O artigo a seguir busca identificar e caracterizar o discurso da extrema direita brasileira contra o Supremo Tribunal Federal (STF); examinar como essa construção discursiva funciona e é moldada para alimentar a desconfiança pública e corroer a legitimidade institucional do Tribunal; e, a partir desses achados, buscar subsídios para um contradiscurso que fortaleça o papel e a legitimidade das instituições democráticas, ainda que reconheça críticas e endosse propostas de reforma.
Principais achados desta primeira parte:
Metodologia: O corpus é composto por 114 textos coletados entre junho e outubro de 2024, categorizados em três grupos: 31 pronunciamentos de senadores no Senado Federal, 15 falas de políticos em atos públicos contra o STF e 68 artigos publicados na Revista Oeste. A análise utilizou, nesta primeira parte, métodos quantitativos, valendo-se do software Iramuteq para procedimentos estatísticos, geração de nuvens de palavras, análises de similitude, Classificação Hierárquica Descendente (CHD) e Análise Fatorial de Correspondências (AFC).
Implicações
1-Introdução
Em 13 de novembro de 2024, um atentado a bomba contra o prédio do Supremo Tribunal Federal (STF) resultou na morte do próprio autor, ex-candidato a vereador pelo Partido Liberal (PL) em Santa Catarina. Investigado pela Polícia Federal, o ato foi descrito como uma tentativa deliberada de assassinar o Ministro Alexandre de Moraes. A mensagem deixada pelo autor do atentado, em sua residência, sugere uma relação simbólica do atentado com o vandalismo à estátua da Justiça, praticado durante os ataques de 8 de janeiro de 2023 às sedes dos três Poderes.[1] Se há uma conexão entre esses episódios de violência, é possível supor que vá além de um conjunto de frases ameaçadoras.
O presente estudo analisa pronunciamentos políticos e artigos publicados entre junho e outubro de 2024, a fim de identificar traços característicos do discurso anti-STF praticado pela extrema direita. Busca compreender como ele funciona para deslegitimar a autoridade da Corte e obter a adesão da sociedade. No período em questão, alguns acontecimentos foram marcantes. Em agosto, a Folha de S. Paulo revelou mensagens trocadas por auxiliares do Ministro Alexandre de Moraes, sugerindo um fluxo de solicitações informais entre seu gabinete e o órgão de combate à desinformação do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, que teriam por finalidade embasar decisões contra bolsonaristas no âmbito do Inquérito nº 4.781, que ficou conhecido como “inquérito das fake news”.[2] A notícia serviu para mobilizar intensamente o discurso contra a atuação do Ministro e da Corte.
Ainda no mês de agosto, o Ministro Alexandre de Moraes suspendeu o funcionamento da rede social X, do bilionário Elon Musk, em todo o território nacional, e impôs multa de R$ 50 mil a usuários que buscassem acessar a plataforma pelo uso de VPN. A decisão, fundamentada no descumprimento reiterado de decisões do próprio Tribunal por parte da empresa, deu novo impulso ao discurso extremista. Mesmo referendada por unanimidade da Primeira Turma em apenas dois dias, a medida deu novo impulso ao discurso anti-STF. No mês seguinte, dois atos públicos de grande porte buscaram pressionar o Senado Federal pela abertura de processo de impeachment do Ministro Alexandre de Moraes, sendo um no dia 7 de setembro, na Avenida Paulista, em São Paulo, e outro no dia 29, na Praça da Liberdade, em Belo Horizonte.
As decisões do Ministro, como é próprio da democracia, não são imunes à crítica. O que se percebe, no entanto, é uma reação sistemática da extrema direita contra o STF, permeada por um discurso que ultrapassa a mera crítica política: fomenta um ambiente de radicalização permanente contra a autoridade e a legitimidade do Tribunal, desafia a estabilidade institucional do país e coloca em xeque as instituições políticas democráticas.
Episódios como os ataques de 8 de janeiro de 2023 e o atentado de 13 de novembro de 2024 demonstram que o problema não se restringe à retórica. Quando quase metade da população se convence de que há uma “ditadura do Judiciário”, abre-se um espaço perigoso para legitimar iniciativas extremistas. A falta de confiança no Supremo Tribunal Federal, somada à forte polarização política, dificulta o diálogo social e compromete a capacidade de a Corte exercer com independência seu papel de guardiã da Constituição e dos direitos fundamentais. Em uma conjuntura de instabilidade crescente, o enfraquecimento institucional favorece grupos antidemocráticos, reforçando o risco de novas rupturas.
A esquerda democrática se vê desafiada a responder à escalada autoritária e a posicionar-se de maneira eficaz em defesa da democracia, sem deixar de pensar no aprimoramento das instituições. É preciso entender o modo pelo qual esse discurso de extrema direita se estrutura e mobiliza apoios, inclusive entre setores não necessariamente radicalizados. As organizações e partidos comprometidos com a ordem constitucional deparam-se com a tarefa de articular propostas comunicacionais e políticas capazes de conter as investidas que agravam a desconfiança e a desinformação. Diante da possibilidade de esses temas serem centrais nas eleições de 2026, é imperativo compreendê-los, com vistas à formulação de estratégias que resgatem os valores democráticos e fortaleçam a Constituição.
O presente estudo tem por objetivos imediatos caracterizar o discurso da extrema direita contra o STF, investigar a construção discursiva autoritária que alimenta a desconfiança e corrói a legitimidade do Tribunal, para ao fim prospectar caminhos para a formulação de um contradiscurso político crítico e democrático. A análise pressupõe que a sociedade e as instituições devem reagir às ameaças antidemocráticas, sob pena de verem agravada a erosão da confiança popular no sistema de Justiça e na própria democracia. Pretende-se, assim, contribuir para a reflexão e a construção de ações em defesa das instituições políticas democráticas e da estabilidade do sistema constitucional do país.
2- Contexto político: o STF no centro do debate público
As investidas recentes da extrema direita contra o STF remetem a um contexto político e histórico mais amplo. Desde a promulgação da Constituição de 1988, o STF tem se consolidado como um dos principais protagonistas do cenário político e jurídico brasileiro, em grande parte devido ao extenso rol de competências conferido pelo texto constitucional e à falta de limites claros no exercício de certas funções. A expansão do papel do STF e a forma de exercício da jurisdição constitucional – frequentemente qualificada como “ativismo judicial” – atraiu críticas tanto de setores progressistas quanto de conservadores. A atuação do STF passou a ocupar o centro do debate público. No plano político e social, a reorganização das direitas no período pós-2013 deu impulso ao lavajatismo, à criminalização da política e à ascensão do bolsonarismo, fortalecendo a resistência reacionária contra decisões judiciais antes vistas, majoritariamente, como avanços na garantia de direitos. A Operação Lava Jato perde força a partir de 2019, com a revelação dos abusos e desvios praticados por seus principais expoentes. O STF passa a anular condenações e acordos firmados no âmbito da operação.
Durante o governo Bolsonaro, a Corte permanece no centro do debate político ao desempenhar papel crucial na imposição de limites às ações e omissões inconstitucionais do Poder Executivo. A Agência Lupa identificou que, entre 2019 e 2022, Bolsonaro fez pelo menos vinte ataques ao STF e a seus ministros, muitos dos quais incluíam ameaças de golpe. Dentre os episódios mais conhecidos estão a entrevista na qual ameaçou reagir fora das “quatro linhas” da Constituição ao ser incluído como investigado em inquérito do STF, em agosto de 2021, e a fala durante ato na Avenida Paulista, no mês seguinte, quando chamou o Ministro Alexandre de Moraes de “canalha” e afirmou que não cumpriria qualquer decisão do STF.[3]
O Tribunal converte-se, assim, em alvo preferencial e permanente de críticas insufladas pela direita. Os ataques sistemáticos à Corte ajudam a criar o imaginário de que o STF é o inimigo do povo. O discurso anti-STF adquire tons autoritários e de deslegitimação da autoridade da Corte, reverberando no Congresso Nacional, nas redes sociais e em diversas plataformas de mídia. Em certas ocasiões, pode extrapolar a crítica legítima, institucional e democrática.
Atualmente[4], o STF mantém inquéritos abertos para investigar fake news e ameaças à ordem democrática, bem como conduz julgamentos dos envolvidos na tentativa de golpe de Estado do dia 8 de janeiro de 2023. A possibilidade de novas denúncias e condenações criminais de Jair Bolsonaro e a dupla declaração de inelegibilidade do ex-presidente, pelo TSE, alimentam a tensão e garantem ao Judiciário lugar no centro das atenções públicas e na mira do extremismo antidemocrático. Em uma entrevista à Folha de São Paulo, em junho de 2025, o senador Flávio Bolsonaro concebeu um cenário de uso da força contra o STF, na hipótese de a Corte invalidar indulto ou anistia que eventualmente venham a beneficiar Jair Bolsonaro; e condicionou um suposto apoio do ex-presidente, nas eleições de 2026, ao compromisso de o futuro mandatário “de alguma forma, fazer com que o STF respeite os demais Poderes”.[5]
O país saiu das eleições nacionais de 2022 marcado pela “calcificação” [6] da polarização política, com reflexos na maneira como os debates políticos são conduzidos, exacerbando a divisão social e dificultando o diálogo entre os diferentes segmentos da sociedade. As eleições municipais de 2024, embora tenham sinalizado a força dos partidos de centro-direita, não parecem suficientes para projetar ou supor o enfraquecimento da agenda autoritária da extrema direita. Eventos recentes comprovam que ainda está viva a mobilização pelo impeachment do Ministro Alexandre de Moraes, pela anistia dos envolvidos na trama golpista e pela reabilitação eleitoral de Jair Bolsonaro. Com nítido intuito revanchista, já se anuncia um plano de formar “superbancada de senadores contra o STF”[7] nas eleições de 2026, reforçando a presença do discurso anti-STF no horizonte eleitoral próximo. Eis as palavras do Senador Ciro Nogueira, Presidente do Progressistas (PP), em entrevista à Folha de S. Paulo, em 20 de setembro de 2024:
“Eu tenho alertado que, se eles [os ministros do STF] não diminuírem esse excesso de protagonismo, se não encerrarem esse inquérito [das fake news], essa situação [será] a grande pauta da eleição para o Senado. Vai ser muito ruim. Espero que não aconteça. Ninguém vai se eleger senador, fora do Nordeste, sem se manifestar por conta do impeachment. Vai ser uma loucura, você não tem ideia do que vai acontecer.”[8]
As declarações do Senador Carlos Portinho, líder do PL, em jantar da Frente Parlamentar pelo Livre Mercado (FPLM), em 29 de abril de 2025, indicam que a extrema direita já conta com a formação de maioria no Senado para promover impeachment de ministros:
“A direita vai voltar ao poder em 2027. Se não tiver anistia, vai ter CPI do abuso de autoridade, CPI da Lava-Toga e impeachment de ministros, um a um”.[9]
Em fevereiro de 2024, pesquisa da AtlasIntel mostrou que 47,3% da população concordava com a afirmação de que “o Brasil vive hoje sob uma ditadura do Judiciário”. A Tabela 1 mostra que, entre eleitores de Bolsonaro, esses percentuais saltavam para 84%. Mesmo entre os eleitores de Lula, 26% aderiam à afirmação. Já entre os discordantes, 17% entendiam que muitos juízes cometem abusos e ultrapassam suas atribuições e apenas 21% consideravam que o Judiciário cumpre seu papel corretamente.[10]
A polarização política parece se refletir na opinião pública a respeito do STF. Em setembro de 2024, a AtlasIntel buscou medir a confiança da população no trabalho do tribunal e a percepção da sociedade sobre o caso do bloqueio do X no Brasil.[11] Os números mostram uma sociedade dividida, mas inclinada a considerar que o Ministro ou o Tribunal agem politicamente e não apenas como um órgão técnico-jurídico. Metade dos entrevistados (49,7%) afirmou não confiar no trabalho dos ministros do STF, de uma maneira geral. No conflito envolvendo a suspensão da plataforma X, 51% discordaram da decisão do ministro Alexandre de Moraes, contra 48% que a endossaram; 56,5% viram motivação política na decisão, ao passo que 42% a consideraram técnica; 54% avaliaram a decisão prejudicial à democracia.
Figura 1: pesquisa da AtlasIntel de setembro de 2024
Além disso, chama a atenção que um contingente significativo da população possa considerar legítima a desobediência às decisões da Suprema Corte, por discordar delas (Gráfico 1). Ainda que para 49% dos entrevistados Elon Musk deveria ter cumprido as decisões judiciais para remover conteúdos específicos ou perfis de usuários, praticamente a outra metade defendeu que o dono da plataforma X deveria ter desobedecido tais decisões, total (37,6%) ou parcialmente (9,9%).
Gráfico 1: cumprimento dos pedidos de Moraes referente a remoção de conteúdos e perfis de usuários da plataforma X.
Na avaliação do desempenho dos ministros em questões específicas, a mesma pesquisa confirma os efeitos da polarização política, mas com uma diferença: a avaliação negativa do trabalho do STF é mais consistente que a positiva, como se pode observar no Gráfico 2. Para todas as perguntas, as respostas negativas (“ruim” e “péssimo”) são ligeiramente superiores a 50%. Algumas concentram avaliações mais negativas, como é o caso do desempenho dos inistros em relação a “reformas para melhorar o funcionamento do Judiciário” (59%) e a “imparcialidade entre rivais políticos” (55%).
Como você avalia o desempenho dos ministros do Supremo Tribunal Federal em cada uma das seguintes questões?
Gráfico 2: avaliação do desempenho dos ministros do STF por temas, em setembro de 2024. Fonte: AtlasIntel
As avaliações positivas (“ótimo” e “bom”), por outro lado, têm muitas variações entre as diferentes questões abordadas na pesquisa. O melhor desempenho surge quanto à “defesa da democracia” e ao “respeito à Constituição e às leis”, com percentuais positivos mais próximos dos negativos, refletindo a polarização política. Isso indica que uma parte considerável da população reconhece o papel do STF na preservação dos valores democráticos e na garantia da ordem jurídica. Relativamente polarizadas também são as opiniões quanto ao “respeito ao Poder Legislativo” e ao “profissionalismo e competência dos ministros do STF”, ainda que com redução sensível na parcela de avaliação ótima. Tais resultados sugerem, assim, que há espaço para que vozes pró-democracia articulem contra-argumentos que enfatizem o papel institucional do Tribunal.
O pior desempenho dos ministros do STF, segundo a pesquisa, está nos quesitos da metade inferior do gráfico. Destaca-se a percepção negativa quanto à parcialidade da Corte, à sua efetividade em corrigir abusos, em garantir direitos individuais, em combater a corrupção e em promover reformas que melhorem seu funcionamento. Na perspectiva da opinião pública, esses seriam os pontos de maior vulnerabilidade – o “calcanhar de Aquiles” – do STF; e são terrenos férteis frequentemente explorados pelo discurso da extrema direita.
Pode-se questionar se o discurso da extrema direita tem o impacto de ampliar os níveis de desconfiança da população em relação ao STF, ou se apenas se aproveita deles em busca de ganhos políticos. É inevitável que parte do desgaste na imagem do STF decorra de seus próprios erros, assim como é inegável que a extrema direita procure se apropriar de sentimentos de insatisfação preexistentes. Assim, um movimento retroalimenta o outro, gerando um círculo vicioso de desconfiança que coloca em xeque tanto a estabilidade institucional quanto a própria noção de democracia. O presente estudo não tem a pretensão de medir causalidade. Seu objetivo é analisar a forma pela qual o discurso anti-STF se estrutura e funciona para reforçar sentimentos de desconfiança e deslegitimar a atuação da Corte.
3-Metodologia
3.1. Corpus de pesquisa e critérios de seleção
Neste estudo, equipara-se a “extrema direita” à “direita bolsonarista”. Não se ignora que não sejam expressões idênticas e que definam fenômenos diferentes, embora largamente sobrepostos. Essa equiparação é um recorte para fins do estudo, que não tem a pretensão de esgotar as distinções ideológicas que possam existir. Luis Felipe Miguel caracteriza a extrema direita brasileira com base na adesão a ao menos uma das três doutrinas ou ideologias: libertarianismo econômico, fundamentalismo religioso e reciclagem do antigo anticomunismo.[12] A opinião comum entre expoentes da direita brasileira é de que ela se compõe das correntes liberal, conservadora, evangélica, olavista e militarista.[13]
Os textos selecionados para pesquisa têm como autores políticos ou jornalistas que atuam na zona de influência do bolsonarismo, com graus variados de radicalismo em suas manifestações. Todos têm em comum expressarem críticas contundentes à atuação do STF no período investigado. Os textos e seus autores não são tomados como extremistas ex ante, tampouco como antidemocráticos, e não se pretende construir critérios para classificá-los dessa maneira. O estudo parte da premissa de que o material investigado possui elementos discursivos comuns que servem para uma caracterização geral do discurso anti-STF praticado; e que se há traços autoritários e riscos antidemocráticos identificados, esse discurso pode ser qualificado como extremista.
Trata-se de pesquisa de abordagem qualitativa, realizada com base em um corpus composto por 114 textos, dos quais:
Buscou-se assegurar a variedade de gênero discursivos e a representatividade ao corpus pela escolha de três diferentes contextos: do ambiente institucionalizado do Senado Federal, no qual predomina a linguagem formal; dos atos políticos de rua, ambiente mais informal e de interação direta e imediata dos interlocutores do discurso; da revista digital que veicula textos de opinião escritos por articulistas fortemente identificados com a direita e com o conservadorismo.
Limitações: o recorte temporal se justifica pela importância e pela dimensão política dos acontecimentos verificados no período investigado, mas também pela necessidade de haver um limite quantitativo de textos para análise, seja em função do tempo disponível para a pesquisa, seja em razão da disponibilidade dos pronunciamentos revisados na base de dados do Senado Federal. Assim, embora acontecimentos anteriores ou posteriores ao período considerado possam ter grande importância, foi necessário adotar uma opção metodológica de fechamento temporal para o trabalho.
Em relação ao conteúdo anti-STF que circula nas redes sociais, ante as restrições temporais e materiais da pesquisa, parte-se do pressuposto de que ele reproduz as críticas formuladas nos ambientes de comunicação investigados, ou acaba influenciando os pronunciamentos políticos e os artigos de opinião, sendo incorporado por eles. Embora não seja exaustivo, o corpus selecionado abrange fontes que, durante o período investigado, exerceram forte influência na conformação do discurso público sobre o STF. Estima-se que, ao menos para o período analisado, a pesquisa tenha se aproximado do ponto de saturação teórica, no qual a coleta de novos dados não resulta mais categorias significativas. De todo modo, é preciso reconhecer a dificuldade de mensurar o alcance do discurso investigado junto à opinião pública, bem como a necessidade de cautela na generalização das conclusões do estudo.
3.2. Métodos e técnicas de análise
A análise do corpus buscou identificar categorias e características emergentes da investigação estatística dos textos selecionados. Esse processo conduziu à delimitação dos padrões discursivos e dos temas centrais adotados nas críticas ao STF.
O exame dos dados textuais baseou-se no software Iramuteq.[14] O programa identificou que os 115 textos que compõem o corpus somam 147.845 palavras. Pelo método de construção de segmentos de texto (ST) por ocorrências de palavras, configurados em tamanho 100, o software dividiu o corpus em 1.724 ST, que são as unidades de referência para a análise. Os ST são unidades intermediárias, que integram as divisões maiores – as Unidades de Contexto Inicial (UCI) – e contêm as menores unidades de análise – as Unidades de Contexto Elementar (UCE). Essa divisão ajuda o software a entender como os temas são distribuídos ao longo dos textos e a identificar subtemas dentro de um tópico maior.
As seguintes ferramentas do Iramuteq foram empregadas: estatísticas, nuvem de palavras, análise de similitude, classificação hierárquica descendente (CHD) e análise fatorial de correspondências (AFC). Em geral, foram consideradas as classes de palavras mais significativas (substantivos, adjetivos, verbos[15] e advérbios), ficando as demais em segundo plano (artigos, conjunções, preposições, pronomes e outras). Em todas elas adotou-se o processo de lematização, pelo qual as palavras são reduzidas em suas formas básicas.[16] Os resultados são apresentados no capítulo 4.
4. Resultados: análise descritiva do discuso
Passa-se à interpretação dos resultados extraídos das análises estatísticas do Iramuteq. Os achados desta etapa são relevantes, principalmente, no que tange aos temas centrais, personagens, categorias mobilizadas e relações entre tópicos. A ordem de apresentação segue o critério da menor para a maior complexidade das ferramentas.
Pela ferramenta de estatísticas, identifica-se o número de menções a cada termo. Eis alguns dos mais frequentes: STF (760), ministro (736), Brasil (655), Alexandre de Moraes (625), direito (420), brasileiro (360), presidente (342), estado (331), país (323), democracia (315), lei (312), querer (308), liberdade (293), decisão (228), senador (225), constituição (219), caso (215), governo (210), Lula (201), político (193), rede (183), preso (180), X (178), processo (176), crime (176), justiça (168), inquérito (164), prisão (147), Jair Bolsonaro (142), censura (135), Congresso (131), Senado (127), entre outras.
A nuvem exibe as palavras mais frequentes do corpus textual, sendo o tamanho de cada palavra proporcional à sua frequência de ocorrência. Essa representação ajuda a identificar rapidamente termos mais recorrente e temas centrais do texto. Como a nuvem não leva em consideração o contexto, pode ocorrer de palavras maiores não representarem, necessariamente, maior importância semântica.
Por meio de um diagrama simples, a nuvem permite uma aproximação inicial rápida das temáticas centrais que permeiam os textos analisados. Ela também mostra palavras de grande relevância semântica para o objetivo da pesquisa, oferecendo os primeiros rastros para uma análise que buscará compreender os sentidos do discurso.
A Figura 2 exibe as palavras que surgiram 30 vezes ou mais em todo corpus:
Figura 2: nuvem de palavras (Iramuteq)
A maior frequência de “STF”, “Ministro” e “Alexandre de Moraes” confirma o foco central no Tribunal e no Ministro, como já se esperava pelo recorte metodológico da análise. Palavras como “democracia”, “liberdade”, “censura”, “crime”, “prisão”, “golpe” e nomes como “Lula” e “Jair Bolsonaro” aparecem em tamanho significativo, ilustrando que a retórica gira não apenas em torno de ações pontuais, mas também noções de legitimidade, violação de direitos e tensionamento político. Ademais, a ênfase em “direito”, “constituição”, “lei”, “decisão”, “juiz”, “inquérito”, “processo” sugere que o discurso anti-STF analisado apresenta um enquadramento político-jurídico e que se apoia em valores e símbolos como “democracia”, “liberdade”, “justiça”, “verdade”, “nação”.
Figura 3: Grafo de similitude (Iramuteq)
Os grafos de similitude permitem visualizar agregados (clusters) de palavras, mostrando quais aparecem juntos com frequência ao longo dos textos analisados.[17] Cada cluster ou núcleo sugere um campo temático ou discursivo relativamente coeso, dentro do qual certos termos se reforçam mutuamente. Dessa forma, a ferramenta pode revelar padrões e redes de palavras indicativos de temas e associações importantes, assim como subtemas e tópicos relacionados. Quanto mais espessa a linha que liga as palavras, mais frequente é a coocorrência delas no texto.
A Figura 3 mostra que o STF aparece como nó central do diagrama, o que confirma que o Tribunal é o grande foco dos textos analisados. Nesse cluster central (verde), os termos-chave (“processo”, “caso”, “crime”, “decisão”, “investigação”, “julgamento”, “8 de janeiro”) revelam que o discurso anti-STF frequentemente se desdobra em torno de episódios concretos. Nesse ambiente, surgem menções ao Congresso Nacional, ao Governo, a Lula e ao PT, indicando tensões entre Poderes e possíveis acusações de politização por parte do Tribunal.
O núcleo “Estado” (cor-de-rosa) aparece conectado ao núcleo “STF” (verde) pela palavra “direito”, por uma linha espessa, o que sugere grande frequência da expressão “Estado de Direito”, assim como a presença de “democrático” sugere “Estado Democrático de Direito”. A presença de “golpe” no cluster indica que o discurso conecta frequentemente o STF a situações de ruptura institucional. Em se tratando de uma seleção de pronunciamentos críticos ao STF, o grafo permite supor, inicialmente, que o discurso da extrema direita situa o Tribunal como algoz do Estado Democrático de Direito.
O campo “Brasil” (roxo), traz palavras de conteúdo mais valorativo ou ideológico (“liberdade”, “democracia”, “nação”, “família”, “vida”, “verdade”), o que alude à disputa simbólica em torno desses termos. A menção a “lei” (ligada a “projeto”, “princípio” e “justo” ou “justa”[18]) no cluster leva a crer que o discurso cria uma tensão entre tais conteúdos valorativos e a forma como é aplicada a lei em sentido estrito. Essa tensão pode explicar a presença de “ditadura” e “anistia” no mesmo contexto. O conflito envolvendo Elon Musk e a plataforma X surgem no mesmo campo, possivelmente por ser usado como caso exemplar dessa disputa.
Um importante campo é o conjunto que se refere ao Ministro Alexandre de Moraes (amarelo e vermelho). Ele inclui nomes de investigados ou punidos (Jair Bolsonaro, Daniel Silveira, Silvinei Vasques, Filipe Martins) e termos fortemente negativos (“criminoso”, “cadeia”, “abuso”, “grave”, “censura”, “ilegal”). A personalização do ataque ao STF na figura de Alexandre de Moraes torna-se evidente. O discurso associa o Ministro a “impeachment” e a termos que denotam supostos excessos, apresentando-o como “algoz” de militantes ou figuras públicas ligadas à extrema direita.
Por fim, os clusters “presidente” e “brasileiro” trazem menção ao então presidente do Senado Rodrigo Pacheco e referências às mobilizações para os atos políticos contra o STF. Esses núcleos refletem o teor do confronto institucional que o discurso busca provocar. Na crítica ao STF, a recorrência da expressão “povo brasileiro” indica que o discurso coloca o Judiciário em oposição à vontade popular.
Em resumo, a análise de similitude evidencia que o discurso anti-STF ora analisado vai muito além de uma única reclamação jurídica: engloba moralidade, política, casos concretos e tensões entre os Poderes constitucionais. Ele é centralizado na crítica à atuação do Ministro Alexandre de Moraes, passa pela apropriação de princípios e valores democráticos para situar o Tribunal em um ambiente politizado e autoritário associado ao Governo, à esquerda e ao PT. Esse mapa inicial mostra questões que devem ser aprofundadas na categorização do discurso.
4.4. Classificação Hierárquica Descendente
A Classificação Hierárquica Descendente (CHD) organiza o corpus em classes relativamente homogêneas em termos lexicais, mas heterogêneas entre si, indicando temas ou subtemas recorrentes no discurso analisado. Cada retângulo (colorido) representa uma classe, contendo as palavras que mais se destacaram e que, estatisticamente, aparecem com maior frequência e coocorrência dentro daquele grupo específico. Assim, a ferramenta permite explorar tanto o dendrograma (a árvore que relaciona as classes) quanto as listas de palavras para compreender como o texto se subdivide.
Figura 4: Dendograma da Classificação Hierárquica Descendente (Iramuteq)
Inicialmente, observe a estrutura principal do dendograma da Figura 4. No topo, há duas grandes ramificações. O bloco da esquerda é formado pelas classes 4 (azul claro), 5 (azul escuro) e 1 (vermelha), que somadas ocupam aproximadamente 45% do corpus. O da direita contém as classes 2 (cinza), 6 (rosa) e 3 (verde), que juntas compõem 55%. Cada conjunto de classes compartilha uma proximidade contextual maior entre si do que com as classes do outro grande ramo. Assim, mesmo em cada um dos grandes blocos há subdivisões internas com blocos com maior afinidade contextual (4 e 5; 2 e 6).
As três classes do primeiro bloco têm em comum o foco em episódios reais que resultaram em medidas vistas como abusivas ou de perseguição do STF contra a direita.
Na classe 4 (12%), as palavras em destaque indicam foco nas questões relacionada à suspensão da plataforma X e ao confronto do Ministro Alexandre de Moraes com Elon Musk. É o discurso que critica medidas de restrição impostas pelo bloqueio de usuários e previsão de multas, acusando-as de censura ou abuso de poder. Pode envolver argumentos sobre liberdade de expressão e direito de acesso à internet, explorando a ideia de que a empresa foi injustamente atacada ou que há “censura judicial”.
A classe 5 (14,2%) parece conectar informações vazadas ou divulgadas pela imprensa (Folha de S. Paulo, Glenn Greenwald, Revista Oeste) e críticas sobre a condução de inquéritos que envolvem o TSE e auxiliares do Ministro Alexandre de Moraes (Eduardo Tagliaferro, Airton Vieira).
A classe 1 (19,4%) reúne nomes e outros elementos contextuais ligados às prisões, investigações e condenações criminais decorrentes dos ataques de 8 de janeiro de 2023. Reflete as críticas à condução dos casos criminais pelo STF e indica que o tema compõe um foco importante no discurso anti-STF.
No segundo bloco, as três classes apresentam um recorte mais “macro”, remetendo às dimensões política e constitucional dos embates com o STF.
Na classe 2 (15,2%), fica evidente a evocação de expressões com conotações religiosas (“Deus”, “abençoar”), patrióticas (“pátria”, “Tiradentes”) e referências locais (“mineiro”, “Minas Gerais”, “Belo Horizonte”). Termos como “coragem”, “lutar”, “coração”, “covardia”, “traidor”, “tirano”) associam-se a retóricas inflamatórias de discursos de palanque. Esses elementos sugerem que a classe agrupa os pronunciamentos dos atos públicos (especialmente o de Belo Horizonte), nos quais o discurso surge com forte apelo moral ou religioso para legitimar os protestos anti-STF.
A classe 6 (19,4%) claramente se relaciona ao Poder Legislativo, especialmente para reclamar ação do Senado Federal quanto às iniciativas de impeachment do Ministro Alexandre de Moraes. Menções aos nomes dos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados e a proximidade com a classe 2 sugerem críticas pela forma como conduziram o Poder Legislativo em face dos supostos abusos do STF.
A classe 3 (19,9%) envolve aspectos constitucionais, com alusões a temas de processo legislativo e à palavra “equilíbrio”, que pode estar associada à relação entre os Poderes, mas também à tomada de decisão governamental, legislativa ou judicial. Destacam-se o nome do Ministro Luís Roberto Barroso e o tema do aborto. A classe mostra que o confronto da extrema direita com o STF também envolve a disputa pelo poder de decidir a respeito de questões morais, quando então outros ministros podem se tornar alvo das críticas. É a única das seis classes que se refere ao conflito entre Poderes em razão do exercício de competência típica do STF como tribunal constitucional.
Conclui-se que a CHD agrega à análise que o discurso anti-STF analisado: (a) vale-se de críticas à atuação pontual do Tribunal em casos concretos (suspensão de rede social, condução de investigações, decretação de prisões e julgamento de casos específicos); (b) sustenta-se também em críticas institucionais (omissão do Senado na abertura de processo de impeachment, invasão de poderes e ativismo judicial); (c) busca se legitimar mobilizando apelos morais, religiosos e patrióticos.
4.5. Análise fatorial de correspondências
Figura 5: Gráfico da Análise Fatorial de Correspondências (Iramuteq)
A Análise Fatorial de Correspondências (AFC) projeta, em um gráfico bidimensional, as palavras e as classes resultantes da CHD, de acordo com a variância (dispersão em relação à média) delas no corpus. Cada eixo (horizontal e vertical) representa uma dimensão que concentra parte relevante dessa variância, de modo que, quanto mais distante do centro (0,0) estiverem os termos ou grupos de termos, mais característicos ou expressivos eles são em relação à dimensão capturada pelo eixo. [19] Quanto mais próxima a palavra estiver da linha zero do eixo, menor sua contribuição para explicar aquela dimensão de análise, ou seja, são mais “neutras” para aquele critério considerado.
A interpretação do gráfico também deve considerar a proximidade entre classes e palavras no gráfico, pois revela maior ou menor força da associação entre elas. Classes que aparecem próximas compartilham vocabulário semelhante ou têm forte correlação no uso das palavras ou nos temas abordados; inversamente, classes mais distantes têm mais diferenças entre si em termos lexicais e semânticos. Palavras próximas indicam coocorrência frequente, sugerindo contextos discursivos compartilhados. Ainda assim, a interpretação semântica precisa ser confirmada pela leitura qualitativa dos textos.
Vê-se que o gráfico da Figura 5 está dividido em quadrantes (superior direito, superior esquerdo, inferior esquerdo, inferior direito), cada qual concentrando termos que mantêm alguma proximidade léxica ou temática entre si. As “nuvens” coloridas, cada uma associada a determinado conjunto de palavras, correspondem aos clusters já identificados na CHD, mas agora visualizados em duas dimensões (os eixos).
Nota-se que o cluster vermelho, que concentra os casos criminais ligados ao dia 8 de janeiro de 2023, encontra-se mais isolado dos demais no quadrante superior direito. Esse afastamento pode indicar que o discurso aqui investigado constrói narrativas sobre a temática de forma relativamente independente dos demais assuntos. É possível, também, que esse distanciamento sinalize que as narrativas sobre o tema ficaram fortemente concentradas em certo período, dentro do lapso temporal considerado, cedendo espaço para outros temas em outro momento.
Por outro lado, observa-se a proximidade – e mesmo sobreposição – dos clusters azuis, que reúnem os conflitos com a plataforma X, investigações de fake news e vazamentos pela imprensa de mensagens de auxiliares de Alexandre de Moraes. Esse compartilhamento contextual indica que uma mesma narrativa de censura ou de outra crítica à atuação do STF pode aglutinar os temas ali abordados.
De um modo geral, o eixo horizontal do gráfico permite supor que há uma separação entre uma dimensão mais política e ideológica (impeachment, patriotismo), do lado esquerdo, e uma dimensão mais pragmática, ligada à resolução de casos concretos (prisões, rede X, inquéritos), do lado direito, sendo ambas relevantes na forma como se estrutura o discurso anti-STF analisado. O eixo também pode ser visto como a oposição entre assuntos de ordem pública (à esquerda) e questões envolvendo conflitos pessoais ou particulares (à direita), ou também ser interpretado como a variância de alusões a maior liberdade (à esquerda) ou a restrições e censura (à direita).
Por sua vez, o eixo vertical sugere uma segmentação em torno da tensão institucional decorrente da atuação do STF: na parte superior situações de baixa conflituosidade entre instituições e parte inferior discussões sobre mais amplas sobre a interferência do STF na política e na regulação da esfera pública. No centro dos eixos, por sua vez, o nome do Ministro Alexandre de Moraes demonstra que sua influência é latente em todas as áreas, por ser o foco principal de praticamente todas as críticas.
A análise estatística e a interpretação dos resultados das ferramentas do Iramuteq mostram o que se diz e com que frequência aquilo que é dito surge no corpus de pesquisa. O mapeamento da paisagem lexical do discurso anti‑STF revelou as seguintes características do discurso anti-STF da extrema direita, no período investigado:
Os achados quantitativos expostos no Capítulo 4 confirmam que o Supremo Tribunal Federal passou a ocupar o centro do conflito político contemporâneo. Termos como “censura”, “prisão”, “golpe” e a personalização das críticas no Ministro Alexandre de Moraes se entrelaçam numa narrativa na qual a Corte surge como antagonista direto do “povo” — o mesmo eixo de clivagem descrito no Capítulo 2. Esse vocabulário ecoa percepções já capturadas pelas pesquisas de opinião, que apontam para a ideia de uma “ditadura do Judiciário” e reforçam o sentimento de que o STF age movido por interesses partidários. Ao oferecer narrativas sobre casos concretos — bloqueio de redes sociais, prisões ligadas ao 8 de janeiro, inquéritos sobre fake news — o discurso analisado dá corpo à acusação, tornando-a plausível mesmo para públicos que antes apenas desconfiavam da Corte.
A mesma lógica aparece nas acusações de politização do Tribunal. As decisões do STF são enquadradas como escolhas estratégicas destinadas a favorecer o Executivo ou “proteger corruptos”, e não como julgamentos técnicos. Essa leitura sustenta a crença de que descumprir decisões seria não apenas aceitável, mas moralmente necessário para restaurar o equilíbrio entre os Poderes. No corpus, expressões que sugerem ou incitam a “desobediência civil” e que associam o STF a regimes ditatoriais indicam que a fronteira entre crítica legítima e rejeição da autoridade judicial foi cruzada com frequência.
O discurso anti-STF também explora os pontos considerados mais frágeis na imagem pública do Tribunal. A suposta falta de imparcialidade é amplificada pela insistência em casos que envolvem adversários do governo; acusa-se a Corte de restringir a liberdade de expressão quando determina a remoção de conteúdos, e de resistir a qualquer forma de accountability ao ignorar pedidos de autocontenção ou de revisão interna. Ao conectar essas críticas a valores consensuais — liberdade, família, patriotismo — os atores discursivos ampliam o alcance da mensagem, podendo atingir segmentos que não se identificam necessariamente com a extrema direita, mas que já nutrem desconfiança difusa em relação às instituições.
Da combinação desses elementos resulta um mecanismo de retroalimentação perigoso para a democracia. Cada reação do STF a ataques extremistas é imediatamente reinterpretada como prova adicional de abuso de poder, o que, por sua vez, reforça a sensação de ilegitimidade e encoraja novos atos de confronto. Desse modo, estimula-se uma cultura de seletividade no cumprimento das decisões judiciais, abala-se a percepção de isonomia e prepara-se o terreno para pressões institucionais que visam subordinar a Corte a maiorias políticas momentâneas.
O extremismo anti-STF parece preencher os quatro indicadores de comportamento político autoritário elencados por Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no livro Como as democracias morrem: rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas); negação da legitimidade dos oponentes políticos; tolerância ou encorajamento à violência; e propensão a restringir liberdades civis de oponentes. A ruptura democrática, adverte os autores, não precisa de um plano. “A erosão da democracia acontece de maneira gradativa, muitas vezes em pequeníssimos passos. Tomado individualmente, cada passo parece insignificante - nenhum deles aparenta de fato ameaçar a democracia.”[20]
Vale, aqui, a recomendação de Felipe Nunes e Tomas Traumann:
“O primeiro passo para enfrentar a polarização extrema é reconhecer que ela existe e que está transbordando para o cotidiano dos brasileiros. O segundo passo é impor os limites claros de até onde vai a opinião política e onde começa a intolerância. Não se pode, em nome de uma liberdade de expressão sem limites, naturalizar o ódio, o preconceito e a intimidação.”[21]
Se o processo de deslegitimação do STF não for contido, vislumbram-se três frentes de risco: a erosão da autoridade judicial, a paralisia do sistema de freios e contrapesos e a possibilidade de que a pauta anti-STF se transforme em plataforma eleitoral majoritária nas próximas eleições gerais. Ao mesmo tempo, os dados revelam brechas estratégicas para um contradiscurso capaz de reconstruir confiança: ainda há parcela significativa da população que valoriza a preservação da ordem constitucional e distingue crítica legítima de ataques destrutivos. Reconhecer problemas reais e propor reformas concretas pode ser um caminho para neutralizar a apropriação extremista dessas fragilidades.
Em síntese, a análise descritiva indica que o discurso anti-STF investigado pode ultrapassar a crítica institucional e se converter em instrumento de corrosão da legitimidade da Corte. Ao incentivar percepções de tirania, partidarismo e licitude da desobediência, contribui para minar um pilar essencial da democracia brasileira. Oferecer respostas, nesse cenário, é um desafio que parece requer tanto estratégias comunicacionais que clarifiquem a diferença entre crítica e deslegitimação quanto medidas institucionais que reforcem a transparência e a imparcialidade do Tribunal, quebrando o ciclo de desconfiança antes que ele se consolide como normalidade política.
Daniel Ribeiro Silvestre, servidor público federal, Assessor Técnico da Liderança do PT
6. Referências
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AtlasIntel, “Operação Tempus Veritatis: investigações da Polícia Federal sobre o suposto planejamento de golpe de Estado”, realizada em 08 e 09/2/2024. Disponível em https://bit.ly/4hTbRLU, acesso em 13/2/2025.
BECKER, Leandro et al. Os Bolsonaro x STF – e o que Musk ganhou com isso: como Jair atacou o Supremo, criou o “inimigo número 1” e encorajou Elon. Agência Lupa, 12/04/2024. Disponível em https://bit.ly/4lw3SGZ. Acesso em 13/2/2025.
BONIN, Robson. Líder do PL no Senado diz que, sem anistia, Moraes e Barroso ‘vão presos’. Revista Veja. Online, disponível em https://bit.ly/3Zdtgrl, acesso em 2/5/2025.
CAETANO, Guilherme. Bolsonaristas tiram foco de ações da PF com “picanha do Lula” e querem superbancada anti-STF em 2026. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13/7/2024. Online, disponível em https://bit.ly/4kbLhzl, acesso em 13/2/2025.
CHAIB, Julia; OLIVEIRA, Thaísa. Bolsonaro estará elegível, e impeachment de ministros do STF pode ser pauta em 2026, diz Ciro Nogueira. Folha de S. Paulo. São Paulo, 20/09/2024. Online, disponível em https://bit.ly/4iewnGH. Acesso em 13/2/2025.
DALLAGNOL, Deltan. A perseguição à direita é teoria da conspiração ou existe mesmo? In: Gazeta do Povo, 06/2/2025. Disponível em http://bit.ly/3F4kODC. Acesso em 25/2/2025.
FREITAS, Ernani Cesar; ANTUNES JUNIOR, Fernando Simões; BOAVENTURA, Luis Henrique. O rei e o bobo da corte: cenografia, ethos e arquétipos no discurso presidencial, in Galáxia v. 47, 2022, pp.1-25. São Paulo: online. Disponível em https://bit.ly/3RO48Dy. Acesso em 14/4/2025.
GALIAZZI, Maria do Carmo. “Análise Textual Discursiva”. Youtube, canal “Prof. Rafael W S Bueno”. Disponível em https://bit.ly/4j9wS5Z. Acesso em 4/11/2024.
LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.
LIMA, Melina Moreira Campos. O Direito Internacional sob governos de extrema direita: uma comparação entre as administrações de Donald Trump e Bolsonaro. Sequência Estudos Jurídicos e Políticos, Florianópolis, v. 43, n. 90, p. 1-28, 2022. Disponível em https://bit.ly/3SErT1g. Acesso em: 15/5/2025.
MIGUEL, Luis Felipe. A reemergência da direita brasileira. In: O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. Esther Solano Gallego (org.). São Paulo: Boitempo, 2018, p. 17-26.
NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2023.
OLIVEIRA, Thaísa; HOLANDA, Marianna; BILÓ, Gabriela. Flávio diz que candidato de Bolsonaro terá de garantir que STF não derrube indulto, mesmo à força. Folha de S. Paulo. São Paulo, 14/6/2025. Online, disponível em http://bit.ly/45QjAYc, acesso em 30/6/2025.
[1] Na casa alugada pelo autor do atentado, no Distrito Federal, a Polícia Federal encontrou uma mensagem que fazia referência à pessoa que pichou, com batom, a estátua que representa a deusa Têmis, obra do escultor Alfredo Ceschiatti situada em frente ao prédio do STF: "Débora Rodrigues, por favor não desperdice batom. Isso é para deixar as mulheres bonitas. Estátua de merda se usa TNT".
[2] Instaurado em março de 2019, o Inquérito nº 4.781 tornou-se polêmico pelo longo tempo de tramitação e pelo sigilo imposto à investigação e às decisões judiciais, muitas delas tomadas de ofício, sem provocação do Ministério Público ou da Polícia Federal.
[3] BECKER, Leandro et al. Os Bolsonaro x STF – e o que Musk ganhou com isso: como Jair atacou o Supremo, criou o “inimigo número 1” e encorajou Elon. Agência Lupa, 12/04/2024.Disponível em https://bit.ly/4lw3SGZ. Acesso em 13/2/2025.
[4] Data de fechamento do presente texto: 30/6/2025.
[5] OLIVEIRA, Thaísa; HOLANDA, Marianna; BILÓ, Gabriela. Flávio diz que candidato de Bolsonaro terá de garantir que STF não derrube indulto, mesmo à força. Folha de S. Paulo. São Paulo, 14/6/2025. Online, disponível em http://bit.ly/45QjAYc, acesso em 30/6/2025.
[6] NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do Abismo: como a polarização divide famílias, desafia empresas e compromete o futuro do Brasil. Rio de Janeiro: HarperCollins Brasil, 2023, p. 22.
[7] CAETANO, Guilherme. Bolsonaristas tiram foco de ações da PF com ‘picanha do Lula’ e querem superbancada anti-STF em 2026. O Estado de São Paulo. São Paulo, 13/07/2024.Online, disponível em https://bit.ly/4kbLhzl, acesso em 13/02/2025.
[8] CHAIB, Julia; OLIVEIRA, Thaísa. Bolsonaro estará elegível, e impeachment de ministros do STF pode ser pauta em 2026, diz Ciro Nogueira. Folha de S. Paulo. São Paulo, 20/09/2024. Online, disponível em https://bit.ly/4iewnGH , acesso em 13/02/2025.
[9] BONIN, Robson. Líder PL no Senado diz que, sem anistia, Moraes e Barroso ‘vão presos’. Revista Veja. Online, disponível em https://bit.ly/3Zdtgrl, acesso em 2/5/2025.
[10] Pesquisa AtlasIntel, “Operação Tempus Veritatis: investigações da Polícia Federal sobre o suposto planejamento de golpe de Estado”, realizada em 08 e 09/02/2024. Disponível em https://bit.ly/4hTbRLU, acesso em 13/02/2025.
[11] Pesquisa AtlasIntel, “Bloqueio do X no Brasil & Confiança no STF”, realizada em 03 e 04/09/2024. Disponível em https://bit.ly/4bcXBeJ, acesso em 13/02/2025.
[12] MIGUEL, Luis Felipe. A reemergência da direita brasileira. In: O ódio como política: a reinvenção da direita no Brasil. Esther Solano Gallego (org.). São Paulo: Boitempo, 2018, p. 19.
[13] Por todos, cf. DALLAGNOL, Deltan. A perseguição à direita é teoria da conspiração ou existe mesmo? In: Gazeta do Povo, 06/02/2025. Revista Eletrônica. Disponível em http://bit.ly/3F4kODC, acesso em 25/02/2025.
[14] O Iramuteq (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) é um software de código aberto, baseado na linguagem de programação R, utilizado em pesquisas qualitativas e mistas. Ele é especialmente útil para pesquisadores que trabalham com grandes volumes de dados textuais. Permite realizar uma análise aprofundada de dados textuais, facilitando a identificação de temas, padrões e relações entre palavras e conceitos. O presente trabalho valeu-se da versão 0.8 alpha 7.
[15] Entre os verbos, optou-se por diferenciar e colocar em segundo plano de análise os verbos considerados “suplementares”, que seriam aqueles que desempenham um papel secundário na estrutura das frases, ou que têm menos relevância em termos de conteúdo central do texto, ou que pouco contribuem para a análise semântica, se comparados aos verbos principais. Como podem surgir com frequência no texto, são tratados de forma secundária para não distorcerem a análise das classes principais de palavras. Exemplos: ser, estar, apontar, dizer, fazer, ir, haver, pegar, poder, saber, ter, usar, ver.
[16] A lematização evita a distorções na análise de frequência e de proximidade, sem prejudicar o significado das palavras, uma vez que o software reconhece o contexto de seu uso. Exemplo 1: as palavras “correm”, “correu”, “correndo” são reduzidas à forma básica (lemma) “correr”. Exemplo 2: a palavra “casa” poderá ser reduzida ao lemma “casar” se estiver empregada como verbo, mas isso não ocorrerá se no contexto surgir como substantivo.
[17] O cálculo é feito com base em uma matriz de coocorrências e um índice de frequência relativa que representa a força da conexão entre as palavras. A análise leva em consideração somente a proximidade das palavras nos textos e não quaisquer aspectos semânticos, como a similitude de significados. Mesmo assim, pode-se considerar que as estruturas de coocorrências refletem, indiretamente, padrões de uso de vocabulário.
[18] O processo de lematização tende a transformar a palavra “justa” em “justo”, para fins dos cálculos estatísticos do Iramuteq.
[19] O eixo horizontal do gráfico gerado pelo Iramuteq apresenta percentual de 25,98% e o eixo vertical de 23,62%, de modo que, na soma, explicam aproximadamente 50% da variância total, condição suficiente para a AFC revelar padrões importantes. Uma representação mais completa dependeria da adição de uma terceira dimensão fatorial (terceiro eixo) e a construção de um gráfico tridimensional (3D), o que também tornaria a análise mais complexa.
[20] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, p. 81.
[21] NUNES, Felipe; TRAUMANN, Thomas. Biografia do Abismo. Ob. cit., p. 202.