Há algo de podre em um reino em que a voz do sangue clama desde a terra!
Fui buscar a Lia, que pernoitou na casa de sua amiga nº 1. Ela, entristecida, contou que tinha se desentendido com a amiguinha. Eu disse que era normal que crianças que se gostavam, depois de meia hora, enjoassem uma da outra e brigassem. E completei, não só crianças, era mesmo comum que adultos que se gostavam brigassem também. Aí a Lia, que estava então com três anos de idade, falou que tinha adultos que brigavam até com desconhecidos.
“Como assim?” – perguntei. Ela contou que tinha visto adultos abrindo a janela do carro que estavam dirigindo e ficar gritando com pessoas que nem conheciam, xingar a mãe delas – e acrescentou, “não é bonito xingar nem os conhecidos, nem os desconhecidos”. Nossa! – disse eu admirado – onde foi que você aprendeu isso? – esperando que ela fosse dizer que foi comigo. Mas, para a minha decepção, ela falou que foi com o professor da escolinha dela.
Quando eu era moleque, havia uma escala cromática bem diversificada entre meninos, de pacíficos a muito agressivos, sendo que os extremos eram muito pouco representativos. Minha referência familiar de masculinidade incluía um pai agressivo e um avô materno muito pacífico e afetivo, a começar pelo nome, Amado. Este avô eu só conheci através de minha mãe, porque ele partiu antes de eu nascer – mas os olhos dele, estampados nas fotos, confirmam a herança que recebi.
Embora fossem numericamente pouco expressivos, os meninos muito agressivos davam o tom do comportamento que então se esperava de um macho. Um dia, quando eu tinha aproximadamente onze anos de idade, um desses machos, pouco mais velho do que eu, passando por mim, gratuitamente, me xingou, por mero exercício de poder. Não respondi, continuei andando, mas me senti agredido e humilhado. Pensei com os meus botões, “eu bem que poderia ser destemido como ele”. E se trocássemos de lugar? Eu sendo ele e ele sendo eu? Não, não, eu não iria ter coragem de agredir outra pessoa gratuitamente, seria uma atitude muito vil, muito covarde. Então continuei andando, pensando, tudo bem, estou contente com a minha postura pacífica, muito mais confortável do que a postura covarde do valentão (hoje ouso sustentar a utopia de um mundo sem algozes e sem vítimas).
Por acaso, alguns anos depois, durante a Batalha da Maria Antônia de 1968, vi este mesmo rapaz chegando na companhia de um militante estudantil de esquerda. Quando ele se deu conta do perigo, caiu fora, e eu pensei, “agora que a gente precisava da valentia dele aqui, ele saiu de fininho...” E assim caminha a humanidade.
Uma amiga comentou que nunca sabia quando eu estava falando sério e quando eu estava brincando, ao que respondi, nem eu. Rio, logo existo! De qualquer forma, acho que passo um ar de quem fala sério porque as pessoas acreditam em mim, mesmo quando estou falando absurdos. Talvez seja porque eu não altere o meu tom entre o papo cabeça e a ironia. As pessoas costumam ficar intrigadas porque o Krenak consegue rir enquanto fala de catástrofes e assuntos macabros. Ao que ele responde que, na maratona da vida, que ele chama de dança cósmica, a alegria é a prova dos nove.
As moscas venceram
Para os cristãos, Jesus brilha sim, mas é no paraíso celeste; quem brilha na terra é Lúcifer. Sob a ótica ocidental, a animosidade se faz presente, desde Caim, Abel, Uranus, Cronus e Zeus, e atravessa relações familiares, amigos, a sociedade, religiões, culturas e etnias distintas. Estados homicidas e “guerras santas”, desde sempre, acompanham a humanidade.
Após o Renascimento e a expulsão dos mouros, a Europa foi palco de guerras sanguinárias entre católicos e protestantes, tudo em nome de Cristo, que nos ensinou se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra (Mateus 5:39). Seguiram-se as guerras napoleônicas em defesa dos direitos humanos, a primeira e a segunda guerras mundiais. Na Primeira Guerra Mundial, os Impérios Centrais, embora estacionados em territórios dos Aliados, renderam-se por conta da gripe espanhola. Em desforra, o Terceiro Reich bombardeou os habitantes e as cidades dos Aliados na insana Segunda Guerra Mundial. Depois foi a vez dos Aliados bombardearem o Terceiro Reich. A maior parte dos soldados sacrificados nos fronts de batalha eram meros adolescentes.
Curzio Malaparte reportou a Segunda Guerra Mundial alternando palácios europeus, frentes de batalha e cárceres. Estava em Nápoles quando os Aliados bombardearam a cidade; quando depois foi o Exército Nazista que bombardeou Nápoles ocupada pelos Aliados; e quando o Vesúvio resolveu erupcionar em 18 de março de 1944. Malaparte, em Kaputt, descreve um diálogo em que fica reclamando da quantidade de moscas em Nápoles e insiste em perguntar, para um senhor num bar, por que não combatem as moscas em Nápoles, como fizeram Roma e Milão. O senhor, amolestado, enfim responde, “nós também fizemos guerra às moscas, mas foram as moscas que venceram”.
A Segunda Guerra Mundial deu início à chamada Guerra Fria, que hoje deixa saudades... Os Estados Unidos e a União Soviética dividiam o globo, gerenciavam militarmente as suas respectivas “zonas de influência”, mas conseguiam manter um relativo equilíbrio de forças a nível internacional. O que estamos assistindo hoje, em meio à crise de hegemonia de um mundo globalizado e em plena era cibernética, ultrapassa em muito o conceito de barbárie. Enquanto Israel está efetivamente exterminando e expulsando o povo palestino, os governos e instituições no Ocidente criminalizam as manifestações pró-Palestina e continuam considerando racismo e antissemitismo pedir o fim do Estado Homicida da vez. Outro dia passei pela Avenida Paulista em São Paulo e vi a pichação “Israel mata bebês”. The Guardian, Common Dreams e Outras Palavras estão empenhados em divulgar a indigesta carnificina dos palestinos em câmera lenta.
O monopólio da violência
O monopólio da violência refere-se ao direito exclusivo do Estado de usar ou autorizar o uso da força física. O Estado seria a única entidade que pode usar a violência de forma legítima, enquanto a violência de outros atores é considerada ilegal.
Nos marcos da Guerra Fria, em 1964, os militares tomaram o poder no Brasil, zona de influência norte-americana, por meio de um golpe de estado e assumiram ilegalmente o monopólio da violência. Eu que me empenhei para restaurar a democracia no país, fui preso, torturado e vi companheiros mortos pelo estado de exceção que tomou conta da nação por 21 longos anos.
Em 2018, o Brasil elegeu um presidente que fazia apologia ao Estado Homicida, à ditadura sanguinária de 1964 a 1985, sempre em nome de Cristo – Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem (Lucas 23:34). E tudo isso tem história... quando invadiram as Américas, os europeus, por direito de conquista, assumiram o poder e o monopólio da violência contra os povos indígenas que habitavam o continente. Entre os séculos XVI e XIX, os imigrantes compulsórios da África foram submetidos à violência física e o direito sobre suas vidas foi legitimado pelo Estado Homicida.
A escravidão foi formalmente abolida em 1888, mas a violência física e moral continua atingindo a população brasileira afrodescendente até os nossos dias. O Estado, a serviço das elites, arraigadas à cultura do privilégio, subjuga as camadas populares, consideradas incultas, rudes, marginais e vagabundas, como se não fosse obrigação sua assegurar o direito do povo à educação, habitação etc. E, a partir do monopólio da violência, o Estado, através de seu braço armado, investe contra a população, que deve ser reprimida de reivindicar os seus direitos, porque a sua manifestação é considerada ilegal. O blindado não me enxergou não mãe com a roupa de escola?
Para os budistas, a vida é um aprendizado, a evolução em busca do desapego. Bons pensamentos, boas palavras, boas ações. Sou budista, mas também agnóstico, não nego nem afirmo a existência de Deus, vida após a morte etc. – simplesmente, “não sei” (ou não nos é dado saber). Além de budista e agnóstico, também me considero ecumênico, vejo em todas as crenças e religiões uma forma de buscar transcender comportamentos mundanos, mesquinhos e sanguinários: Tu és pó e ao pó hás de retornar (Gênesis 3:19); Desate seus nós (Tao Te Ching 56); Embainha a tua espada (Mateus 26:52); Trago muito amor pela vida e sede de justiça (Xangô)...
Os religiosos temem mais aos agnósticos e ateus do que aos praticantes de outras religiões, porque acreditam que só a crença em algum Deus e em recompensas póstumas por virtudes praticadas deste lado do paraíso pode levar as pessoas a não cometer pecados, como se não acreditar em Deus e na vida após a morte fosse um passe livre para a libertinagem e a depravação. Contudo, há ateus que, embora insistam em negar a existência de Deus, amam ao próximo, são corretos, íntegros e têm apreço pela justiça e por uma prática ética. Por outro lado, também há religiosos, inclusive sacerdotes, que, apesar de se declararem crentes a Deus, hipocritamente incidem em comportamentos pouco éticos e até criminosos, muitas vezes acobertados para proteger as instituições religiosas.
Samuel Kilsztajn é professor titular em economia política da PUC-SP. Autor, entre outros livros, de 1968, sonhos e pesadelos.