Política

O intervalo de quase dez anos entre a 4ª e a 5ª Conferência é um hiato que expressa o refluxo democrático e a fragilização institucional das políticas de igualdade de gênero, sobretudo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff

Após quase dez anos da última Conferência Nacional de Política para as Mulheres, temos alegria de ter vivido a 5ª edição. As Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres constituem um dos principais instrumentos de participação social na formulação e monitoramento das políticas públicas voltadas à igualdade de gênero no Brasil. Desde a primeira edição, em 2004, as conferências vêm reunindo representantes do governo e da sociedade civil em um amplo processo deliberativo, que resulta em propostas, diretrizes e planos nacionais de políticas para as mulheres.

O intervalo de quase dez anos entre a 4ª e a 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (2016-2025) representa um dos períodos mais críticos para a agenda de gênero no Brasil desde a criação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, em 2003. Trata-se de um hiato que expressa, de forma concreta, os efeitos do refluxo democrático e da fragilização institucional das políticas de igualdade de gênero, sobretudo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, evento amplamente interpretado por estudiosas do campo feminista e da ciência política como um marco de descontinuidade e retrocesso (PINTO, 2018; MATOS, 2019).

Com a reorganização ministerial ocorrida após 2016, a então Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) foi rebaixada à condição de departamento subordinado a outros ministérios, perdendo autonomia administrativa, capacidade orçamentária e poder de articulação intersetorial. Podemos sim dizer que esse rebaixamento dizia respeito ao lugar que enxergavam onde as mulheres deveriam estar. A extinção da SPM e sua incorporação ao Ministério da Justiça e Cidadania - e posteriormente ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sob orientações de cunho moralista e neoconservador - configuraram um retrocesso estrutural na institucionalidade das políticas públicas para as mulheres. Conforme análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2018), houve redução de mais de 60% nas dotações orçamentárias destinadas às ações de enfrentamento à violência contra a mulher e de promoção da autonomia econômica feminina entre 2016 e 2019.

Além do desmonte institucional, observou-se um retrocesso discursivo e normativo. O período foi marcado pela ascensão de pautas antigênero e pela difusão de discursos que questionavam a legitimidade das políticas voltadas à igualdade entre homens e mulheres. Essa ofensiva ideológica, inserida no contexto mais amplo da radicalização neoconservadora e do avanço da extrema direita no país, resultou em apagamento simbólico e político das agendas feministas nas esferas públicas e na tentativa de reconfiguração do conceito de “família” como unidade central da política social (CARRARA; VIANNA, 2020).

No plano federativo, a ausência de conferências e o esvaziamento do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) produziram uma desarticulação da rede nacional de políticas para as mulheres, interrompendo o fluxo de comunicação entre governo federal, estados e municípios. Sem as etapas preparatórias municipais e estaduais, muitas instâncias locais - como conselhos e coordenadorias municipais de políticas para as mulheres - foram extintas ou deixaram de funcionar por falta de apoio técnico e financeiro (SOUZA; CAMPOS, 2022). Essa ruptura afetou diretamente a participação social e o monitoramento das políticas, pilares fundamentais do modelo democrático participativo inaugurado com a Constituição de 1988.

O contexto de retrocessos também se refletiu nos indicadores sociais e de violência de gênero. Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2023) indicam aumento de 30% nos casos de feminicídio entre 2016 e 2022, com agravamento das desigualdades raciais e regionais. A ausência de políticas estruturadas de prevenção, acolhimento e atendimento às mulheres em situação de violência agravou vulnerabilidades já existentes, especialmente entre mulheres negras e periféricas, que compõem a maioria das vítimas. Esses números ilustram o impacto concreto do desmonte das políticas públicas e a necessidade de reconstrução de mecanismos integrados de proteção.

No campo da autonomia econômica e da participação política, os efeitos da descontinuidade institucional também foram severos. Programas voltados ao empreendedorismo feminino, à inserção no mercado de trabalho e à ampliação da presença das mulheres na política foram reduzidos ou descontinuados. O Relatório do PNUD (2021) destacou que o Brasil regrediu em indicadores de paridade política e de igualdade de renda entre homens e mulheres no período analisado. A ausência de uma instância deliberativa nacional - como as conferências - implicou não apenas o enfraquecimento da formulação de novas políticas, mas também a perda de um espaço simbólico de legitimação e resistência coletiva.

Em síntese, o hiato de nove anos sem conferência expressa mais do que uma lacuna administrativa: revela um processo de retração democrática e de desmonte da participação social como princípio de governança pública. A 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, portanto, emerge em 2025 como um ato de reconstrução institucional e política, retomando o protagonismo das mulheres na formulação de políticas públicas e restabelecendo o vínculo entre Estado e sociedade civil na defesa da igualdade de gênero como fundamento da democracia.

Histórico das conferências nacionais
A I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (I CNPM), realizada em 2004, foi convocada no primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sob coordenação da então recém-criada Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM). Essa conferência teve um papel inaugural ao propor o I Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (PNPM), documento que sistematizou as diretrizes para a promoção da igualdade de gênero e o enfrentamento das desigualdades estruturais que afetam as mulheres brasileiras. O PNPM se baseou em eixos temáticos que englobavam desde a autonomia econômica e o enfrentamento à violência até o acesso à saúde, educação e participação política.

A II CNPM, realizada em 2007, consolidou o PNPM como instrumento de planejamento governamental e ampliou o escopo das políticas públicas para as mulheres, incorporando novas demandas trazidas pelos movimentos sociais e pelos contextos locais. Houve uma ampliação das discussões sobre as mulheres rurais, as trabalhadoras domésticas e as desigualdades raciais e regionais, refletindo a intersecção entre gênero, raça e classe nas formulações políticas. O II Plano Nacional (2008-2011) reforçou a noção de transversalidade de gênero - princípio segundo o qual a igualdade deve ser incorporada em todas as políticas setoriais, e não restrita a programas específicos. Essa perspectiva, inspirada em experiências internacionais e em recomendações da ONU Mulheres, foi um dos legados mais importantes do ciclo inicial das conferências.

Em 2011, a III CNPM aprofundou o debate sobre a autonomia econômica, o enfrentamento à violência e a representação política das mulheres. Realizada também durante o governo Dilma Rousseff, a conferência expressou a maturidade institucional da política de gênero no país. O evento destacou a importância da autonomia econômica como condição para o exercício pleno da cidadania e reforçou o papel do Estado na garantia de políticas de cuidado, redistribuição de renda e ampliação do acesso das mulheres ao mercado de trabalho em condições de igualdade. Além disso, a III Conferência reafirmou a necessidade de articulação entre os entes federativos e da participação dos movimentos de mulheres na gestão das políticas públicas (SPM, 2012).

Já a IV CNPM, convocada em 2015 e realizada em março de 2016, marcou um ponto de inflexão na história das conferências. Com o tema “Mais direitos, participação e poder para as mulheres”, o evento ocorreu em um contexto político profundamente conturbado, às vésperas do impeachment da presidenta Dilma Rousseff. Mais do que isso, a Conferência marcou uma das maiores misoginias ocorridas na política institucional. Ainda assim, a conferência contou com ampla participação popular - mais de 2.400 delegadas - e reafirmou a centralidade do feminismo e da igualdade de gênero como pilares da democracia. Contudo, o contexto subsequente, caracterizado por instabilidade política e por uma guinada neoconservadora nas instituições, comprometeu a continuidade das políticas pactuadas. O período pós-2016 foi marcado pela desestruturação institucional da SPM, incorporada a ministérios de escopo mais amplo e desprovida de autonomia, além da redução orçamentária e enfraquecimento dos mecanismos de participação social. Tivemos no poder a persona representante da misoginia que realizava discursos legitimando a violência contra as mulheres.

Desse modo, o intervalo entre a 4ª e a 5ª Conferência evidencia não apenas uma interrupção administrativa, mas um retrocesso político e simbólico na construção das políticas públicas de gênero. O processo conferencial, que antes funcionava como mecanismo de escuta e pactuação entre Estado e sociedade civil, foi silenciado por quase uma década. Diante disso, é essencial compreender a importância da 5ª CNPM como ato de reconstrução democrática e retomada de um projeto de Estado comprometido com a igualdade entre mulheres e homens.

Contexto político e o hiato entre a 4ª e 5ª Conferência
A interrupção de quase uma década entre a 4ª e a 5ª CNPM reflete a desvalorização das políticas públicas voltadas às mulheres e o enfraquecimento da participação social nos anos seguintes a 2016. O impeachment de Dilma Rousseff e as mudanças administrativas subsequentes resultaram na reestruturação e posterior esvaziamento da Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), além da redução orçamentária e da eliminação de espaços institucionais de controle social.

De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2018), o número de ações orçamentárias voltadas às políticas de gênero sofreu queda significativa após 2016, comprometendo programas de enfrentamento à violência, promoção da autonomia e apoio à participação política das mulheres. Essa descontinuidade também impactou o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), que teve sua capacidade de articulação reduzida durante o período.

A retomada das conferências, com a convocação da 5ª CNPM em 2025, marca um momento de reconstrução democrática e revalorização da participação social. O Ministério das Mulheres e o CNDM organizaram etapas municipais, estaduais e livres, com ampla participação de diferentes segmentos - mulheres negras, indígenas, quilombolas, trans, rurais e com deficiência.

O tema “Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas” expressa a necessidade de reconstruir políticas públicas em um contexto de múltiplas desigualdades e de reafirmar o papel do Estado como garantidor de direitos. Entre os principais eixos discutidos, destacam-se: (1) autonomia econômica e enfrentamento à pobreza; (2) enfrentamento à violência de gênero; (3) saúde integral das mulheres; (4) participação política e paridade; (5) igualdade racial e diversidade.

É muito importante valorizar a organização do Ministério das Mulheres e do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e manter o entusiasmo em torno da 5ª CNPM, porém, é necessário compreender que temos desafios. O desafio central consiste em transformar as propostas aprovadas em políticas efetivas e sustentáveis. A experiência histórica das conferências anteriores demonstra que a formulação participativa, embora fundamental, não garante por si só a execução das ações deliberadas. É necessária uma estrutura institucional robusta, com orçamento próprio e mecanismos de monitoramento e avaliação permanentes.

Outro desafio é assegurar a intersetorialidade das políticas, de modo que as ações de igualdade de gênero perpassam diferentes áreas de governo - trabalho, saúde, educação, segurança pública e meio ambiente -, evitando o isolamento das pautas de gênero em estruturas administrativas secundárias. Conforme argumenta Costa (2020), a sustentabilidade das políticas de gênero depende da capacidade de articulação transversal e da institucionalização permanente da agenda feminista no Estado.

Conclusão
A 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres simboliza a retomada de um processo participativo interrompido por uma década de descontinuidade e retrocessos institucionais. Mais do que um evento, representa um marco político na reconstrução da agenda de igualdade de gênero no Brasil. Entretanto, os desafios permanecem: garantir a implementação das deliberações, assegurar financiamento estável e consolidar a institucionalidade necessária à sustentabilidade das políticas de gênero.

O percurso das conferências demonstra que a democracia participativa é um processo em constante construção, sujeito a avanços e recuos. A 5ª CNPM inscreve-se, assim, como um momento de esperança, no qual o compromisso com a igualdade e a justiça social se reafirma como base da reconstrução democrática brasileira.

As conferências nacionais são espaços privilegiados de exercício da democracia participativa. De acordo com Avritzer (2017), a consolidação de mecanismos de participação social no Brasil, como conselhos e conferências, constitui um dos pilares da democracia deliberativa construída desde a Constituição de 1988. Nesse sentido, a 5ª CNPM representa não apenas a retomada de uma política setorial, mas a reafirmação do pacto democrático entre Estado e sociedade civil.

Bruna Camilo é doutora em Sociologia pela PUC-Minas. Mestra em, Ciência Política pela UFMG. Pesquisadora em gênero, misoginia e radicalização.

Referências
AVRITZER, Leonardo. Participação e deliberação na teoria democrática: uma revisão. Lua Nova, São Paulo, n. 100, p. 155–184, 2017.

BRASIL. Ministério das Mulheres. 5ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres: Mais Democracia, Mais Igualdade, Mais Conquistas para Todas. Brasília: Governo Federal, 2025.

BRASIL. Secretaria de Políticas para as Mulheres. Relatório Final da 4ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Brasília: SPM, 2016.

CARRARA, Sérgio; VIANNA, Adriana. Gênero, moral e política: disputas contemporâneas no Brasil. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2020.

COSTA, Ana Alice Alcântara. Feminismo, Estado e políticas públicas: desafios contemporâneos. Revista Estudos Feministas, v. 28, n. 3, 2020.

INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). Políticas públicas de gênero no Brasil: avanços e desafios. Brasília: IPEA, 2018.IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada. Políticas públicas de gênero no Brasil: avanços e desafios. Brasília: IPEA, 2018.

FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023. São Paulo: FBSP, 2023.

MATOS, Marlise. Gênero, democracia e neoliberalismo: a crise das políticas de igualdade no Brasil. Revista Estudos Feministas, v. 27, n. 2, 2019.PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, política e democracia no Brasil contemporâneo. São Paulo: Boitempo, 2018.

PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022. Nova York: ONU, 2021.

SOUZA, Lúcia; CAMPOS, Mariana. Políticas públicas para as mulheres e desmonte federativo: entre a invisibilidade e a resistência. Cadernos Pagu, n. 66, 2022.