Fundado em 1985, com a passagem controlada da ditadura para uma democracia limitada, em mais uma transição pelo alto na história brasileira, o Ministério da Cultura faz seus 40 anos, com pronunciamentos, textos e eventos, que registram sua trajetória. Tentei não conhecer seus conteúdos, pois pretendo, com liberdade, esboçar um breve balanço, nem apologético, nem devastador, apenas crítico, como deve ser, reconhecendo avanços e retrocessos presentes no itinerário do ministério. Não cabem no texto o afã neoliberal contra a institucionalidade estatal ou a mera mistificação comemorativa do estado.
Antes de traçar o balanço, é necessário assinalar o papel fundamental da existência de institucionalidade como condição sine qua non para que o Estado possa desenvolver de modo consistente as apropriadas políticas públicas em quaisquer áreas da sociedade, inclusive na cultura. Sem institucionalidade adequada inexiste a possibilidade de planejamento, formulação, execução, desenvolvimento e avaliação satisfatórias das políticas públicas para servir à sociedade. Em suma, o texto assume como pressuposto a importância das instituições para a efetividade da democracia e das políticas públicas, inclusive culturais.
A rigor, os 40 anos não são 40, pois em dois momentos governos neoliberais, de direita ou de extrema direita, extinguiram o ministério, como ocorreu na gestão Fernando Collor, durante aproximadamente dois anos, e no período Messias Bolsonaro, por quatro anos. Cabe lembrar, que também Michel Temer, com sua gestão golpista de direita, tentou, em 2016, extinguir o Ministério da Cultura, sem conseguir seu intento. Assim, os 40 anos são, em verdade, por volta de 34 anos de vida efetiva.
O ministério já nasceu, em 1985, sob o signo da polêmica. A luta contra a ditadura, envolvendo setores significativos do campo cultural, e os secretários estaduais de cultura, diversos deles de governos subnacionais contrários ao regime autoritário, pressionaram Tancredo Neves para criar o ministério, mas existiam setores que acreditavam não haver condições propícias para a fundação naquele instante. Ministério criado, José Aparecido de Oliveira, incentivador da inauguração e escolhido ministro, logo deixou o ministério para ser governador de Brasília, entre 1985 e 1988, e após o período voltou a ser ministro. Aliás, em seu começo, o Ministério da Cultura sofreu grande instabilidade, seja por conta de sua extinção na gestão Fernando Collor e sua recriação no governo Itamar Franco, seja pelos 11 dirigentes nacionais, que passaram pelo ministério ou secretaria nos nove anos das gestões de José Sarney, Fernando Collor e Itamar Franco. Com José Sarney foram ministros: José Aparecido, Aloísio Pimenta, Celso Furtado, Hugo Napoleão e José Aparecido. Com Fernando Collor foram secretários nacionais de cultura: Ipojuca Pontes e Sérgio Paulo Rouanet. Com Itamar Franco estiveram como ministros: Antonio Houaiss, Jerônimo Moscardo e Luiz Roberto Nascimento Silva.
Por mais notáveis que fossem os escolhidos e nem sempre foi o caso, a permanência média de menos de um ano à frente da instituição não permitiu o desenvolvimento e a consolidação de um ministério, ainda em processo de implantação, concorrendo com poderosas instituições culturais nacionais já pré-existentes, a exemplo do Instituto Nacional de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e da Fundação Nacional das Artes (Funarte). Nem mesmo intelectuais brilhantes, da estatura de Celso Furtado, conseguiram driblar circunstâncias e temporalidades adversas, ocasionadas por gestões nacionais erráticas. Celso Furtado viabilizou a lei Sarney, que marcou a inauguração das leis de incentivo como problemática dominante no financiamento à cultura no Brasil. Ele também foi ofuscado pela censura do filme de Jean-Luc Godard, Je Vous Salue, Marie, em 1966, quando era ministro da cultura.
Após as instabilidades iniciais, vieram oito anos de estabilidade institucional com o ministro Francisco Weffort na gestão Fernando Henrique Cardoso. A estabilidade, no entanto, não significou uma superação das dificuldades do ministério. Francisco Weffort colocou como centro de sua atuação destravar as dificuldades operacionais da Lei Rouanet, nem que para isso estendesse a isenção de 100% para grande parte das áreas da cultura, fazendo com que cada vez menos o recurso mobilizado pela lei fosse oriundo das empresas, como deveria ser o objetivo da lei. A distorção conjugou a reiterada afirmação que “a cultura é um bom negócio” e a negação de desenvolver políticas públicas de cultura. Em lugar do Estado, o mercado passou a deter o papel de orientador da cultura.
Poucas iniciativas fugiram do predomínio das leis de incentivo. Dentre elas, cabe destacar: a busca de dotar todos os municípios de bibliotecas, meta não alcançada; o programa Monumenta, voltado ao patrimônio material, mas realizado à margem do Iphan e a criação, em 2000, do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Assim, a estabilidade não contribui para a consolidação do ministério, nem para tecer políticas culturais em momentos democráticos, dado que na tradição nacional muitas das políticas se originaram em regimes autoritários, como o Estado Novo e a ditadura civil-militar.
A gestão Gilberto Gil, nos primeiros governos Lula, emergiu como a grande reviravolta do ministério. Ela enfrentou as três tristes tradições das políticas culturais no Brasil – ausências, autoritarismos e instabilidades – colocando no centro de sua atuação a criação efetiva de políticas públicas de cultura; a democratização da gestão cultural; a ampliação da participação social na cultura, com a implantação de conferências, conselhos e colegiados; o desenvolvimento de estruturas institucionais como o Plano Nacional de Cultura (PNC) e o Sistema Nacional de Cultura (SNC) e a adoção do conceito ampliado de cultura, abrindo o ministério para uma interlocução mais larga com a sociedade e com setores culturais, antes excluídos da interação político-cultural com o estado brasileiro. O programa Cultura Viva, dentre outros, aparece como emblemático nessa perspectiva. Ele abriu o ministério para o diálogo com segmentos culturais nunca antes acolhidos pela gestão pública nacional. O Ministério da Cultura deixou de se voltar apenas para os artistas e o pessoal de patrimônio, seus públicos tradicionais, e se abriu para a sociedade brasileira, para novos agentes e comunidades culturais. Programas como: Brasil Plural, Revelando Brasis, DOC-TV, Mais cultura nas escolas, Mais cultura nas universidades, dentre diversos outros, democratizaram social e culturalmente o ministério. Em síntese, a gestão Gilberto Gil refundou o ministério em novas bases sociais, políticas e culturais.
O projeto, continuado na gestão Juca Ferreira, foi aos poucos se deprimindo no governo Dilma Rousseff, com Ana de Hollanda e Marta Suplicy. O impacto inicial da refundação não se manteve por conta do retorno de instabilidades, com as mudanças de ministras, de secretários executivos e de responsáveis por secretárias e órgãos, como também por incompreensões acerca da profundidade das mudanças em andamento, como ocorreu dentre outros, com o programa Cultura Viva. Ainda que diversas políticas anteriores se mantivessem, elas perderam ímpeto e tiveram seu patamar rebaixado. O novo ministério sobreviveu, mas sem energia vital por mudanças. O retorno de Juca Ferreira no segundo governo Dilma Rousseff transcorreu em meio à preparação do golpe de 2016, que buscou inviabilizar o governo e paralisou a administração pública federal, inclusive o ministério.
O golpe e as gestões Michel Temer e Messias Bolsonaro trouxeram profundos retrocessos para a cultura. Políticas públicas foram abandonadas; o PNC e o SNC esquecidos; os mecanismos de participação político-cultural abandonados, quando não perseguidos; as instituições vinculadas ao ministério passaram a ser destruídas por dentro, como ocorreu na Fundação Cultural Palmares (FCP), na Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), na Funarte, no Iphan, no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e na Agência Nacional de Cinema (Ancine); o próprio ministério, ameaçado de extinção na gestão Michel Temer, só resistiu por meio da mobilização do campo cultural, mas foi extinto na gestão Messias Bolsonaro. A guerra cultural bolsonarista gerou alto poder de ataque, censura, destruição e perseguição, mas não conseguiu instalar no país uma cultura oficial autoritária.
Cabe registar que, na gestão da extrema-direita, o campo cultural conseguiu três vitórias improváveis, com a conquista, por meio do Congresso Nacional, fortemente conservador, de três leis marcantes para a cultura brasileira: a Aldir Blanc I, a Paulo Gustavo e a Aldir Blanc II, sendo duas delas temporárias e a última com prazo de cinco anos de vigência, traduzida depois como Política Nacional Aldir Blanc (PNAD). As leis foram construídas em uma perspectiva federalista, ainda que em um federalismo capenga, pois era essencial usar o orçamento nacional, mas protegê-lo da ingerência nociva do bolsonarismo. Ainda assim, elas se tornaram marcos do financiamento à cultura no país, por propiciar os maiores orçamentos já destinados ao campo; por chegarem aos estados, Distrito Federal e municípios e por colocarem em cena e viabilizarem o SNC.
O terceiro governo Lula, instalado em 2023, recriou o Ministério da Cultura, tendo em sua direção Margareth Menezes. De imediato, ela enfrentou um enorme desafio: reconstruir o ministério degradado em todos os registros: infraestrutura, recursos, pessoal, rotinas, ânimo etc. Logo, a institucionalidade deteriorada precisou lidar com o complexo processo de regulamentação das leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc II; conduzir suas implementações por todo país; estimular a adesão dos diferentes entes federativos, e acompanhar seus funcionamentos no território nacional, além de reconstruir políticas culturais anteriores e desenvolver novos programas, a exemplo dos comitês de cultura, prometidos pelo candidato Lula para serem instalados Brasil afora. O empenho da gestão Margareth Menezes em tratar os desafios tem sido elogiável. Os índices de adesão dos entes federativos à lei Paulo Gustavo e à PNAB, por exemplo, foram notáveis, com amplas participações. Não cabe neste texto fazer uma avaliação da gestão em curso. Seus desafios têm sido gigantescos.
O novo cenário político-cultural, nacional e internacional trouxe para a agenda demandas de temáticas já existentes e novas. As diversidades e identidades sociais e culturais, tão perseguidas na gestão Messias Bolsonaro, ganharam ainda mais relevância em suas conexões vitais com a democracia, abalada pelas constantes tentativas de golpes, como a acontecida em 08 de janeiro de 2023. Os enlaces entre diversidade e democracia emergem como vitais para a transformação da sociedade em uma perspectiva emancipatória. Entretanto, tais entrelaçamentos não podem desconhecer riscos de diversidades e de identidades imaginadas como autossuficientes, que interditam diálogos interculturais e bloqueiam atitudes e comportamentos democráticos. O desafio das articulações entre democracias e diversidades marca o cenário contemporâneo no Brasil e no mundo. As culturas identitárias aparecem como fundamentais para configurar as democracias atuais.
O federalismo foi colocado em cena pelas leis de cultura conquistadas, ainda que de maneira capenga, pois, como assinalado, foi necessário excluir a União de quaisquer interferências político-culturais além da destinação do recurso orçamentário, devido a sua postura contra a cultura. Mas, mesmo capenga, o federalismo viabilizou a possibilidade de alavancar o SNC, como nunca, dado que fez chegar aos entes federados recursos, como pretendia a conformação do sistema. Para consolidar o SNC, meta prioritária no atual contexto, é preciso restabelecer o federalismo cultural pleno e assumir a territorialização das políticas culturais como condição vital para o SNC. Sem ela e sem o reconhecimento que território é cultura, dado que possui imanente uma dimensão cultural, o federalismo cultural não adquire uma atitude vigorosa. O Brasil hoje não pode perder a oportunidade ímpar de consolidar o SNC. Tal meta aparece como uma das mais vitais para a cultura brasileira.