Internacional

Os regimes da espetacularidade e do caos estão acordados com o neoliberalismo, que não muda apenas a economia, mas contamina toda sociedade com modos de (des)organização e seus valores

 

Desde que assumiu a gestão dos Estados Unidos, Trump aparece onipresente. Ele brota em todo lugar. Dia sim e dia sim, ele habita arrogante as realidades geográficas e virtuais. Ele trafega em telas e em jornais, com seus absurdos, atitudes, ameaças, bravatas, desdém, projetos, jeitos, trejeitos e tudo mais. Ele se mostra, sem dúvida, capaz de encantar apresentadores, influenciadores e públicos, em especial americanizados e bolsonaristas. Ele abre e dita espaços e tempos. Sua figuração histriônica domina a agenda pública.

Em aparência, seria fácil cair na armadilha de afirmar ou negar seus dotes e poderes. Por certo, eles existem, pois para se chegar à presidência dos Estados Unidos da América pela segunda vez, de modo tão incisivo, não se pode ser para um ninguém. Mas, um indivíduo para desabrochar exige lidar com circunstâncias, nas quais possua sintonias finas e para as quais tenha habilidades. Sua trajetória existencial, profissional e política exibe muitas dessas prerrogativas societárias.

Em texto recente, Frei Beto lembrou do passado de Trump como animador de auditório, com seu show The Apprentice (O aprendiz), uma espécie de reality show de competição empresarial, na qual ele fabricou sua imagem de destemido, durão e arrojado negociante. Um ser do universo dos negócios e da mídia. O mundo do show e seu desejo de se tornar homem show ditou seu regime espetacular. O cotidiano destroçado a cada momento por lances ditos atrevidos, rompe com o ordinário da vida para possibilitar e impor o registro do espetacular. Ele deixa a tranquilidade da normalidade para transitar no extraordinário, qualquer que seja seu entendimento, e chamar a atenção do público, que o observa como consumidor atento.

Trump não pode descer do palco, ao qual se mantém acorrentado. A vida desfigurada em mero show, com seus truques e suas ilusões espetaculares. A espetacularidade aprisiona e seduz. Trump é espetáculo. Como tal, ele transita na mídia governada pelo regime da espetacularidade. Para a mídia capitalista tudo deve se tornar espetacular. A sintonia fina entre Trump e a mídia, submetida ao capitalismo, se materializa na sua repetitiva aparição simbólica. Mesmo a crítica, ensejada por alguns poucos, parece domesticada pelo ditado: falem mal, mas falem de mim. No espetáculo midiático, Trump é imperador.

A sociedade do espetáculo, descrita em tons polêmicos e por vezes problemáticos por Guy Debord em livro publicado no ano de 1967, foi impactada de modo substantivo pelas redes socio-tecnológicas, que provocaram amplas mudanças no mundo, instituindo uma vida planetária em tempo real e impondo, além da visibilidade, também a urgência da instantaneidade como um parâmetro da existência pública e privada. O alargamento do espaço, em combinação com a aceleração do tempo, configura a contemporaneidade. A temporalidade do imediato exige respostas velozes em todos os âmbitos. Na comunicação isso se mostra evidente, mas na política encontra dificuldades, pois como sempre lembrou Pepe Mujica, a democracia exige paciência. Trump, em afinidade com as demandas do abrupto, não tem pudor em desconsiderar as regras da democracia. Via redes sociais, seu lar, ele inflaciona opiniões, decisões, aparições, bravatas, sem ouvir ninguém, mesmo aliados ou alguém, quando é legalmente indispensável. As delicadezas diplomáticas, por exemplo, são implodidas e arremessadas na lata de lixo da história, sem nenhum pudor e constrangimento. A imediatez e a onipresença contam mais do que tudo para ele. Qualquer veleidade democrática ou humana desaparece.

Se a contemporaneidade já foi chamada de sociedade do espetáculo e de planetária em tempo real, com todas suas tentações, agora ela se tece confeccionada pelo caos, modo de operar a esquisita “política” de extrema direita, tão distante e contrária daquela política antiga ou, em especial, moderna, que pretendia como meta sempre a construção de algum consenso, por menor que ele fosse. Agora, o mote orientador que interessa à “política” é o atrito persistente, mobilizando ódio e agitando agrupamentos contra inimigos sempre inventados. “Política” de caos e não consensos, como demonstrou Giuliana da Empoli. Nada de construção costurada de consensos, ainda que provisórios e temporários, mas sempre tensões constantes e até surpreendentes, mesmo envolvendo tradicionais aliados.

A vida política democrática, que pretende acolher os conflitos legítimos, com seus ritos e procedimentos firmados, há de ser negada e em seu lugar a desregulação, já cantada na economia neoliberal, avança draconiana sobre a política, para conformar uma outra arena de disputas, na qual tanto os adversários passam a ser inimigos a destruir, quanto às violências, simbólicas e até físicas, são acionadas a todo instante como luta pelo poder, sem qualquer restrição. O caos Trump não é irracional, como diversos afirmam. Ele mobiliza uma outra racionalidade, tornada agora instrumental, de controle e de domínio. Ele aciona o caos como estratégia “política”, confeccionada em tramas bem diversas das políticas antiga e moderna. Ele não pode ser entendido nos moldes políticos vigentes até hoje. Ele detona tais modelos e impõe a força do mais forte, em uma arena pública sem limites e cada vez mais perplexa. Nela agora vale tudo.

As rupturas da normalidade tornam-se palanques sociais. Elas cultivam visibilidades e tensões persistentes. Os procedimentos espetaculares e caóticos se contaminam. Eles se retroalimentam em sintonia mais que fina com o pandemônio do mundo capitalista atual.  A afinidade entre os dois processos, espetacularidade e estratégia do caos, que invadem a atualidade parece evidente. Ambos, incessantemente, minam o cotidiano, seja para fugir às normas civilizadas de convivência, bem ou mal já acertadas, mesmo com suas imensas desigualdades e privilégios, seja para minar as regras também, bem ou mal, pactuadas do jogo político atual, com todas as limitações, avanços, retrocessos e as ambiguidades da política associada à restrita democracia liberal-representativa. As vidas social e política, destituídas de parâmetros, são invadidas e dominadas pelo espetáculo e pelo caos. Ou seja, pela mal chamada “lei” do mais forte.

No novo modo de fazer “política”, em termos problemáticos, nem a verdade está fora de perigo. Ela é pisoteada sempre que necessário para permitir e “legitimar” arbitrariedades. Para Trump e todos os simpatizantes pelo mundo deste arremedo de “política”, mentir faz parte do jogo em um ambiente de “pós-verdade”, instalado pelas redes. Cobrar verdades frente às enxurradas de mentiras, manipuladas para calar verdades e desviar atenções, parece não surtir efeito, a não ser que os agentes políticos, sociais, econômicos, culturais e midiáticos assumam compromissos com regras básicas da grande política, aquela que não se deixa levar por mesquinhos conflitos e interesses. Na sociedade capitalista talvez isso seja pedir demais.

Outra afinidade emerge como marcante no panorama atual. O projeto do neoliberalismo e de sua versão ainda mais agressiva, o ultraneoliberalismo, guardam uma sintonia fina com a destruição de parâmetros de convivência civilizada e, em especial, de direitos conquistados e pactuados. Em seu lugar, a entronização das meras regras de mercado governa a sociedade, com um Estado cada vez mais mínimo, tendendo ao inexistente. Os regimes da espetacularidade e do caos estão acordados com o neoliberalismo, que não muda apenas a economia, mas contamina toda sociedade com modos de (des)organização e seus valores. Trump nasce e expressa, com toda brutalidade, tal estilo de vida, pois ele representa a radicalização à extrema direita da desmontagem da ordem pactuada, mesmo com todos os limites de classe instalados na sociedade capitalista.

Caetano Veloso cantou em Fora de ordem: Alguma coisa está fora da ordem, fora da nova ordem mundial. Hoje, talvez melhor, subverter: fora da nova (des)ordem mundial. Exemplo maior: o instantâneo desmonte, via taxações, algo aleatórias, dos princípios do comércio internacional, desnorteando todos, aliados e inimigos mundo afora. Medidas antes negociadas por meio da Organização Mundial do Comércio (OMC), sob a égide dos Estados Unidos da América, como a entronização do livre comércio e a crítica ferrenha do protecionismo, passaram a serem banidas como indesejáveis, sem mais. Por óbvio, que tais valores antes não foram totalmente cumpridos pelas potências capitalistas, norte-americanos à frente, mas eles balizavam, bem ou mal, o mercado internacional, antes dele ser desorganizado pelo mundo taxado, unilateral e arbitrariamente, pelo mais forte.

Trump é a destruição do construído sob a égide dos Estados Unidos e a afirmação agressiva de um cenário, no qual qualquer partilha de poder está sob suspeita, os Brics que o digam. Trump busca restaurar o poder imperial do mundo unipolar, em processo de pronunciada corrosão. As crescentes tensões e conflitos em tal contexto tornam-se riscos eminentes e potentes de guerras e tragédias. O mundo anda por um fio. A torcida é que nosso pé seja da largura do arame, como dizia Gonzaguinha.

Não bastasse todas as afinidades elencadas, Trump hoje está à frente da maior potência do planeta e da mais gigantesca máquina de guerra já imposta à humanidade. O presidente Lula tem, insistente, denunciado os enormes e crescentes gastos militares das grandes potências mundiais, agora somados aos definidos pela atitude servil da União Europeia. Aliás, a indústria armamentista, norte-americana na liderança, constitui colossal força política contra a paz mundial. Armar guerras é sua essência. Seus desejos e interesses são sempre as guerras e não a paz. A destinação de todos esses recursos para fins mais nobres certamente melhoraria e redesenharia o mundo.

Entretanto a cotidiana visibilidade de Trump não decorre simplesmente da cadeira, nada desprezível em termos de força, inclusive bélica, que ocupa. Biden e diversos outros presidentes norte-americanos estiveram também nesse lugar de poder. A maioria deles não teve habilidade, como ele, para tecer sintonias com as circunstâncias presentes, goste-se ou não. Tal poder nas mãos e na cabeça do personagem aqui traçado constitui-se em perigo eminente para o planeta e para a humanidade.

O arrogante poder de Trump combina tal conjunção de afinidades, que potencializam seus dotes e sua onipresença, mesmo estando à frente de um império em franca decadência. No presente caso, os riscos para a humanidade tornam-se ainda maiores, pois a tentação do freio brusco da história pode ser trágica para o planeta e a humanidade. Impérios em degradação acionam imensa possibilidade de desastres societários e humanos. Seu apoio irrestrito ao genocídio em Gaza é prova maior da desumanidade e da barbárie alojada na Casa Branca.

A prepotência de Trump desnuda a oligárquica democracia norte-americana. Ela já há algum tempo só é capaz de eleger bilionários e excluir os demais seres humanos. Trump escancara ainda mais seu crescente déficit democrático. Os Estados Unidos da América, em nome da democracia e dos direitos humanos, têm apoiado golpes, atentados e guerras mundo afora, além de derrubar presidentes eleitos e instalar ditadores. Por tabela, Trump expõe o capitalismo em todas suas crueldades contra o planeta, ao se desvencilhar dos acordos internacionais em defesa do meio ambiente, e contra explorados e oprimidos, quando brutalmente nega direitos humanos-sociais e persegue imigrantes.

José Carlos Capinam, em seu belo, longo e questionador poema Inquisitorial, de 1965, poetisa que galhofamos dos descompassos entre discurso e realidade, ainda que ambos tenham sido coerentes no tempo no III Reich. A postura histriônica de Donald Trump, suas muitas aparentes incoerências e bravatas, não podem fazer esquecer seu poder, sua capacidade de expressar e difundir a barbárie na contemporaneidade, mesmo causando galhofas. Desconhecer ou menosprezar seu poder é a pior alternativa para se combater a barbárie, que ele representa para o planeta e para a humanidade. Seu enfrentamento requer visão aguçada de suas forças para poder barrar sua barbárie e restabelecer a capacidade de construir futuros utópicos.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)