Política

A PEC ganhou popularidade como da bandidagem. Em uma conjunção astral, derivada da constelação potente de estrelas, ela ganhou redes e ruas, por meio de belas e massivas manifestações, que mobilizaram cidadania e esperanças

São Paulo (SP), 21/09/2025 Manifestantes participam de ato contra a PEC da Anistia e da Blindagem, no MASP. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A Câmara dos Deputados nas altas horas da madrugada, em inusual acesso de trabalho, votou uma proposta de emenda constitucional (PEC), que denominou de prerrogativas. A PEC, em si já indigesta, teve como sobremesa a votação do voto secreto, na surdina das artimanhas. Trata-se da ampliação de prerrogativas para trazer mais privilégios aos deputados em um Brasil, que combina cruelmente carências e privilégios. Nada casual a palavra prerrogativas ter como sinônimos: privilégio, regalia, vantagem, benefício, exclusividade, direito, faculdade, imunidade, foro, apanágio. Já na origem seu caráter estava de algum modo escancarado.

A palavra prerrogativas, tecida pela maioria da Câmara, bolsonarismo mais centrão, em retumbante votação, designou a PEC amplamente vitoriosa. Mas a minoria dos deputados já preferia chamar a PEC por nomes mais incisivos: blindagem e/ou impunidade. O tom crítico dos segmentos parlamentares minoritários foi atropelado na soturna sessão, junto com suas objeções, pela esmagadora vitória da união entre bolsonaristas e centrão, aliados ao presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta. Ele é o maior responsável por pautar a trama, em mais um desafio ao governo Lula.

Os noticiários, críticos às ditas prerrogativas, logo começaram a divulgar e a se opor à PEC, agora nomeada amplamente de PEC da blindagem ou da impunidade, a depender dos veículos e jornalistas, apesar da vitória esmagadora das prerrogativas. A cautela da crítica, cuidadosa em nome da institucionalidade, se expressou nas mesmas palavras escolhidas pelo noticiário: blindagem e impunidade. Assim, as prerrogativas, na linguagem da maioria parlamentar, passam por uma primeira mutação. Em seu lugar, PEC da blindagem ou da impunidade.

A PEC da impunidade ou da blindagem traduz preocupações de muitos deputados em serem punidos por crimes passados, presentes ou futuros. Necessário reforçar algo como a blindagem-impunidade de largas parcelas de deputados para evitar serem processados-condenados por seus crimes, diversos deles já consumados e outros em andamento.

Alguns críticos imaginam, além do mais, que a PEC pode favorecer criminosos, pois eles comprariam eleições para se tornarem deputados impunes e evitar processos. Essa versão da crítica ainda admite uma separação, com certa nitidez, entre determinados deputados e os criminosos, supondo uma ausência de bandidos no ambiente parlamentar. Tal distinção nítida parece hoje não se sustentar, em plenitude, pois não só o número de deputados envolvidos em processos em tramitação é elevado, como as denúncias sobre muitos deles aumenta a cada escândalo, apesar das potentes blindagens já existentes em setores da mídia, do Judiciário, do meio empresarial etc.

As palavras expressam significados. Nas entranhas dos processos de escolhas, elas tecem também os modos pelos quais os agentes políticos percebem ou querem perceber o mundo e como eles desejam publicizar o que buscam impor como realidade. As escolhas das palavras não comportam neutralidade. Elas, ainda que inconscientes para desavisados, são artefatos da luta política cotidiana, sempre acentuada em momentos críticos como o vivido na atualidade.

Sem os pruridos limitadores de qualquer institucionalidade, a nomeação da PEC, quando ganhou a cena pública, sofreu nova mutação, dado o acúmulo acintoso e explosivo de mais privilégios para os deputados. Não mais prerrogativas ou impunidade e blindagem, como nas versões críticas mais leves. Agora passa a ser dita como PEC da bandidagem, termo escolhido pela população, em sua acidez crítica aos privilégios, para designar o acontecido.

Assim, a PEC obteve notoriedade. A PEC ganhou popularidade como da bandidagem. Em uma conjunção astral, derivada da constelação potente de estrelas, ela ganhou redes e ruas, por meio de belas e massivas manifestações, que mobilizaram cidadania e esperanças. Ela se conjugou, nas ruas e redes, com a luta contra a anistia e com outras estrelas menos reluzentes, mas não menos fundamentais, tais como: a isenção do imposto de renda, a taxação dos super-ricos, o fim da jornada 6x1 e questão de segurança pública. Tal constelação de estrelas se tornou mobilizadora e potencialmente explosiva, ainda que suas estrelas tenham brilhos ainda(?) desiguais.

A nomeação PEC da bandidagem não se atém ao universo de possibilidades. Ela constata a grave circunstância vivida hoje por setores amplos da Câmara dos Deputados, que estão sendo investigados e processados, além de suspeitos potenciais de crimes. Some-se a tal situação delicada, a análise de atitudes bastante controversas tomadas pela Câmara dos Deputados e seus dirigentes em relação aos temas colocados em pauta para votação. Enquanto assuntos com grande popularidade são engavetados-esquecidos, temas-bomba estão sendo atirados em regime de urgência.

A escolha da denominação popular de PEC da bandidagem parece bem mais adequada e instigadora para chamar atenção sobre a profunda corrosão da representação parlamentar no Brasil. Como nomear uma Câmara dos Deputados que não coloca em pauta assuntos amplamente apoiados pela população, conforme constatado por inúmeras pesquisas, tais como a isenção do imposto de renda para aqueles que ganham até cinco salários-mínimos; taxação dos super ricos, dos bancos e das bets e fim da jornada 6x1? Como denominar uma Câmara dos Deputados, que em lugar de temas de grande interesse e apoio popular, vota mais privilégios para os deputados, mais proteção para parlamentares suspeitos de crimes e busca dar um jeitinho para um deputado que, fora do país, não trabalha desde o início do ano, ganha seus salários e, em lugar de atuar no parlamento, nos Estados Unidos atenta abertamente contra os interesses da nação, do empresariado, dos trabalhadores e do povo brasileiros?

A Câmara dos Deputados, já sob suspeita por essas e outras atitudes, com a votação da PEC da bandidagem e do voto secreto, contribuiu sobremodo para tecer a conjunção astral, que aglutinou a constelação explosiva: bandidagem; anistia; não taxação dos super ricos; protelamento da votação da isenção do imposto de renda; esquecimento do fim da jornada 6x1 e retardamento da crucial do tema da segurança pública e violência. A postura escandalosa da Câmara dos Deputados e a votação de tal pauta-bomba serviram como estopim para as animadas mobilizações nas redes e nas ruas em contraposição feroz ao corporativismo desenfreado da Câmara.

A potente conjunção astral em sua constelação acolhe estrelas de distintas luminosidades. As cintilantes estrelas, denominadas PEC da bandidagem e voto contra a anistia, mostram seu esplendor nas ruas e redes. A colagem entre os temas diminuiu as possibilidades de tramitação e vitória das duas temáticas. A taxação dos super ricos, a isenção do imposto de renda e, em especial, o fim da escala 6x1 têm visibilidades mais reduzidas. Setores políticos da mídia, do empresariado e de partidos capitalistas tentam apagar seus brilhos. Manter a contestação em sua plenitude, sem deixar que ela seja dilacerada, é essencial para a força do movimento, para a defesa e o aprofundamento da democracia, da república e da soberania brasileiras, que passam hoje por uma prova cabal.

A conjuntura que se instala é desafiadora para os democratas de esquerda. As ruas e redes deixaram de ser capturadas-dominadas pela extrema-direita bolsonarista e por seus fundamentalismos e se abriram, de modo vivo, às disputas político-culturais-ideológicas. A presença de setores das classes médias e de artistas-fazedores da cultura permitiu refazer dinâmicas e dar vitalidade às redes e às ruas. Bonito ver esses agentes críticos nas redes e nas ruas, antes contaminadas pelo vírus da extrema-direita, que transforma todos seus adversários em inimigos a destruir. As mobilizações amplas nas ruas e nas redes oxigenam a frágil democracia brasileira, que tem vivido instantes alvissareiros, a exemplo do julgamento de golpistas de alto escalão, apesar da histórica debilidade democrática do país.

Muitas indagações florescem na conjuntura. As forças democráticas e de esquerda serão capazes de entender o novo instante e se articular, a partir dessas e de outras pautas, com amplos segmentos da população brasileira, das classes médias, das políticas identitárias e do meio cultural, associando demandas democráticas mais gerais com bandeiras específicas desses coletivos?  Os democratas de esquerda terão perspicácia de surfar bem nessa nova onda?

Ou ainda, será que as forças democráticas de esquerda serão capazes de equacionar bem a defesa da democracia e da república com a necessária crítica de suas limitações atuais, derivadas de sua vigência na sociedade capitalista, que inibe seus aprofundamentos e renovações? A combinação inteligente entre defesa e crítica simultâneas se mostra imprescindível para não colocar em cena apenas a manutenção da democracia liberal-representativa em constante crise, por sua incapacidade de ser um governo do povo para o povo. A combinação se apresenta como vital igualmente para não correr o risco de uma crítica, que sem delicadeza política, destrói valores e procedimentos democráticos, como busca a extrema direita.

Impossível defender a democracia apenas na resistência, sem apontar seus defeitos e, em especial, sem inovar procedimentos democráticos para construir a democracia ampliada com capacidade de encantar. Os democratas de esquerda, que só recentemente, sem pestanejar, assumiram a via democrática como caminho prioritário para a transformação da sociedade capitalista, não podem titubear e ficar seduzidos pelo modelo histórico datado da democracia liberal-representativa. Eles precisam combinar crítica, resistência e invenção, para salvar, agilizar e refundar a democracia, como democracia ampliada para todos.