Em 2005, vinte anos atrás, Edgar Morin publicou um pequeno e precioso livro, intitulado Culture et barbarie européennes. Nele, o hoje centenário pensador buscava esclarecer, com perspicácia e sabedoria, a dialética, plena de contradições, que a Europa e o Ocidente desenvolveram e impuseram mundo afora. O empreendimento colonial da pretendida civilização daqueles povos considerados bárbaros, como os indígenas da América e os africanos, se fez recorrendo a procedimentos maculados de barbárie, como o genocídio dos povos originários americanos e a escravidão dos africanos negros. Apesar disso, bens e processos culturais se configuraram. Nessa dialética, civilização e barbárie teceram dominação e hegemonia, para lembrar as noções de Antonio Gramsci, eurocêntricas e ocidentais no mundo.
No livro, Edgar Morin desvela tal dialética de modo primoroso. Depois de observar que “existe então uma barbárie que toma forma e se desenvolve com a civilização”, ele afirma contundente: “A barbárie não é só um elemento que acompanha a civilização, senão que a integra. A civilização produz barbárie, em particular a barbárie da conquista e da dominação”. Infindáveis exemplos históricos podem ser acionados para demonstrar a tese enunciada. Os massacres dos povos originários em toda a América, empreendidos pelas mais diversas nações europeias; a escravidão dos negros africanos, que envolveu muitos países europeus, o desmantelamento cultural-espiritual de todas aquelas populações pela imposição religiosa-cultural do cristianismo, dentre outros, emergem como alguns dos infinitos exemplos que, se acionados, esgotariam todo texto, dada sua enormidade.
Recentemente, em 2025, Emmanuel Rodriguez retomou, em artigo, os enlaces existentes entre civilização e barbárie ao afirmar que as civilizações históricas se edificaram criando seus bárbaros para se contrapor a eles, buscando domesticá-los culturalmente ou mesmo exterminá-los. Michel de Montaigne, criador do ensaio e pensador renascentista, no distante século XVI, havia escrito que “...aqueles a quem se chama bárbaros são seres de uma civilização diferente da nossa” e que barbárie é aquilo que não entra nos costumes conhecidos e vivenciados.
O século XX, ao conectar desenvolvimento científico-tecnológico, engendrado pela chamada civilização, especialmente em sua configuração ocidental, com dispositivos de barbárie, colocou em cena um potencial de extermínio humano nunca imaginável. Campos de concentração e armas, inclusive atômicas, viabilizaram assassinatos e destruição em massa nos países centrais e nas periferias capitalistas. Morin, atento, observou que “os progressos extraordinários foram postos a serviço de projetos de eliminação tecno-científica de uma parte da humanidade”.
No século passado, a barbárie, expressa no exemplo do fascismo-nazismo, se engendrou no seio da civilização. Isto é, nos países que eram considerados entre os mais civilizados do mundo à época. Basta lembrar a Itália de Leonardo da Vinci, Michelangelo, Caravaggio, Tomás de Aquino, Dante Alighieri, Vivaldi, Maria Montessori, Galileo Galilei, Giordano Bruno, Maquiavel, Gramsci, Umberto Eco, dentre outros. Basta recordar a Alemanha de Goethe, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Weber, Adorno, Bach, Beethoven, Thomas Mann, Simmel, Norbert Elias, Brecht, dentre muitíssimos outros. Nada casual que Caetano Veloso tenha cantado na música Língua: “...está provado que só é possível filosofar em alemão”.
Nessa perspectiva, o século XX ao conjugar civilização e barbárie em complexa dialética de amplitudes gigantescas destruiu ilusões de quaisquer visões ingênuas de história, que pudessem imaginar uma evolução histórica, linear e inevitável, sempre partindo, em seu começo, da barbárie em direção à pretendida civilização, como sua meta de chegada. A interdição alcança, do mesmo modo, pressupor que barbárie e civilização constituíssem processos absolutamente contrários e distintos.
Os problemas de tal dialética não se restringiram às sociedades e seus povos, também a natureza se viu atingida. A barbárie no trato do planeta se fez sentir com o chamado e perseguido progresso, que, ao buscar dominar a natureza, submetendo-a em sua usura de acumulação e lucro cada vez maiores, produziu simultaneamente desastres ambientais, poluição, uso intensivo dos recursos naturais e crises climáticas, que hoje colocam em xeque a vida no e do planeta. O desenvolvimento científico-tecnológico não apenas fabricou barbáries nas sociedades, mas os engendrou de modo similar em seus enlaces com a natureza. O meio-ambiente padece as contradições da dialética civilização e barbárie e sofre a sanha do capitalismo predador.
Pensadores como Edgar Morin, Emmanuel Rodriguez e Walter Benjamin, que se suicidou ao fugir da barbárie nazista, chamam atenção para as complexas e imanentes articulações entre civilização e barbárie. Walter Benjamin, por exemplo, escreveu, em uma de suas famosas teses sobre a história, que não existe documento de cultura que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie. A bela formulação de Benjamin reacende os enlaces complexos da tessitura da cultura em sua dinâmica de criação e preservação. Todos esses e outros autores assinalam as contradições inerentes a tais dinâmicas.
Para além das ilusões e idealizações, que muitas vezes persistem e povoam as mentes dos ditos civilizados, contrapondo, sem mais e simploriamente, civilização e barbárie, cabe partir da premissa de que cultura e civilização se fazem e se desenvolvem por meio das contradições dessa dialética de alta complexidade. Resgatar tais pensadores pode servir para desvelar silenciamentos e expor contradições. Elas implicam no reconhecimento de que, apesar das ambiguidades e tensões oriundos da conjugação contraditória entre civilização e barbárie, procedimentos culturais e civilizatórios conseguem se instalar e se desenvolver, mesmo imersos em tais contradições.
A Europa das conquistas coloniais em todo mundo, com todas as suas brutalidades e mazelas, entre genocídios e escravidões, assassinatos e saques, foi capaz de criar e desenvolver culturas, por vezes colonizadoras, elitistas e excludentes, outras vezes democráticas e dialógicas, além de conformar valores civilizatórios. Artes, patrimônios, ciências, humanidades, linguagens, tecnologias, conhecimentos, filosofias, pensamentos e, enfim, culturas em seu sentido mais amplo, brotaram e se tornaram alicerces do mundo em que se vive hoje. Eles transformaram o humano, os modos de vida, as concepções de mundo e formataram valores, que, apesar das ambiguidades e tensões, dão sentido à humanidade. Toda a barbárie ensejada não impediu que a civilização se desenvolvesse, tão somente confirmou o contraditório processo, que associou historicamente civilização e barbárie.
O lema da revolução francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – pode ser lembrado com um exemplo emblemático, ainda que sua realização desde a origem e até hoje se dê imersa em ambiguidades e demandem enfrentamentos. Alejo Carpentier, por exemplo, em O século das Luzes, romanceia com primor as idas e vindas da Revolução Francesa no Caribe. A igualdade dos cidadãos preconizada pelos ideais da revolução encontra barreiras nos interesses envoltos na discriminação racial. A escravidão serve de bom parâmetro para as oscilações e limitações revolucionárias do século das luzes, inclusive em terras americanas.
A configuração moderna da democracia e da cidadania, na sintética formulação de direito a ter direitos, aparece como outro exemplo eloquente, também ele pleno de ambiguidades. Sua concretização demanda muito esforço e suor, tais como a longa luta empreendida por explorados e oprimidos para que o ato de votar e ser votado não ficasse restrito apenas às classes dominantes, como ocorreu em seu início, e fosse estendido a todos, independente de sua condição financeira, gênero, etnia etc. A cidadania moderna, reivindicada no princípio de que todos os homens são cidadãos, exigiu e exige muitas lutas para que possa minimamente se tornar realidade na desigual sociedade capitalista, que solapa direitos, em especial em sua etapa neoliberal.
Os valores humanos formulados necessitam intensos embates para sua implementação e para que todas as pessoas sejam contempladas, não apenas as ditas civilizadas. Ainda que sofrendo grandes dificuldades e imersos em imbricados limites, estes e, por certo, outros valores têm relevante contribuição para qualificar e melhorar a vida na sociedade humana. Eles configuram a feição de civilidade resultante da dialética barbárie-civilização. Ela produz, em seu movimento envolto em contradições, de modo imbricado, processos civilizatórios e bárbaros, conforme reitera insistentemente o texto.
Gaza representa hoje em dia um desafio crucial para a capacidade de manutenção dessa complicada dinâmica. Os quase cem mil assassinatos de civis, mulheres e crianças; as centenas de milhares de desaparecidos e mutilados, física e mentalmente; a deliberada destruição em massa de habitações, hospitais, escolas, universidades, lugares religiosos, e outras infraestruturas básicas; o deslocamento forçado da população em um vai e volta sem fim e sem piedade; a imposição de condições de vida sub-humanas; o controle e a falta continuada de água, inclusive para beber; a utilização da fome como arma de guerra; as violências cotidianas e muitíssimos outros absurdos instalam uma situação de aceitação inadmissível por quaisquer éticas humanitárias.
Impossível ser cumplice do genocídio perpetrado e da barbárie praticada. Em Gaza, o genocídio das vidas humanas está vinculado umbilicalmente ao genocídio dos valores humanos. A decadência política e moral dos agressores e seus cúmplices se torna nítida e evidente. Em Gaza, a dialética, eivada de contradições, que conjuga civilização-barbárie se rompe. Apesar de suas densas e enigmáticas contradições, tal dialética existia e insistia em tecer produtos em diferentes horizontes, por vezes por demais ambíguos e tensos. Em Gaza já não existe nenhuma fagulha de civilidade e civilização, só o horror do massacre produzido pelo sionismo, com o apoio decisivo e orquestrado das potências ocidentais e europeias. Elas jogam no lixo da história todo o complexo, difícil, longo, problemático, mas também admirável processo, que, navegando em meio a tantas ambiguidades e contradições, foi capaz de fazer florescer ideais e valores, alguns deles caros à civilidade e a humanidade. Em Gaza se assassinam cotidianamente vidas e valores humanos.