Sociedade

A presença de jovens na formação de um público predominantemente idoso – revela o papel decisivo das famílias dos mortos e desaparecidos políticos na preservação e reconstrução da memória que resulta na conquista celebrada aqui

Foto Paulo Pinto/Agencia Brasil 

Dispúnhamos de 103 certidões de óbito retificadas, de acordo com a Resolução 601, de 13 de dezembro de 2024, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Impressas. Aptas para serem entregues aos familiares dos mortos e desaparecidos políticos da resistência à ditadura militar (1964-1988).

No assento de óbito atestado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), por determinação daquela Resolução do CNJ, consta como causa da morte o texto: “não natural, violenta, causada pelo Estado no contexto da perseguição à população identificada como dissidente política do regime ditatorial instaurado em 1964”.

Essas três linhas buscam reparar uma ignomínia. Por óbvio, insuficientes para centenas de familiares que passaram décadas batendo à porta dos quartéis, delegacias de polícia, IMLs ou dependências de órgãos utilizados pelo aparelho repressivo da ditadura para buscar uma resposta formal sobre o destino e as circunstâncias da morte ou do desaparecimento forçado dos seus.

Durante anos o Estado brasileiro encontrou uma fórmula para responder. A rigor, um escudo para proteger os criminosos que atuaram nas salas de tortura e assassinatos, a seu serviço, durante a vigência do regime e eximir-se de responsabilidade perante a sociedade e nos foros internacionais. A resposta burocrática – e cínica – era invariavelmente: morto ou desaparecido nos termos da Lei 9.140/1995”.

A mobilização dos Cartórios de Óbito de todo o país pelo Operador Nacional do Registro de Pessoas Naturais, Dr. Gustavo Fiscarelli, em apoio ao cumprimento da Resolução 601/2024 do Conselho Nacional de Justiça, presente à cerimônia, revelam a complexidade dos desafios para converter a verdade em lei. O país real no país oficial, para lembrar Ariano Suassuna quando recuperou a reflexão de Machado de Assis sobre a dualidade de um povo generoso e oprimido versus um Estado dirigido por uma elite colonizada e caricata.

O gesto de Beatriz. Certidão de óbito retificada nas mãos, a irmã mais jovem ergueu o punho diante do plenário silencioso do Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, naquela noite de 8 de outubro de 2025 e proferiu apenas: Alexandre, Presente!

Um gesto contido e comovedor. Despido de toda retórica. Expressava apenas a dor nua, irremediável como a espada que atravessou a vida de José de Oliveira Leme, ferroviário e professor do Senai e da professora Egle Maria Vannucchi Leme, pai e mãe de Alexandre Vannucchi Leme.

Alexandre era estudante de geologia da USP, militante da resistência à ditadura, preso e assassinado sob tortura em 17 de março de 1973, no Doi-Codi do II Exército, rua Thomaz Carvalhal 1030, esquina com Tutoia, em São Paulo: o endereço da morte. Alexandre tinha 22 anos.

Registro que entrei no Salão Nobre ainda vazio. Dei com os rostos, fixados em fotografias gastas, vindas de álbuns familiares, outras reproduzidas de prontuários policiais, no encosto das poltronas do auditório. A maioria não contava trinta anos: estavam ali os rostos de uma geração de combatentes, rapazes e moças, que encarnaram a resistência contra a ditadura civil-militar, em defesa da democracia e do socialismo. O coração fica pequeno diante da lâmina afiada dessa memória que fere meus olhos, tantos anos passados.

Momentos depois, o auditório já cheio – e a composição diversificada, permeada pela forte presença de jovens na formação de um público predominantemente idoso – revela o papel decisivo das famílias dos mortos e desaparecidos políticos na preservação e reconstrução da memória que resulta na conquista celebrada aqui.

Elas estendem o fio das lembranças que ata uma geração à geração seguinte. Laço indispensável para modelar a percepção social do que vivemos durante os anos de chumbo. Como um rio subterrâneo de afetos e indignações, que não nos abandona e agrega forças suficientes para impor ao Estado avanços significativos como o que marca aquela noite.

A ação do Estado inevitavelmente navega ao sabor das injunções políticas, num país em que a ditadura em declínio ainda reuniu energia suficiente para derrotar a guerrilha urbana e rural e preparar uma retirada do cenário político com poucas perdas e manter o aparato repressivo praticamente incólume.

A transição pelo alto revelou equilíbrio de forças e expôs as fragilidades dos setores democráticos que lideraram a transição para a Nova República que era a sua cara: conservadora e oligárquica. A recusa pura e simples das Forças Armadas em abrir os arquivos do aparato repressivo é emblemática, no processo para identificarmos uma base de dados com credibilidade suficiente, definir as responsabilidades individuais dos agentes do poder público e assentar os alicerces do que poderia se chamar uma Justiça de Transição.

Hoje é um dia central para reconstruir a memória de todos e todas que lutaram pelo que hoje temos enquanto democracia, que tantas vezes foi ameaçada, mas sobreviveu”. As palavras da ministra de Estado dos Direitos Humanos e Cidadania, Macaé Evaristo, expõem a sensibilidade e o compromisso do governo Lula com essa dimensão inseparável do processo de reconstrução da democracia no Brasil.

Reforçadas pelo discurso da procuradora Eugênia Gonzaga, presidente da Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos: “Esses documentos são um reconhecimento moral da dor das famílias. São um pedido de desculpas e o compromisso de seguir buscando reparação para vidas interrompidas apenas por lutar por um país mais justo”.

 

Cada dor é uma dor. Intransferível. Os depoimentos de mães, pais, irmãos, companheiros pesam como uma exigência incontornável diante do Estado liberal democrático que sucedeu o regime dos generais. O reconhecimento público que presenciamos aqui, por si só, não encerra o passivo da ditadura diante da sociedade – particularmente dos familiares – pelos crimes cometidos e até hoje protegidos pela impunidade. Essa exigência, legítima, seguirá na pauta interpelando os tribunais no país e nas Cortes Internacionais.

Brasília, outubro de 2025.

Pedro Tierra é poeta, militante da resistência à ditadura de ontem e ao neofascismo contemporâneo