Sociedade

Não existe uma Bahia única, ainda que algumas concepções delas adquiram hegemonia. A diversidade cultural baiana deve ser anotada para afirmar as diversas Bahias existentes

Fui com meu neto assistir ao filme Três Obás de Xangô de Sérgio Machado. Ele tem 16 anos e estuda em uma escola privada de classe média. Gostaria que ele visse a Bahia de muitos baianos e de Sérgio Machado. O filme trata de Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi. Após a exibição perguntei se (re)conhecia aquela Bahia. Ele me respondeu que só Jorge Amado, porque leu no colégio, mas pouco sabia de Caymmi e Carybé, os outros dois personagens que habitam generosamente aquela Bahia.

Meu neto convidou um amigo para ir ao cinema conosco. O amigo tinha sido colega dele no colégio e agora estudava em um instituto federal de educação. Indaguei por que ele havia convidado este colega e não outros. Ele achava que os colegas não se interessariam pelo filme, mas este sim, pois só ele viveu mais próximo de ambientes populares. Fiquei me perguntando se a Bahia retratada ainda tinha sentido para aqueles adolescentes, se aquela Bahia ainda se mantinha viva. O filme termina ao som da canção Adalgisa de Caymmi, que celebra: “...a Bahia está viva ainda lá…”.

O longa-metragem de Sérgio Machado, ex-aluno da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, trata da reinvenção da Bahia pelos três Obás de Xangô. Em 1936, Mãe Aninha, visionária ialorixá do terreiro Ilê Axé Afonjá de Salvador, criou a figura dos Obás de Xangô para reunir amigos e protetores do candomblé, em tempos de intensa perseguição e violência contra as religiões de matriz africanas. Um dos amigos, Jorge Amado, quando deputado federal pelo Partido Comunista do Brasil (PCB), propôs no Congresso Nacional o direito à liberdade religiosa, quando no país uma religião, quase oficial, oprimia e infringia intolerância.

Os candomblés são admiráveis resistências e recriações religiosas-culturais-políticas nos contextos hostis da sociedade escravista-classista-branco-cristã. Eles, apesar da repressão dos dominantes, acolheram orixás das diferentes Áfricas negras e, inventivos, recriaram universos religiosos de profunda magia, que mantiveram vivas tradições e inauguraram complexas manifestações, que constituíram o substrato cultural vigente no ambiente Bahia, primeiro silencioso, depois visível e exuberante. Muniz Sodré, em seu admirável Pensar Nagô, demonstra o vigor das culturas afro-brasileiras, que sobreviveram forçadas à clandestinidade em longos instantes da história brasileira de perseguições e violências.

Ainda que a Bahia não se alimente tão somente do substrato das culturas negras e seja invadida na maior parte de seus territórios por culturas dos sertões nordestinos, com suas expressões peculiares, a circunstância baiana está perpassada, em distintos registros, pelas culturas afrobaianas, em especial, em seu recôncavo e em determinados lugares do estado. Elas se manifestam em regiões e, em especial, conformam um substrato comum, que tece o panorama sociocultural baiano. Sérgio Machado, em sua garimpagem delicada e densa de imagens, registra a beleza do substrato cultural, que habita e nutre tal baianidade.

As imagens primorosamente recuperadas parecem ter sido produzidas para a película. Elas não esquecem seu tempo passado para exprimir o progresso, mas se inscrevem naturais no presente, em todo seu esplendor, com uma atualidade notável, construída pelo filme. As forças do passado e do presente se encontram e se traduzem com perfeição no trabalho de Sérgio Machado. Imagens do passado ganham tal vida no longa-metragem que elas se transformam em presente vivo, atualizadas em cenas de fina sintonia no fluir gostoso da narrativa audiovisual.

O filme desenha paisagens e ícones. Ele atravessa itinerários. Ele revitaliza vidas. Ele tece os três Obás de Xangô. Sem o substrato, os Obás não existiriam. Aliás, belas sequências vivenciam o encantamento deles com as coisas da terra e do mar. O amor dos três Obás por seu entorno mágico permite que eles o vivam, em plenitude, em seus corpos, conversas, gestos, maledicências, brincadeiras e criações. A atenção deles com a vida popular, em tempos carregados de elitismo, discriminações e preconceitos, possibilita que traduzam, por meio da sensibilidade e da inteligência aguçadas, a vitalidade das gentes subalternizadas, esquecidas e excluídas pela sociedade dominante.

A riqueza da vida-valores populares, apesar da exploração, desigualdade, repressão e violência a que está submetida sua existência, cativa os três Obás de Xangô. O argentino deles, Carybé, se transforma em baiano de (re)nascimento, da gema, como se fala. Ele diz vir à Bahia para desmascarar as mentiras de Jorge Amado no livro Jubiabá. Em diversas passagens da película, os Obás afirmam serem meros tradutores do vigor das culturas populares. Elas parecem impregnar seus corpos, mentes e emoções. Nada estranho para quem está imerso no caldo cultural, penetrante, gostoso e apimentado. A referência ao popular, às vidas sofridas, que apesar de tudo conseguem reinventar vidas e valores simbólicos criativos, embalam vivências e criações dos Obás. Elas, no entanto, não acontecem como simples traduções.

Em uma interpretação livre da noção de sujeito transindividual de Lucien Goldmann, pode-se sugerir que as culturas são criações coletivas de grupos e classes sociais. Mas suas obras mais expressivas devem muito a individualidades. Elas, em sua genialidade, conseguem por sensibilidade, inteligência e empatia traduzir a dispersão e diversidade dos traços das culturas em obras densas e refinadas. Elas sintetizam, de modo admirável: emoções, sensibilidades, ideias, emoções, concepções de mundo, estilos de vida e valores, que emanam nos substratos culturais. Aqui a tradução não é mera reprodução passiva, mas recriação ativa de criações culturais, que povoam o universo simbólico vivenciado pelos Obás inventores. Genialidade não significa ser distante e estranho ao mundo, mas, pelo contrário, denota a capacidade de possuir uma empatia tão luminosa, que viabiliza, a partir de traços esparsos, produzidos por grupos e classes sociais, refazer o mundo, em inovadoras (re)criações simbólicas.

Os três Obás de Xangô recriam a Bahia no século 20. O marasmo da denominada “boa terra”, paralisada no tempo e imune às perturbações do progresso, entre meados do século 19 e inícios do século 20, não é capaz de perceber o movimento, rico e silencioso, de configuração do substrato afrobaiano. Antonio Risério escreve os cem anos de isolamento e solidão em seu livro sobre Caymmi. A pasmaceira será incomodada em meados do século 20. Mudanças internacionais e, em especial, nacionais afetam a província. O elo perdido de Chico de Oliveira busca desvelar o período. O petróleo traz nova dinâmica à economia. Salvador começa a se agitar. Anísio Teixeira, na Secretaria Estadual de Educação, anima a cultura. Edgard Santos funda a universidade com arte e cultura. O modernismo cultural, enfim, chega à Bahia. As culturas negras começam a deixar sua clandestinidade e se espraiar devagar por espaços públicos. Movimentos tomam lugar da anterior mansidão.

Neste contexto, a invenção dos três Obás de Xangô ganha sentido. Seus encantamentos e suas conexões sofisticadas com o universo popular e suas genialidades propiciam que eles recriem a Bahia, como tradução ativa. Suas obras, suas intervenções culturais, políticas e sociais, suas diabruras, seus acolhimentos plasmam simbolicamente a Bahia reinventada. Nada fácil distinguir criação e recriação, devido ao imbricamento, envolvimento, mistura, identidade e empatia. A Bahia, reconhecida nacional e internacionalmente, se tece em entrelaçamento, sútil e vigoroso. A Bahia, depois de Jorge Amado, Carybé e Dorival Caymmi é outra e a mesma. Os três Obás de Xangô recriam a Bahia. O filme navega nas terras e nos mares da Bahia, como as canções de Caymmi, as imagens de Caribé e a prosa de Jorge Amado.

Por óbvio, que não existe uma Bahia única, ainda que algumas concepções delas adquiram hegemonia. A diversidade cultural baiana deve ser anotada para afirmar as diversas Bahias existentes. Mas a Bahia recriada pelos Obás de Xangô se tornou hegemônica em diversos ambientes baianos, brasileiros e internacionais. Entretanto, a hegemonia cultural não veio conjugada com mudanças sociais substantivas nas condições socioeconômicas e políticas, em especial da população negra e trabalhadora. Persistem explorações, desigualdades, carências, privilégios e dominações políticas, atenuados em conjunturas e em dimensões bem circunscritas. A dissociação entre culturas florescentes e condições hostis aparece como enigmática para entender e admirar a criatividade popular.

Também a hegemonia, mesmo delimitada, sofre alterações históricas de visibilidade e pertinência. Ela disputa espaço político-cultural na sociedade classista, machista, branca e cristã. Fluxos e refluxos historizam hegemonias. Manifestações como o axé-music, com sua penetração no Brasil e mundo afora em determinados momentos, difundiram e, por vezes, diluíram a recriação. A quase identificação das culturas baianas como culturas negras demarca tais instantes. A tentativa de cooptação política da Bahia negra, por forças conservadoras, afeta a vigência da recriação. Ela dá visibilidade, afirma as culturas negras, ao mesmo tempo que ameaça dissolver sua força de resiliência, que produz voz-imagem dos deserdados. O substrato e a Bahia recriada, em sua riqueza e complexidade, se vêm disputadas a todo instante na sociedade baiana e brasileira.

O filme de Sérgio Machado expressa e traduz uma infinidade de temas e tensões. Ele, com sua empatia pelo substrato cultural, pela Bahia recriada, pela malemolência baiana, afirma sua capacidade de persistência, entre delicadezas e sutilezas, embates e tensões. Seu trabalho meticuloso de pesquisa, construção de imagens, seu diálogo incessante com os jeitos, trejeitos e falares baianos, sua reverência aos valores, sua montagem e remontagem precisas, dão vigor ao filme e o conectam com a constelação cultural da Bahia.

Cabe retomar à mensagem final do filme em diálogo com as experiências relatadas no início do texto. Algumas proposições hipotéticas podem ser acionadas como, em certa medida, a defasagem tempo-geracional da Bahia em cena e de outras possíveis Bahias. As novas gerações parecem se distanciar temporalmente de certas culturas baianas, por mais que seus traços perpassem silenciosos o universo baiano e, talvez, também a vida de adolescentes, eternamente conectados em jogos eletrônicos, em redes sociais, em tempo real e espaço planetário. Cosmopolitismo e territorialização convivem estranhos, mas vigentes.

O corte geracional parece não ser suficiente para elucidar as vivências diferenciadas de Bahias. Manuel José, professor da Arquitetura, relatava um continuado experimento seu com os alunos calouros, em tempo anterior à vigência da lei de cotas na UFBA. Os alunos eram solicitados a colorir os territórios frequentados de Salvador. Inevitavelmente, eles pintavam a cidade não segregada. Zero de territórios populares periféricos. Tudo de zonas “nobres” da Cidade da Bahia, como foi chamada no passado. Bom experimento para fazer pensar quem imagina que as classes sociais não mais existem.

Para os estudantes dos colégios privados de elite, por certo, a Bahia de Sérgio Machado tem dificuldade de persistir e existir. Eles têm outras inserções simbólicas no mundo e, talvez, poucas na cidade da Bahia e mesmo no Brasil. Para o aluno, inserido também em lugares populares, a persistência da conjunção substrato cultural e Bahia recriada parece se manter, mesmo que não em plenitude, mas talvez em fragmentos vitais. As vivências geracionais e de classe demarcam percepções, conformam olhares, instituem vidas. A Bahia acolhe, contraditória e tensa, distintas Bahias. Elas convivem simultâneas, com ou sem diálogos, mas seus contornos devem muito ao substrato cultural e à Bahia dos três Obás de Xangô.

O filme de Sérgio Machado, a partir do encantamento dos três Obás de Xangô, no seu canto às amizades, aos desprendimentos na vida, ao modo de viver a vida, põe em cena algumas discussões muito atuais acerca de valores civilizacionais, tão em xeque na contemporaneidade. Afinal de contas, afirmar alegrias, brincadeiras, maledicências, preguiças, disponibilidades, por exemplo, como valores contrapostos à produtividade, pressa, vida agitada, competição e seriedade parece ter algo de subversivo. Milton Santos já falava dos rápidos e dos lentos com suas vivências e valores diferenciados. Nesta perspectiva, o filme de Sérgio Machado deve ser visto como tecido de um subjacente debate civilizacional, bastante coerente com a contribuição das culturas negromestiças, desenhadas e redesenhadas.

Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)