O diálogo com Renato Afonso de Carvalho tem sido muito rico.
Eu o descubro a cada momento.
Ele nunca foi de falar muito.
Talvez os muitos anos de clandestinidade o tenham levado a isso.
O uso do cachimbo faz a boca torta.
Na prisão, na nossa convivência, ele se fechava.
Trancado.
O relaxamento talvez viesse do futebol.
Nós tínhamos um time de futebol, e ele era dos nossos craques, craque mesmo.
Não tivesse se dedicado à militância revolucionária, poderia ter feito carreira futebolística, quisesse, creio já ter dito isso ao longo dessa série.
Descubro-o nas discussões estabelecidas em torno da jornada contra a ditadura, especialmente quanto à trajetória de Theodomiro, a envolver a fuga, exílio, o período anterior à volta dele, a ajuda aos Tupamaros para se reorganizarem.
Vamos trocando ideias, confirmando posições comuns, e outras nem tanto.
Carta invisível
Antes de seguir adiante, antes de começar a narrativa sobre a trajetória de Theodomiro depois da volta ao Brasil, retomo discussão posta por ele em torno da experiência com a reconstrução dos Tupamaros, discutida no capítulo anterior.
Lembrou-se de um detalhe não revelado.
O último contato feito com os Tupamaros foi realizado foi feito por um sistema de caixa postal, utilizado pelo PCBR.
Essa caixa postal ficava no Rio de Janeiro, a cargo do irmão, Marco Antônio.
Era um meio seguro de comunicação.
Havia mecanismos, próprios de um período sombrio, de ditadura.
O material chegava e era enviado pelo mecanismo da escrita invisível.
Você escrevia e sobre o escrito era derramada uma substância química, cujo efeito era o de fazer desaparecer o texto, só revelado após a aplicação de outra substância.
Isso reforçava a segurança.
A ditadura provavelmente conhecia tal artimanha, mas nem sempre se dava conta dela.
Tal procedimento foi usado durante muito tempo pelo PCBR, e foi utilizado também no processo de reconstrução dos Tupamaros.
Antes mesmo da Operação Tupamaros, o PCBR havia se valido desse expediente.
O contato do partido com o exterior era realizado assim, através da escrita invisível.
Por tal mecanismo, o PCBR recebeu uma última carta formal dos Tupamaros, um agradecimento por toda a ajuda, solidariedade prestada pelos revolucionários brasileiros à reconstrução da organização uruguaia.
Renato Afonso, então um dos primeiros e mais importantes dirigentes do PCBR, esclarece: aquela operação, tão importante, se inscrevia numa perspectiva bem mais ampla.
Tratava-se do fortalecimento do campo da esquerda na América Latina.
E do combate às ditaduras em todo o continente.
O interesse na reconstrução dos Tupamaros era parte dessa visão, voltado a essa prática revolucionária.
Na carta, os Tupamaros agradecem a solidariedade internacionalista do PCBR, reconhecem a convergência de objetivos, deixam fixado isso historicamente, como se fosse um documento, e de alguma forma era.
Baú ainda clandestino
O documento, ou carta, chegou uns seis meses após a conclusão da Operação Tupamaros. O PCBR já vivia o intenso processo eleitoral do ano de 1982, em outra perspectiva, outras prioridades.
Na carta, faziam uma atualização sobre a situação política no Uruguai, Tupamaros se reorganizando, retomando a vida política, ensaiando o retorno à institucionalidade, a acontecer mais tarde, com o fim da ditadura.
Renato Afonso fala dessa carta sem ter tido acesso a ela.
De ouvir falar.
Quem teve acesso a ela, de fato, foi o irmão, Marco Antônio.
Este, teve o trabalho de decodificar a carta, e entregá-la ao Comitê Central, e ela terminou nas mãos de Bruno Maranhão, principal dirigente do partido.
Renato Afonso não se preocupou em conhecê-la no detalhe, em tê-la à mão. Estava profundamente envolvido no debate interno do PT a respeito da tática eleitoral do ano de 1982, se o partido devia ou não defender a Assembleia Nacional Constituinte. O PCBR era contra colocar a Constituinte como centro tático.
Um período intenso, difícil, e rico, na opinião dele. E isso impediu tivesse ele conhecimento da carta dos Tupamaros.
Chega a tentar me animar. A dizer da tentativa de tentar encontrar a carta, para logo em seguida dizer das imensas dificuldades.
Todo o material histórico do PCBR naquele período tão difícil ficava nas mãos de Bruno, de Renato Afonso, ou nas mãos de algum companheiro do Sul, como o José dos Reis Garcia, de Santa Catarina, também integrante do Comitê Central, ou de Mauro Goulart, do Paraná.
Às mãos dele, Renato Afonso, essa carta não chegou. As informações sobre ela vieram de conversas dele com Bruno Maranhão.
Onde estaria atualmente?
Não sabe.
_ Eu poderia tentar, de alguma maneira, recuperar esse material, mas seria um esforço gigantesco. Procurar as pessoas, e quem sabe encontrar, descobrir se elas teriam guardado a carta.
Fica em aberto a possibilidade de encontrar esse material.
A carta, cuja existência ele soube, e ouviu também relatos do conteúdo dela, foi o último contato do PCBR com os Tupamaros.
Depois, tudo evoluiu, e desembocou, entre tantas coisas, na eleição de Pepe Mujica.
Não soube mais nada dos militantes com os quais conviveu no Brasil.
Não sabe de Júlio, o principal dirigente Tupamaro a passar pelo Brasil, a conviver com o PCBR na Bahia, com quem ele viajou para Montevidéu, com quem fez relações de amizade.
Estará vivo?
Não sabe.
Marco Antônio, o irmão, guardava uma parte importante dos arquivos do PCBR.
Morreu de maneira trágica, num assalto à residência dele, com tentativa de estupro da namorada, reação dele.
Assassinado em Búzios, onde ficava a casa dele, saqueada pelos marginais.
Nesse saque, muita coisa se perdeu.
Inclusive materiais de arquivo do PCBR.
Às mãos de Renato Afonso, veio muita coisa da casa de Marco Antônio, quase nada do PCBR.
Ainda está presente para Renato Afonso, a morte dele, estúpida.
Volta e meia, Renato Afonso abre um livro herdado da casa dele.
Encontra um papel, uma anotação, alguma escrevinhação, vestígios.
Síntese de uma reunião acompanhada por ele.
Coisas assim.
Esparsas.
Nada a possibilitar uma narrativa segura, na avaliação de Afonso.
Afirma: há arquivos por aí. Se puder, vai descobri-los. Nenhuma garantia.
PCBR e o PT
Ele assegura: o BR não enxergava o PT como um partido tático, e eu, no último texto, o coloquei nesse barco, nessa concepção.
_ Nós entendíamos o PT como resultado de um processo extremamente original, de surgimento pela base da sociedade, um partido popular.
_ Nascia como um partido de massas, produto da própria luta de classes, inaugurando um período extremamente original.
_ Até então, o único partido de massas de esquerda conhecido na nossa história tinha sido o PCB, mesmo assim com todos os problemas vividos pelo PCB, inclusive com os raríssimos momentos de vida democrática, de vida legal.
Diferentemente do PCB, o PT nascia do movimento vivo, da base.
O PCB nasce como uma decisão de quadros comunistas, decididos a construir um partido revolucionário.
De nascença, diferentes, portanto.
O BR, então, naquela quadra histórica, compreendia a singularidade do PT enquanto experiência política.
Apostava na possibilidade de construí-lo como um partido revolucionário de massas.
_ Nós não confundíamos as coisas, nós não usávamos o PT como uma cortina, não fazíamos entrismo no PT. Ele era um objetivo a ser buscado, o objetivo nosso era o da construção de um partido revolucionário de massas.
A seguir, defendo minhas razões de considerar a chamada dupla militância do PCBR.
E a partir da própria argumentação, a seguir, de Renato Afonso, e nem sequer quero estabelecer discussão sobre isso, porque já superado pela história, nem se diga certo ou errado.
Admite: havia a convivência, por obviedade, do PT, um partido de vida legal, com o partido leninista, clandestino, no caso o PCBR.
Este, um partido de quadros.
Quando o BR era acusado de usar duas camisas, respondia, e me baseio nas palavras de Renato Afonso:
_ Não, nós não temos duas camisas. Temos uma camisa e uma calça.
E aí vem o argumento dele, a fortalecer minha visão, e volto, não pretendo polemizar:
_ O fato de você estar envolvido na construção de um partido de massas não significa dizer que você tenha de renunciar à construção de um partido revolucionário.
_ Se você vê a luta revolucionária no longo prazo, se você vê os exemplos históricos, os exemplos em que a luta popular esteve nas mãos do partido de massas, são sempre trágicos.
Ele insiste, e reforça o argumento dele, e, sem o pretender, também o meu:
_ As organizações revolucionárias que não tiveram a preocupação de manter o seu núcleo de quadros, clandestino, preservado, muitos delas desapareceram simplesmente, foram varridas da história pela repressão das classes burguesas, das classes oligárquicas.
Então, ele explicará, o PCBR via o PT estrategicamente.
De um modo singular, no entanto: em combinação com outro instrumento, para o BR também estratégico: o partido revolucionário.
Este, na visão dele, Renato Afonso, e do próprio BR, “essencial para a continuidade da luta de classes em qualquer conjuntura”.
PCBR e PRC
Penso, diante da posição exposta por Renato Afonso, haver discordâncias entre mim e ele.
O BR, como carinhosamente chamo o PCBR, caminhava com um pé lá, outro cá. Um pé no partido revolucionário, outro no PT, embora almejasse viesse a ser o PT, quem sabe um dia, um partido revolucionário.
Mas, Renato Afonso estabelece diferenças entre o BR e outras organizações revolucionárias, e por isso tenho o dever de expô-las.
Como a posição do Partido Revolucionário Comunista (PRC). Nascido de um racha do PCdoB, o PRC não acreditava pudesse vir a ser o PT algum dia um partido estratégico, um instrumento revolucionário, diferentemente do BR, que alimentava essa crença.
Hoje, olhando a trajetória, a história dele, Renato Afonso acredita ter o PT deixado de ser um partido verdadeiramente democrático.
Para ele, desde meados dos anos 1980, as estruturas de direção passaram a dominar as posições políticas, a defini-las, sem a participação das bases.
Teria se desfigurado ao longo do tempo, na visão dele.
Uma longa discussão a ser feita, ele admite.
Quis apenas discordar da posição expressa por mim no último texto da série, e creio ter exposto a posição dele, embora eu creia não ter dito nada fora de propósito – mas é minha posição.
É da vida, as divergências. São contradições no seio do povo, como diria o velho Mao.
Divergências entre companheiros.
Quando tratamos da Operação Tupamaros, quando a concluímos, Renato Afonso crê ter resultado numa espécie de anti-clímax.
Não vejo dessa maneira.
O sucesso da Operação Tupamaros, por si, é glorioso.
O enredo tão emocionante dela devia desembocar em algum tipo de frisson, de thriller – quem sabe, um confronto, uma fuga, qualquer coisa espetacular, na visão de Renato Afonso.
Nada disso aconteceu.
Nada a testar as qualidades das duas organizações enquanto forças voltadas ao embate político-militar.
Houvesse isso, ele mesmo admite, provável ele não estivesse aqui, conversando comigo.
Então, bom tivesse sido como foi.
Por isso, ainda estamos aqui.