitan la esperança de sonhar com um mundo um pouco melhor?
_ Não duvide. Tivesse duas vidas, e eu as gastaria inteiras para ajudar suas lutas porque é a forma mais grandiosa de amar a vida que eu consegui encontrar.
Viva Pepe Mujica.
Eterno.