O ano de 1981 fora decisivo para a operação Tupamaros.
Quando ela se iniciou.
Ditadura, ainda.
Ninguém se engane.
E nem os Tupamaros, muito menos o PCBR, se enganavam.
Todo cuidado era pouco.
O ano de 1982, chegando.
Também decisivo.
A conjuntura brasileira pouco a pouco, mudando.
Já havia, desde meados dos anos 1970 e de modo especial a partir do final da década, uma movimentação acentuada da sociedade civil.
Envolvendo uma nova classe operária, sobretudo a partir do ABC paulista, as camadas médias, muitas organizações sociais, muito movimento popular.
E o PMDB crescia a olhos vistos.
Vinham eleições.
Naquele final de ano.
Momento político a pôr em xeque os partidos, de modo especial os partidos clandestinos.
Clandestinos, por imposição da realidade.
Tinham, todos, de responder se iriam se envolver com a institucionalidade ou não.
Em várias organizações clandestinas, havia resistência à institucionalidade.
Um ou outro partido, o PCB de modo especial, lutavam pela legalidade.
Partido estratégico
Havia os partidos a pretenderem um pé aqui, outro acolá.
Um olho no padre, outro na missa.
De modo especial, face ao surgimento do PT.
O partido surgira como um confortável guarda-chuva.
Parte da chamada esquerda revolucionária considerava não ser o PT um partido estratégico, como chamavam.
O PT uma solução tática, conjuntural.
Com o correr do tempo, viria então o partido estratégico, verdadeiramente revolucionário, e então adeus PT.
Eram ilusões.
O PCBR, penso, se situava nesse território.
Tais organizações não percebiam: o PT era uma realidade incontornável.
Fruto da movimentação do proletariado avançado, moderno, principalmente localizado no ABC paulista.
Dessa movimentação, surge uma liderança do porte, da densidade do Lula.
Melhor embarcar, pensaram as organizações clandestinas.
Ajudam a fundar o PT.
Assim, o PT foi fruto do sindicalismo, principalmente do ABC, das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, e da militância egressa da luta contra a ditadura, organizada em partidos clandestinos, pequenos fossem, mas articulados. Três atores nesse surgimento.
Militância das organizações vinculadas à luta armada, exceção portanto do PCB, cuja orientação não era a da luta armada, mas a da luta de massas, da luta democrática.
As organizações da esquerda armada, assim, não iam de mala e cuia para o PT.
Cuidar do estratégico, da perspectiva revolucionária, era papel do próprio PCBR.
Se pudesse, fosse possível, fazer o PT avançar no caminho da Revolução.
Não conseguissem, estavam no canto delas, levando à frente a perspectiva revolucionária.
O PCBR e várias outras forças agiam assim em relação ao PT.
Eleição burguesa
Fortalecer o PT, o grande guarda-chuva.
Mas ir construindo também o partido revolucionário.
Parece estranho, mas era essa a prática e o pensamento de várias das organizações clandestinas.
As forças revolucionárias de esquerda consideravam importante a janela aberta com a “eleição burguesa” – era esse o pensamento.
O PT também, na fase inicial, vai falar em “eleição burguesa”.
Ninguém nega: era e é eleição burguesa.
Sob a dominância do modo de produção capitalista.
Ontem e hoje.
O desafio seria como seguir a vida política, a luta por transformações, considerando o modo de produção capitalista e as instituições no interior dele.
O PT, embora nasça com uma perspectiva avessa ao autoritarismo estalinista, não aceitasse o chamado centralismo democrático, trazia, de nascença, uma visão ainda pouco afeita à democracia, posição modificada ao longo do tempo.
Ainda faltava ao partido cintura para o jogo democrático.
Para a disputa de hegemonia no interior da intensidade da vida democrática, sob a hegemonia do modo de produção capitalista.
A vida política vai levá-lo à compreensão da necessidade da disputa de hegemonia ainda sob o capitalismo, cuja vida não era e nem é curta, não obstante as seguidas crises.
A cintura era ainda mais dura nos partidos clandestinos.
Estavam no PT.
Mas, também pretendendo se construir à margem dele.
Dar certo, outra coisa.
Não dará.
O PT, pela grandeza, pela evolução dele, trará todas as organizações clandestinas para dentro.
E a dinâmica política descartará a dupla militância.
Batismo de fogo
Renato Afonso comenta a chegada de 1982, ano chave.
Era a primeira eleição do PT.
O PCBR se envolve.
Com todas as dificuldades.
Escassez de quadros, principalmente.
Resolveram: deviam tirar um ou outro militante para entrar na disputa eleitoral.
Compreendiam da seguinte maneira: luta eleitoral é parte da luta de classes, embora numa dimensão particular.
Entre os quadros destacados para a luta eleitoral, Benjamin Ferreira de Souza.
Este, antes, fora meu companheiro em Ação Popular, militante do movimento operário em 1970.
Preso na mesma ocasião que eu, segundo semestre daquele ano.
Agora, no PCBR.
Renato Afonso revela as dificuldades.
Nada era simples.
O PCBR vinha de uma dura luta contra a ditadura, numa perspectiva militarista.
De armas na mão.
Havia um ranço anti-institucional no partido, no registro de Renato Afonso.
Não sei se apenas um ranço.
Discussões difíceis.
Não havia no BR posição a defender uma política sobremaneira institucional.
Não havia.
Mas, o partido queria também participar, enfrentar eleições, não ficar fora do jogo institucional.
Havia, no entanto, quem defendesse, como afirma Renato Afonso, uma posição, cuja consequência desaguava na reprodução da ideia do voto nulo.
O partido participasse, tudo bem.
Mas apenas para constar.
De modo a não legitimar a eleição burguesa.
A posição majoritária, no entanto, não era esta.
_ Entendíamos, a maioria da organização entendia, e nós aqui da Bahia entendíamos isso de uma forma bastante clara, de modo unânime, ser a luta eleitoral, naquele momento, muito importante.
Mas, vamos nos entender: aquela luta cumpria, na visão de Renato Afonso, um papel fundamental no desgaste, no aprofundamento da crise da ditadura.
Não se tratava, assim, apenas de eleger, de colocar gente no Parlamento.
Era preciso entrar naquela brecha.
Aproveitar-se daquele momento, daquela conjuntura.
Elegesse alguém, melhor.
_ Mas principalmente aproveitar o momento para desgastar ainda mais um regime um envolvido num processo de definhamento.
Benjamin, candidato a deputado estadual.
Não, não se elegeu.
Na Bahia, não elegeu ninguém.
No Brasil, elegeu o primeiro prefeito, o ferramenteiro Gilson Menezes, na cidade de Diadema, no ABC paulista.
E oito deputados federais, doze estaduais e 117 vereadores Brasil afora.
Na Bahia, como se viu, ninguém.
PT teve candidato a governador, Edival Passos.
Quando secundarista, foi recrutado por mim para a Ação Popular, em 1970.
João Durval Carneiro, o candidato eleito, com mais de um milhão e seiscentos mil votos.
Apoiado por Antonio Carlos Magalhães, e só na disputa porque Clériston Andrade, o candidato in pectoris de ACM, morreu num acidente aéreo.
Roberto Santos, pelo PMDB, teve pouco mais de um milhão de votos.
Edival Passos, pouco mais de 25 mil votos.
O PT dava os primeiros e tímidos passos no Estado.
E bote tímidos nisso.
Renato Afonso, passado tanto tempo, ainda tem lembranças de um documento do partido onde se produz o que ele chama “eufemismo fantástico”.
Dizia: o PT, embora não tivesse conseguido eleger ninguém, teria se prefigurado como partido na consciência das massas.
_ Foi a saída que a gente encontrou para a derrota acachapante. Nós entramos naquela porra de eleição com total desconhecimento das regras do jogo. Entrou acreditando bastar falar a verdade. Fizéssemos isso, o povo entenderia, e pronto.
Doces ilusões.
Montevidéu
Os militantes tupamaros presentes no Brasil acompanhavam com muito interesse a conjuntura brasileira.
Recolhiam lições.
Diziam pretender conhecer a disputa feita pelo PT naquelas eleições para, quem sabe, reconstituí-la no Uruguai.
Mais tarde, constituirão a Frente Ampla, e esta renderá muitos frutos, inclusive a presidência da República, inclusive um tupamaro, Pepe Mujica, presidente.
Não era fácil ao BR combinar a continuidade daquela operação, já tão cara ao partido, bastante envolvido nela, com a disputa eleitoral daquele ano.
Por tudo.
Inclusive pelos custos.
Havia boas notícias sobre a operação, no entanto.
Júlio, o dirigente tupamaro na Bahia, informava: no Uruguai, o trabalho de reconstrução do partido avançava de modo bastante sólido.
Estava feliz com os resultados.
Por isso, a atenção deles com relação às eleições brasileiras, ainda maior.
Certamente, em pouco tempo disputariam eleições.
Os militantes tupamaros, ao passar pelo Brasil, o próprio Júlio, estavam entusiasmados ao ver a criação de um partido operário, encarnando um programa a sintetizar o conjunto das lutas sociais daquele período recente.
Agora, partir para Montevidéu.
Decidiram, Renato Afonso e Júlio, seguir para a capital uruguaia.
Júlio tinha informações sobre o avanço do processo de reimplantação de quadros no Uruguai, assim ele chamava. E acreditava já próximo da finalização da tarefa.
Melhor viajassem pela via terrestre, considerando a maior vigilância dos aeroportos. E por todas as razões, Renato Afonso devia seguir junto, especialmente pelo conhecimento das estradas brasileiras.
Os dois contaram, mais uma vez, com a ajuda prestimosa, e luxuosa, da Baker Tools. Pela interferência do irmão, Marco Antônio. No Rio de Janeiro, trocaram de carro.
Seguiram num carro com ar condicionado, um Galaxi, um luxo só. Imponente, o automóvel impunha respeito e tudo, raro naquela época no Brasil, cedido pela Baker Tools.
Cedido, modo de dizer. Sempre resultado das articulações de Marco Antônio, ele encontrava caminhos, argumentos para conseguir os carros para as tarefas revolucionárias conduzidas pelo PCBR.
A viagem muito tranquila até a chegada da fronteira uruguaia. Ao entrarem em território do país vizinho, a situação ficou bastante tensa. Receio de serem parados pela repressão uruguaia. Felizmente, tudo correu no melhor dos mundos. Não foram parados em nenhum momento.
Chegaram em Montevidéu de noitinha.
Até ali, Renato Afonso dirigiu.
Na capital uruguaia, passa o volante a Júlio.
Chegaram a uma rua cujas características pareciam localizar-se no centro da cidade.
Ali ficou hospedado.
Em casa de simpatizantes dos tupamaros.
Permaneceu uma semana nessa casa.
Júlio teria também uma semana para as reuniões com os militantes e dirigentes tupamaros.
Renato Afonso precisava voltar com o carro da Baker Tools.
Na simulação de trabalho com o automóvel, havia sido determinada a utilização de uma semana.
Férias e militância
Renato Afonso confessa: a semana passada em Montevidéu funcionou como agradáveis férias.
Aproveitou para conhecer os lugares mais próximos do “aparelho” – era um aparelho, não uma simples residência.
Andar, andar muito, andar por aí andei...
Quase um flâneur, o caminhante errante, tornado objeto de interesse acadêmico por Walter Benjamin, a partir de Baudelaire.
Saía a caminhar pelas redondezas, assim como quem nada quisesse, conhecendo tudo, caminhando e rememorando, numa técnica aprendida na vida clandestina, de orientação em lugares desconhecidos.
Sentiu-se acolhido pela cidade.
Abraçado por ela.
Olhava os cafés, desfrutava deles.
Demorava nas livrarias, folheava uns tantos livros.
Gostava de sentir o cheiro da cidade, a atmosfera um pouco antiga, meio velha de Montevidéu.
Antiga, velha, assim lhe parecia Montevidéu. Diz isso com carinho, zelo, não como qualquer lamento.
Até porque a cidade tinha semelhanças com Salvador, a Salvador dos anos 1960.
A velha Salvador.
Resto do tempo, Renato Afonso lia muito e conversava bastante com o casal do aparelho.
Simpáticos, os dois.
Revelavam tranquilidade e coragem. Mantinham muita serenidade diante de um quadro político ainda muito tenso.
Últimas orientações
Dois dias antes do prazo marcado para o retorno, Júlio aparece no aparelho.
Os planos não seriam mais os mesmos.
O balanço levado adiante pelos tupamaros não se completaria no tempo previsto para o retorno dos dois para o Brasil.
Júlio ficaria definitivamente em Montevidéu.
Renato Afonso voltaria sozinho.
Júlio, depois de várias reuniões com os companheiros dele, aqueles naquele momento dirigindo o partido no Uruguai, foi convencido: não havia mais necessidade de voltar ao Brasil.
Era uma nova situação.
Aos poucos, podia se movimentar.
Ditadura, ainda, como no Brasil.
E como no Brasil, terminará em 1985, depois de implantada em 1973, oficialmente.
Mas, aos poucos, os caminhos iam sendo abertos.
Na mesma noite dessa decisão, os dois têm uma longa reunião. Júlio passa a Renato Afonso todas as orientações a serem repassadas aos tupamaros ainda no Brasil, tarefa a ser cumprida por Marco Antônio, o irmão dele.
Isso porque era ele a manter contatos com os militantes chegados ao Rio de Janeiro, vindos do exterior. Os últimos tupamaros ainda passavam por lá, e então seguiam para Montevidéu.
De manhã, logo depois do café, Júlio e Renato Afonso desceram para a garagem do prédio, onde o luxuoso carro da Baker Tools ficara durante toda a semana.
O uruguaio ia mostrando a Afonso qual o percurso a ser feito para chegar à saída de Montevidéu, no dia seguinte. Na volta ao aparelho, uma despedida calorosa, um muito obrigado comovido ao casal, e um abraço forte no companheiro Júlio.
Ficou a lembrança dos tantos dias de convivência com Júlio, e aquela vez foi a última vez que o viu.
Saudade e admiração.
Dele, jamais se esqueceu.
Renato Afonso volta.
Sem muita pressa, e evitando qualquer contato com companheiros do PCBR nos estados do Sul.
Não cedeu a essa tentação. Gato escaldado tem medo de água fria. Tinha receio de deixar algum rastro pelo caminho, falar inadvertidamente alguma coisa. Melhor, então, seguir em frente. Ia devagar. Relaxado. Ando devagar porque já tive pressa.
Curioso: nessa volta, absolutamente despreocupado, Renato Afonso foi parado duas vezes pela polícia.
Não havia mais nenhuma razão para qualquer tensão. Foi até simpático com os policiais.
Trataram-no bem, imaginando-o um cidadão de bem, endinheirado. Ninguém andaria num carro daqueles sem uma conta bancária bem fornida.
Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que eu sei...
Passa as orientações recebidas dos tupamaros para Marco Antônio.
Soube: restavam no Rio de Janeiro apenas três militantes uruguaios, cujas partidas aconteceriam logo, de modo a se integrarem ao trabalho de reconstrução do partido. Passados dois meses, teve notícia mais tarde, viajaram.
Em Renato Afonso, a deliciosa sensação do dever cumprido.
Tinha de comemorar.
Não podia ser sozinho.
Comemorou com Regina Afonso e Natur de Assis Filho.
Afinal, ninguém é de ferro.
Entre várias doses de uísque, o fechamento de um ciclo.
Um ciclo histórico.
Ele ainda reflete sobre aquela operação, tão pouco conhecida.
E ao refletir, se surpreende: como, numa operação daquelas, sempre lembrando ser de parcos recursos financeiros, não tenha havido uma única queda, uma única prisão.
_ Nesse sentido, a operação foi um primor em matéria de cuidado, de segurança.
Juntaram-se as experiências das duas organizações, afeitas à luta clandestina.
A do PCBR e a dos Tupamaros.
Respeitaram-se rigorosamente as regras de segurança.
Renato Afonso, e todo o PCBR, muito feliz.
E os Tupamaros, também.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros