No dia 2 de outubro de 2025, o debate sobre a reforma administrativa no Brasil ganhou um novo capítulo com a apresentação de três proposições legislativas pelo Grupo de Trabalho (GT) instituído pela Câmara dos Deputados.
Coordenado pelo deputado Pedro Paulo (PSD-RJ), o GT foi criado em 28 de maio de 2025 com o objetivo de discutir e elaborar medidas para aprimorar a administração pública brasileira.
No entanto, o que deveria ser o fruto de um consenso coletivo revelou-se uma iniciativa controversa, marcada por atrasos e potenciais violações regimentais.
Este artigo analisa o processo de elaboração e tramitação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Administrativa, destacando questões de imparcialidade, conflitos de interesse e o risco de atropelamento do devido processo legislativo, e como essas irregularidades podem comprometer a legitimidade democrática de uma reforma tão ampla e impactante.
A reforma administrativa tem sido um tema recorrente no Congresso Nacional, especialmente após a PEC 32/2020, que enfrentou resistências e foi praticamente abandonada. A nova proposta, divulgada em 2 de outubro de 2025, promete alterações profundas na estrutura do serviço público, afetando servidores, estruturas governamentais e princípios constitucionais.
No entanto, o foco desta análise não é o mérito das mudanças – que merecem escrutínio separado –, mas o processo legislativo em si, que parece priorizar a celeridade em detrimento da transparência e da legalidade.
Em um país com uma Constituição "rígida", como a brasileira de 1988, emendas constitucionais demandam quóruns qualificados e procedimentos cautelosos para evitar decisões precipitadas. Ignorar essas cautelas e salvaguardas pode resultar em judicializações e questionamentos sobre a validade das reformas.
Criação e o funcionamento do Grupo de Trabalho
O GT foi instituído em maio de 2025 pelo presidente da Câmara dos Deputados com um prazo inicial de 45 dias para concluir seus trabalhos.
Composto por catorze deputados, e sob a coordenação do deputado Pedro Paulo (PSD-RS) o grupo realizou discussões e audiências públicas, mas o prazo foi amplamente ultrapassado, estendendo-se por quase 160 dias até a apresentação das propostas em 2 de outubro.
Em 10 de junho de 2025, o coordenador Pedro Paulo apresentou o documento "Premissas Reforma Administrativa – Versão 13", que antecipava um amplo conjunto de medidas. Essa iniciativa unilateral evidencia que o deputado assumiu não apenas a coordenação, mas também a relatoria dos trabalhos do GT, moldando o conteúdo das proposições de acordo com suas visões fiscais e reformistas.
Em 15 de julho, durante reunião do Colégio de Líderes, Pedro Paulo detalhou sua "tática" para aprovar as propostas, incluindo a redução da exposição pública durante o recesso parlamentar de julho a agosto.
Essa estratégia de minimizar debates em períodos sensíveis indica uma abordagem calculada para evitar oposições. Com o retorno das atividades parlamentares, em vez de apresentar as proposições, o coordenador continuou a promover publicamente suas ideias, dialogando com atores políticos, incluindo membros do Poder Judiciário.
Essa conduta reforça a percepção de que Pedro Paulo atuou como o principal formulador e "arauto" da reforma, defendendo propostas que ele mesmo concebeu, como um pacote de setenta medidas divididas em quatro eixos: uma PEC, um Projeto de Lei Complementar e um Projeto de Lei Ordinária.
A apresentação final ocorreu apenas com a divulgação de um relatório diagnóstico e das minutas normativas. Inicialmente, foi divulgada uma versão da PEC, datada de 1º de outubro, às 14h30, que listava Pedro Paulo como autor principal. No entanto, a seguir, uma nova versão surgiu, datada de 2 de outubro às 16 horas, com alterações relevantes e identificando como autores da PEC os deputados Zé Trovão, Fausto Santos Jr., Marcel Van Hattem, Neto Carletto e Júlio Lopes.
Essa mudança não é mera formalidade; ela parece uma manobra para contornar vedações regimentais, pois Pedro Paulo é o autor intelectual incontestável, com DNA e "digitais" evidentes em todo o processo. Não houve votação formal no GT nem aprovação coletiva; as decisões foram centralizadas no coordenador, ou seja, não foram, sequer, resultado de um consenso no âmbito do GT, e apenas alguns de seus membros assumiram a “autoria” do texto.
Conflitos de interesse e vedações regimentais
Um dos aspectos mais críticos é o potencial conflito de interesse envolvendo o deputado Pedro Paulo e o impedimento a que seja o relator da PEC por ele mesmo formulada.
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em seu artigo 43, veda explicitamente que o autor de uma proposição seja seu relator: "Nenhum deputado poderá presidir reunião de Comissão quando se debater ou votar matéria da qual seja autor ou relator. Parágrafo único. Não poderá o autor de proposição ser dela relator, ainda que substituto ou parcial."
Essa regra visa preservar a impessoalidade e a moralidade, princípios constitucionais do artigo 37 da Carta Magna. Relatar uma proposta própria cria uma situação de "causa própria", onde o parlamentar atua com parcialidade inerente, violando o decoro parlamentar e, se considerada como tal, pode levar à perda do mandato.
Comparações com outros campos do direito reforçam essa vedação. No processo judicial, o Código de Processo Civil (CPC) lista impedimentos e suspeições para juízes, como interesse direto na causa ou participação prévia como perito. Similarmente, a Lei 9.784/1999, que regula o processo administrativo, impede autoridades com interesse na matéria. Até no Congresso dos Estados Unidos, o Código de Conduta (House Rule XXIII) exige recusa em casos de conflito de interesses, introduzido pela Honest Leadership and Open Government Act de 2007. Esses paralelos destacam que a imparcialidade é um pilar universal da governança democrática.
No caso da PEC, se Pedro Paulo for designado relator na Comissão Especial ou no Plenário, configuraria uma burla regimental flagrante. Os novos autores “formais” da PEC parecem atuar como "laranjas", ocultando a verdadeira paternidade da proposta, o que pode caracterizar falsidade ideológica (artigo 299 do Código Penal): omitir ou inserir declarações falsas em documento público com fim de alterar fatos relevantes. Como crime, isso transcende atos interna corporis e ofende princípios constitucionais como moralidade e impessoalidade.
Ademais, a condição de relator é ímpar, pois ela não somente faculta a ele emitir o seu parecer sobre a matéria, como apresentar emendas sem exigência de apoiamentos, e, ainda, emitir parecer sobre as demais emendas, inclusive em plenário, e se pronunciar, a todo o momento, sobre o conteúdo em debate e proferir seu parecer, tendo, assim, precedência sobre seus pares.
É, portanto, um agente político dotado de grandes poderes, mas que deve atuar como um “mediador neutro”, embora essa “neutralidade”, no processo político, jamais poderá ser absoluta...
Por isso, em um regime democrático, o autor não pode ser relator.
O caminho da tramitação e riscos de atropelamento
Para ser formalizada, a PEC precisa de 171 assinaturas (um terço dos deputados). Em 10 de outubro de 2025, oito dias após a divulgação da minuta, ela ainda coleta apoios. Uma vez numerada, segue para a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania (CCJC), que analisa a admissibilidade em cinco sessões, verificando se viola o artigo 60 da Constituição (cláusulas pétreas como federação, voto direto, separação de poderes e direitos individuais). Porém, é visível que a proposta em questão apresenta ofensas potenciais a pelo menos três incisos do art. 60, exigindo emendas saneadoras.
Admitida, vai para Comissão Especial, com quarenta sessões para parecer e dez para emendas de deputados (também com quórum de 171). Aprovado o parecer, após interstício de duas sessões, entra na Ordem do Dia. A votação em Plenário requer dois turnos com interstício de cinco sessões e quórum de três quintos (308 votos). Esses prazos refletem a rigidez constitucional, impedindo aprovações impulsivas.
Contudo, precedentes preocupantes evidenciam o descaso com esse princípio: PECs como a 3/2021 (Blindagem) e 14/2021 (agentes comunitários de saúde) foram aprovadas em um dia só, com quebra de interstício.
Tais situações, para serem válidas, devem refletir um grau de consenso quase absoluto; mas, se esse consenso inexistir, o que se tem é a “ditadura da maioria”, ou seja, uma maioria simples de votos permitirá que uma PEC seja remetida ao Plenário e por ele votada, celeremente, sem as condições para seu exame aprofundado.
Outra tática que pode ser adotada para acelerar a tramitação da PEC é o apensamento a PECs existentes, como permitido pela Questão de Ordem 237/2022.
No caso examinado pela Questão de Ordem, questionava-se o apensamento de PECs em estágios diferentes de tramitação, uma delas já tendo sido admitida pela CCJC, e a outra já sob exame de comissão especial, e esgotado o prazo para o seu emendamento.
Ao decidir, o Presidente da Câmara destacou, ainda, o decidido nas Questões de Ordem nºs 90, de 2007, e 218, de 2022, concluindo que não há óbice à apensação de PECs quando, em fases diferentes de tramitação, as proposições tratem de matérias correlatas, citando, ainda, como precedentes de apensação de PECs que se encontravam em estados distintos de tramitação as PEC 183/99, PEC 507/10, PEC 327/17, PEC 77/03, PEC 1/02 e PEC 15/22.
No caso da nova PEC da Reforma Administrativa, esses requisitos estariam presentes se houvesse o seu apensamento à Proposta de Emenda à Constituição nº 32/2020, que já foi objeto, inclusive, de análise por comissão especial e se acha pronta para a Ordem do Dia. Contudo, a PEC nº 32/2020, de conteúdo altamente problemático, foi rechaçada, ao longo de todo o processo, pelo próprio coordenador/relator/autor da nova proposta, e colocada “na lata do lixo”, por ser considerada incapaz de contribuir para o sucesso dos debates em 2025.
Outras PECs, como 339/2009 (adicional noturno para PMs), 53/2007 (direitos em cargos comissionados) ou 89/2007 (teto remuneratório), têm conexões mínimas e conteúdos singelos, contrastando com as 250 alterações da nova proposta (em quatro eixos, com inclusões, revogações e transições). Apensar aceleraria a tramitação, limitando emendas (que só são admitidas na Comissão Especial) e debates, restringindo destaques para votação separada (que podem ser apresentados pelas bancadas segundo o seu número de membros, num total de cerca de vinte destaques para todos os partidos). Isso prejudicaria o exame de inconstitucionalidades e inconsistências, configurando fraude ao processo legislativo.
Implicações democráticas e recomendações
O devido processo legislativo é essencial para a democracia, como ressaltado pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 4.889 (2010): vícios que corrompem a vontade parlamentar ofendem o princípio democrático e a moralidade. Atropelamentos podem levar a judicializações, especialmente com o calendário eleitoral de 2026 aproximando-se, e que leva a especulações sobre a viabilidade da “reforma administrativa” ser aprovada na atual legislatura.
A observância das cautelas necessárias, e dos dispositivos regimentais aplicáveis, é, portanto, imperativa e não pode ser negligenciada, podendo, inclusive, vir a ser objeto de judicialização.
Para tanto, os partidos que de fato estiverem comprometidos com a regularidade do processo de apreciação dessa Proposta de Emenda à Constituição não poderão abrir mão da designação, na Comissão Especial e no Plenário, de relator que não tenha sido autor da proposição, da observância do requisito de apreciação prévia da admissibilidade da PEC, com eventuais emendas saneadoras de vícios de inconstitucionalidade por ofensa ao Artigo 60 da Constituição, e, ainda, possibilidade de seu desmembramento, visto tratar de temas muito amplos e não necessariamente interdependentes, e da análise por comissão especial, com a abertura do prazo de dez sessões para o seu emendamento, a fim de que sejam trazidos ao debate os temas que o coordenador/relator/autor tenha negligenciado em suas propostas e para correção daqueles tratados de forma inadequada.
Não havendo o respeito a essas regras, ter-se-á não somente o atropelamento regimental, mas verdadeira fraude ao processo legislativo, e nada disso contribuirá para uma deliberação segura e democrática da Câmara dos Deputados.
Por isso, se é desejo do Presidente da Câmara e do deputado Pedro Paulo que a proposta de “reforma” por eles defendida tenha algum desfecho, é fundamental que estejam atentos a esses limites.
Luiz Alberto dos Santos é advogado, consultor e sócio da Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas