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A felicidade era possível, mesmo em meio a um mundo ainda injusto, desigual. Para Virgínia, Theo representou um amor jamais experimentado antes. E o amor dele por ela, especial: se sentia muito amada.

Eles se amaram.
Muito.
Theodomiro e Virgínia.
_ Theo foi e sempre será o amor da minha vida.
Virgínia tem certeza disso.
Retraída, tímida, não obstante, admite:
_ Não querendo parecer arrogante, sei: também fui o amor da vida dele.
Uma relação de amor, afeto, carinho durante 32 anos.
Mar de rosas, não.
Muitos problemas, como em qualquer relação.
_ Mas, um amor muito sólido.
_ Capaz de sobreviver aos percalços.
Theo cuidava desse amor, tanto quanto Virgínia.

Ela guarda duas coisas ditas por ele.
Muito lindas.

Felicidade num mundo injusto
Estão lá no fundo do coração dela.
_ Nos dois casamentos anteriores, fui escolhido.
_ Com você, eu escolhi.
A segunda coisa, reclama nota prévia.
Até encontrar Virgínia, Theo, marcado pela formação revolucionária, calcada num certo tipo de marxismo, não acreditava fosse possível alcançar a felicidade enquanto vivesse num mundo socialmente injusto.
Quase como se fosse trair a Revolução.
_ Depois de encontrá-la, começar a desfrutar da nossa relação, mudei de ideia.
A felicidade era possível, mesmo em meio a um mundo ainda injusto, desigual.
Para Virgínia, Theo representou um amor jamais experimentado antes. E o amor dele por ela, especial: se sentia muito amada.
_ Vai soar muito ridículo o que vou dizer: com ele senti o amor que pensava somente existir nas comédias românticas.
Aquele amor a preencheu.
Profundamente.
E a sedimentar o amor, uma grande dose de admiração recíproca.
_ Eu gosto muito da frase que diz que a gente gosta porquê e ama apesar de.
_ Nós dois nos amávamos apesar de nossos defeitos.
Evidente, por obviedade, os dois tinham, como qualquer ser humano, muitos defeitos.
Tinham diferenças.
_ O amor, no entanto, era maior.
Não foi fácil juntar duas famílias e filhos de casamentos anteriores.
_ Essa coisa romantizada de “os seus, os meus e os nossos” só existe na ficção.
_ A realidade da vida cobrou de nós muita determinação, muito amor para ficarmos juntos.
Theo, três filhos homens do primeiro casamento, queria muito ter uma filha, e queria logo.

Pare de tomar a pílula
Vivia cobrando de Virgínia:
_ Pare de tomar anticoncepcional.
Virgínia ponderava.
Também queria ter um filho ou uma filha com ele.
Mas, devagar com o andor.
Esperar por um momento mais adequado.
Depois de feito o concurso para juiz, para o qual os dois se preparavam.
Mas, Theo, como bom revolucionário, era determinado, insistente.
Água mole em pedra dura tanto bate até que fura.
Virgínia disse está bem e parou de tomar a pílula.
De si para si, pensou: tenho muito tempo tomando a pílula, e a gravidez não surgirá logo.
Hoje, refletindo, se pergunta de onde teria tirado tal ideia, onde buscara sustentação científica.
Quem sabe, ela também quisesse, e buscava argumentação para tomar a iniciativa.
O inconsciente agiu.
Parou a pílula.
Menstruou uma vez apenas.
E engravidou.
Assim, o sossego para o concurso acabou.
Virgínia passou grande parte do período da preparação para o concurso, grávida, e enjoando muito.
Mas, nada de reclamar.
Os dois, muito felizes.

Uma menina
Theo dizia a ela:
_ Tenho certeza: será menina.
Considerando a possibilidade de ser outro menino, Virgínia resolveu fazer o que não fizera nas duas gestações anteriores: quis saber o sexo do bebê antes do nascimento.
Os dois ali, à beira da cama, cheios de ansiedade.
A médica, então, anuncia: menina.
Explosão de alegria, dos dois, mais ainda de Theo.
Ele repetia:
_ De qualquer jeito, voltaria da maternidade com uma menina.
Se o exame desse menino, ele trocaria por uma menina no hospital mesmo.
Brincava assim, tal o desejo por uma menina.
Camila nasceu em dezembro de 1991.
Theo, encantado.
Fascinado.
Entregue.
Pai exemplar.
Fazia tudo: dava banho, trocava fralda.
_ Só não dava de mamar porque não tinha peito.
Queria a menina batizada Virgínia.
_ Não concordei.
Empacou.
Não queria escolher outro nome.
Virgínia, então, deu a ele três opções: Lívia, Camila ou Sofia.
Nada de Virgínia.
Emburrado, saiu do quarto da maternidade para o cartório dizendo:
_ Vou registrar como Virgínia.
Teve medo das ameaças da mulher, e acabou por escolher Camila.
_ A filha foi o outro grande amor da vida dele.

Premonição
Theo sempre foi uma pessoa dado a prezar muito a própria autonomia.
Não gostava de depender de ninguém.
Um espírito profundamente solidário, sempre pronto a ajudar quem precisasse.
No entanto, uma dificuldade enorme em ser ajudado, em ser dependente.
_ Tinha um medo enorme de perder a lucidez.
Talvez porque a mãe teve demência senil e vários AVCs, um deles, devastador, a deixá-la em cima da cama por vários anos.
Vivia pedindo a Virgínia:
_ Não me deixe vivo se isso acontecer comigo.
Ao médico dos dois, Márcio Sanctos, dizia a mesma coisa.
Uma espécie de adivinhação, parece.
Premonição, quem sabe.
Como se visse o futuro dele.
No dia 4 de agosto de 2018, um AVC devastador o alcança.
A cirurgia a que foi submetido, de alto risco.
Tinha de ser feita, no entanto.
Não fizesse, e morreria.
_ Lembro-me de perguntar ao médico como ele ficaria após a cirurgia.
Não havia resposta segura, o médico disse.
Esperar para ver.
Theo, após dias de UTI e hospitalização, evidenciou graves prejuízos na cognição e memória, apesar de continuar andando e falando.

Um ser dependente
Cinco anos de um lento declínio.
Fortemente marcado por uma demência vascular, instalada por conta do AVC, agravada ao longo do tempo.
_ A pessoa autônoma, ativa e altiva deu lugar a um ser completamente dependente.
Tudo que ele não queria.
Não tinha muita clareza de que sofrera um AVC.
_ Algumas vezes, ficava pensativo e dizia que havia algo errado, raros momentos de lucidez, diante dos quais eu não sabia se ficava contente ou triste.
Por um lado, era bom vê-lo com alguma lucidez.
Mas ele passava desse quadro a um outro, de profunda depressão por se dar conta de que “havia algo errado”, uma forma confusa de constatar a situação dele.
Era então tomado pela tristeza.
Virgínia o acompanhou a cada minuto nesses cinco anos.
Muitas idas e vindas aos hospitais.
Doze internações.
E ela, acompanhando o sofrimento dele.
Ela e doutor Márcio já haviam tomado uma decisão: ele não seria submetido a nenhuma medida invasiva (entubação, reanimação, hemodiálise).
Respeitar o pedido, a determinação dele.
Decisão compartilhada por todos os filhos.
Isso constava no prontuário dele, mas Virgínia, a cada internação, tinha de repetir a ladainha.
Numa ocasião, Theo chega à emergência com a saturação muito baixa.
Médico diz: recomendação é entubá-lo, e pergunta a Virgínia:
_ Você mantém a decisão?
Difícil, mas disse sim, mantinha.
Theo, no entanto, muito forte, saiu do hospital e ainda viveu durante bom tempo.

Dura travessia
Não foi uma travessia fácil para Virgínia.
Theo fora sempre para ela o companheiro, o colega, o amigo, o amparo, o porto seguro.
Agora, transformado numa criança, dependente em tudo.
Coube a ela sair do papel de mulher para o de mãe.
Não é à toa: de vez em quando Theo a confundia com a mãe.
Experimentou um estranho sentimento: sentia saudade de alguém que estava fisicamente ao lado dela.
Triste, doloroso.
Algum consolo: a vida deu a ela a oportunidade, naqueles anos decorridos, de ir se despedindo dele, do amor da vida dela, aos pouquinhos.
Não se esquece, no entanto: mesmo durante o período pós-AVC, houve momento de carinho, de alegria, bom humor.
Theo continuou com as tiradas dele, quando alguma lucidez despontava.
_ Comunista não sente frio, minha filha.
Única pessoa a quem ele reconheceu até o final.
_ Posso dizer: o nosso amor sobreviveu até mesmo ao AVC. Morreu em casa e estive ao lado dele até o último suspiro.
Minha amizade com ele, profunda, rara.
Fui visitá-lo.
Com Carla, minha companheira, amor de minha vida, e o filho dela, Iago.
Maio de 2022.
Quando entrei no apartamento, olhei à direita, eu o vi sentado à mesa, e gritei, chamando-o bem alto, da maneira feita desde os tempos de prisão:
_ Theodoroso!
Ele, sem pestanejar, respondeu:
_ Emerenciano! – modo dele me chamar desde a Penitenciária Lemos Brito.
De alguma forma, uma alegria profunda ser reconhecido por ele.
E nos abraçamos, demoradamente, como cabe a amigos eternos.
_ Coisa rara, disse Virgínia.
_ Ele não reconhecia mais ninguém.
Só a ela.

Até o fim
Saudade, uma saudade imensa.
Como não sentir?
_ Uma ausência ainda muito presente, mas a vida aos poucos vai voltando e a gente vai tocando.
_ Quando a tristeza bate mais forte, me lembro dele dizendo que tudo passa, que não há noite que dure para sempre.
_ E vocês viveram muitas noites difíceis, né?, ela me pergunta.
Reflete:
_ Theo sempre teve uma força interior muito grande e é nela que tento me inspirar para continuar levando a vida da forma como ela merece ser vivida.
Foi dos amigos mais queridos. Já devo ter dito, mas repito: tenho um filho com o nome dele, uma óbvia homenagem.
Atravessamos momentos muito difíceis juntos, nas prisões da ditadura. Ele, de uma solidariedade extrema, sempre.
Uma vez, abril de 1974, tive uma otite muito forte, a me causar dores intensas. Na cela dele, me dava comprimido de meia em meia hora para tentar aplacar as dores.
Os demais companheiros, ele inclusive, fizeram uma carta muito dura ao diretor do presídio, Osmundo Tosca, reclamando da falta de assistência.
Tosca me transferiu para a enfermaria, e trancou todos os demais – durante o dia, as celas permaneciam abertas. Houve, então, a decisão de fazer uma greve de fome. Me mandaram recado, liberando-me. Não topei. Entrei em greve de fome, e me curei: 13 dias sem comer nada, só bebendo água.
O diretor teve de recuar, até porque o juiz auditor, sim, o juiz auditor considerava nossos pontos de vista, e não concordava com o arbítrio do diretor.
Vivemos, assim, juntos, experiências muito fortes, dias difíceis, e sempre se contava com a mais profunda solidariedade de Theo.
Pouco mais de dois anos passados daquele dia, perdi, também, o amor de minha vida.
Assim, sei perfeitamente o tamanho do sofrimento de Virgínia.
E manifesto minha mais profunda admiração pelo amor dela, por ter conseguido amá-lo mesmo em meio ao sofrimento, quando então o amor é verdadeiramente testado.
Vivi tudo isso com os dois anos do câncer de Carla França, a produzir a morte injusta dela.
A quem amei ainda mais, e amarei sempre.
De Theo, amizade eterna, insisto.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros