"Pois Jesus, quando insultado, não revidava com insultos; quando maltratado, não fazia ameaças, mas se entregava àquele que julga retamente". (I Pedro 2:23)
A vida de um pastor normalmente começa de modo simples. Uma vez vocacionado para o exercício do ministério pastoral, não são poucos os que largam uma estabilidade e uma trajetória de vida para abraçar, em movimento puramente idealista, um divino chamado. O início da trajetória de um pastor é, portanto, marcado por muitos sonhos, planos, mas também por uma dura realidade inerente a todo o começo. Via de regra, a imagem que melhor traduz esse momento inicial é a de um mochileiro: poucos pertences e um mundo de possibilidades e destinos à sua frente.
Todavia, ao longo do exercício do ministério pastoral, a mochila vai sendo substituída por malas. Algumas delas, devido ao processo de institucionalização inerente à tradição religiosa, como preconiza Roger Bastide, se tornam pesadas e numerosas demais. Papéis a serem exercidos, expectativas a serem atendidas, por vezes soterram a vocação inicial, aquele momento de puro êxtase e idealismo. Sem os sinais da bússola original, pastores se tornam acumuladores de distrações que, por sua vez, passam a encher e engordar outras malas. Neste ponto, a mobilidade inicial já foi perdida e as viagens precisam ser programadas com antecedência para acondicionar tanta carga.
É assim que percebo o viajante Silas Malafaia. Um Malafaia não nasce do jeito que foi encontrado pela PF ao desembarcar no Galeão; ele é feito ao longo do tempo e pode ser compreendido pelas muitas malas que passou a carregar. Algumas delas são mais visíveis e passíveis de destaque, entre as quais proponho uma pequena seleção.
A primeira mala é a da corporação religiosa. Malafaia, como outros, abandonou o caráter poimênico do fazimento pastoral para virar diretor de corporação religiosa. Quando o Evangelho é empresariado; quando o dono do capital passa a ser também identificado como o dono da igreja; quando a mensagem do evangelho passa a ser vista pelas lentes do marketing como produto a ser vendido, o que temos é a completa perda de foco. Ao invés de atentar para as pessoas, o tempo é investido na produção e análise de planilhas. Quando o Evangelho se torna negócio a primeira a morrer é a simplicidade que deveria acompanhar todas e todos marcados pelo seguimento de Jesus de Nazaré.
A segunda mala é a da vaidade. Se a humildade, imprescindível virtude cristã, implica em um autoesvaziamento constante, a vaidade precisa de muitas malas para que seu conteúdo seja acondicionado. É ela que prenuncia a queda (Pv. 16.18), ao cortar os necessários "cabos do freio", que chamamos de prudência, os quais evitam o desastre. Uma vez sem freio, é preciso celebrar quando a vida, a história, as circunstâncias fornecem uma área segura com brita para a "frenagem". Desta feita, a ação da PF deveria ser celebrada por Malafaia como uma oportunidade para a parada, reflexão e arrependimento.
Outro problema decorrente da vaidade são os "papagaios de pirata", aquela turma sempre em volta, por cima do ombro, buscando sair na foto. Tais apoiadores são repetidores da malfadada expressão usada por Malafaia. Aduladores por vocação e com perceptível falta de brilho (e de brio!), estão sempre torcendo a favor, mesmo diante do iminente desastre. Tais lideranças também trazem suas próprias malas, o que as impede de ajudar a carregar as cargas (Gl.6.1-2), de executar o serviço de mensageria, ainda que para aquele que aprenderam a venerar.
A terceira mala é a dos acordos, sejam eles publicáveis (Jz.11.11) ou não (Gn.20 2.-4). Se os áudios vazados do celular apreendido de Bolsonaro e liberados no transcurso do inquérito já foram suficientes para causar certa estranheza e desconforto em alguns, então, apertem os cintos: o celular apreendido de Malafaia tem o potencial de catapultá-lo para uma edição revista e atualizada de Mauro Cid, o tenente-coronel do Exército, ajudante de ordens de Bolsonaro. Caso isto se confirme, espero honestamente que todo conluio envolvendo pastores seja investigado, julgado e desfeito. Na minha percepção, uma vez que os evangélicos perderam a capacidade de discernimento espiritual, a ponto da estranheza maior ser o baixo calão do vocabulário pastoral e não a discrepância que é, por exemplo, um pastor andar com seguranças armados, torna-se premente que a sociedade civil ilumine o que não conseguem, ou fazem questão de não ver.
Suspeito, e o tempo dirá se tenho razão, de que o celular de Malafaia está mais para tampa de bueiro do que para capa do livro "Poliana". Dentre as muitas possibilidades, as quais a PF poderá confirmar, talvez sejam encontrados ali: vestígios e indícios do esquema de irradiação das fake news oriundas do gabinete do ódio para lideranças evangélicas; tramas, as mais diversas; combinações com pastores e contra pastores, neste último caso, de linha mais democrática; origem controvertida de certos recursos, uma vez que alguns que doam altos valores, ao contrário do ensino de Jesus (Mt. 6.3-4), fazem questão de aparecer (vide o caso da operação Timóteo da Polícia Federal); acertos financeiros envolvendo apoio; o plano por trás da recuperação judicial de sua editora (Central Gospel), entre outros.
A quarta mala é a do distanciamento cada vez mais progressivo do ideal cristão exalado no segundo testamento. O texto bíblico sinaliza como resultado da presença do Espírito o Seu Fruto (Gl.5. 22-23). Espera-se, então, que amor, paz, alegria, bondade, benignidade, mansidão, fidelidade e domínio próprio sejam visíveis na vida de um cristão, ou pelo menos na tentativa sincera dele em permitir que o Espírito Santo siga transformando sua vida para que assim apareça. A literatura paulina também recomenda sabedoria no agir e uma palavra agradável, cheia de graça e temperada com sal, fruto de alguém que discerne a resposta que deve ser dada (Cl.4.5-6), tanto na sua forma quanto em seu conteúdo.
Ainda no segundo testamento encontramos a petrina recomendação:
"Por causa do Senhor, estejam sujeitos a toda instituição humana, quer seja ao rei, como soberano, quer seja às autoridades, como enviadas por ele, tanto para o castigo dos malfeitores como para o louvor dos que praticam o bem. Porque assim é a vontade de Deus, que, pela prática do bem, vocês silenciem a ignorância dos insensatos. Como pessoas livres que são, não usem a liberdade como desculpa para fazer o mal, pelo contrário, vivam como servos de Deus. (I Pedro 2.13-16, grifo nosso).
Ao contrário do reiterado ensino de Malafaia, o texto bíblico indica que muitos cristãos tinham em suas malas a disposição para sofrerem injustiças por conta da sua fé e do seu testemunho. São os "crentes otários" segundo o pastor do bairro da Penha, mas que segundo Apocalipse (não o dos trópicos) são os mártires, aqueles que "foram mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que deram" (Ap. 6.9).
O episódio envolvendo o desembarque de Malafaia no último dia 20 de agosto poderia ser um momento de inflexão para sua caminhada. O tempo do seu desembarque do bolsonarismo e desta acintosa e estridente postura no espaço público. Quem sabe até um reencontro com aquela vocação, aspiração inicial. Um resgate de sua versão 1.0 que talvez o fizesse se deslindar de situações que pouco ou nada têm a ver com a dimensão do serviço na qual está envolto o discipulado de Jesus e o próprio ministério pastoral. Malafaia, se foi profeta algum dia, deixou de sê-lo faz tempo. O que temos para hoje é alguém aliançado com políticos e com projetos de poder muito bem definidos.
Ao estocar vento em suas muitas malas, Silas Malafaia colheu furação (Os. 8.7). Justamente na hora dos "Euro-Aquilão" da vida (At. 27) é que temos clareza de que muitas cargas, malas que incorporamos à nossa viagem, à nossa travessia/peregrinação neste mundo, podem e precisam ser descartadas. Os avisos foram muitos; mas parece que Malafaia ou se recusou a lê-los ou preferiu não discerni-los.
Para alguém que nunca foi conhecido por uma linha ideológica e por uma fidelidade política, Silas Malafaia tem uma ótima oportunidade e bom pretexto para abandonar o barco bolsonarista antes do naufrágio. A não ser que seu celular mostre que ele se permitiu ser amarrado ao mastro do navio. Neste caso, só lhe restaria fazer coro com a orquestra do Titanic em sua última e mais tocante apresentação.
Finalizo este texto trazendo o grande Gilberto Gil para esta conversa, na esperança que ele não fique indisposto com o convite. Gil estava certo ao cantar: "anda com fé eu vou, que a fé não costuma faiá". De fato, o MAL-(a)-FAIA; já a fé, com toda sua beleza, engajamento e simplicidade, não.
Sérgio Dusilek é bacharel em Ciências Contábeis (Centro Universitário UNA-BH/MG-1994) e em Teologia (STBSB-RJ/1998). Pós-graduado em História da Filosofia (UGF/2000). Mestre (2015) e Doutor (2021) em Ciência da Religião (UFJF/MG). Pesquisador em Estágio de Pós-Doutoramento pelo PPG Letras (UEMS) com Bolsa CAPES. Pastor Batista.