
A mobilização do medo é um instrumento político potente, usado para emparedar as instituições democráticas e impor à sociedade maior tolerância com ações feitas à margem da legalidade. A direita tem sido historicamente hábil em acirrar o medo e usá-lo como ativo político e manter acessa a percepção social de que estamos sempre à beira do caos. O roteiro é quase sempre o mesmo: inicia com a acusação de que as garantias individuais e o respeito ao processo legal limitam a eficácia do combate ao crime e, logo depois, exige autonomia para que setores do Estado sejam autorizados a atuar sem as “amarras” dos mecanismos de controle social e do sistema de justiça. O resultado desejado é obter uma autorização tácita para atuar acima da lei e com as câmeras corporais desligadas. Para potencializar a percepção de medo e arregimentar apoio social, é sempre útil construir um “inimigo poderoso” e fazer dele a causa de todos os males. Esse inimigo pode mudar de acordo com os interesses do momento, mas há um grupo clássico de bodes expiatórios: comunistas, judeus, imigrantes, muçulmanos, gays, traficantes, etc.
A recente chacina, comandada pelo governador do Rio de Janeiro, deve ser compreendida como uma reação feita para proteger a verdadeira cadeia de comando dos grupos organizados, dos seus financiadores e da sua rede de colaboração, que investigações recentes começaram a desvendar. O espetáculo macabro decidido pelo governador Cláudio de Castro, foi realizado no dia 28 de outubro, três meses após a “Operação Carbono Oculto” (28 de agosto) e um mês depois da “Operação Spare” (25 de outubro), comandadas pelos órgãos federais (Ministério da Justiça, Polícia Federal, Receita Federal, etc), em parceria com estados e o Ministério Público. A operação “Spare” foi desdobramento da operação “Carbono Oculto”, ambas voltadas para desbaratar o “andar de cima” do sofisticado esquema de lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio originado do tráfico de drogas e outras atividades criminosas. Todas com ampla ramificação em diversos estados brasileiros. Essas organizações criminosas contam com uma complexa e diversificada rede que atua na lavagem do dinheiro e a ocultação da sua origem. Além disso, contam com a colaboração de agentes públicos que trabalham para diminuir normas e outros mecanismos de controle e fiscalização, cujo resultado prático é abrir caminho para facilitar a atuação desses grupos criminosos.
O trabalho de desregulamentação de várias atividades econômicas, por exemplo, tem aberto novas oportunidades para a ação dessas organizações. O governo Bolsonaro foi pródigo em desmantelar os órgãos de fiscalização e controle ambiental, o que permitiu a aceleração do desmatamento e ampliou em muito a presença do crime organizado (mineração, grilagem, tráfico) na Amazônia; a desregulamentação do controle de armas e munições facilitou o abastecimento de armamento e munições para as organizações criminosas, tanto que o registro de armas saltou de 59 mil, em 2018, para 431 mil em 2022, último ano do mandato de Bolsonaro. A relação de causa e efeito é tão grande, que a Polícia Federal e o MP de São Paulo investigaram CAC’s que treinaram integrante do PCC para que “aprendessem a manusear e atirar com armas de fogo com alto poder de destruição” (G1,11/09/2024). Mais recentemente, o escandaloso roubo dos aposentados do INSS, desbaratado pelo governo Lula, não teria sido possível sem que o Executivo e o Legislativo agissem de forma combinada no afrouxamento e/ou remoção dos mecanismos de controle existentes, abrindo caminho para a livre movimentação de todo o tipo de abuso e roubo descarado, inclusive de beneficiários do BPC e dos pensionistas. Esses exemplos são suficientes para demonstrar o quanto é conveniente para a direita transformar os operadores do tráfico nas favelas como os únicos responsáveis por todos os males e torná-los o “inimigo poderoso” do momento.
As operações “Carbono Oculto” e “Spare” foram golpes muito eficientes contra a estrutura dessas organizações e nenhum agente público pode alegar desconhecimento de que a repetição de modelos fracassados, como o de Cláudio Castro, não passa cortina de fumaça para esconder a falta de disposição para desmantelar os centros de poder e financiamento dessas organizações, que só excepcionalmente usam chinelos de dedo e moram em barracos.
A direita sempre foi hábil em usar o medo como ativo político, mas o contínuo avanço das investigações no “andar de cima” parece estar tirando seus líderes da sua zona de conforto e levando-os a cometar erros. O famigerado projeto de lei da impunidade, que blindava parlamentares e até presidentes de partidos de investigação; a apressada reunião dos governadores bolsonaristas para saudar a chacina no Rio de Janeiro e evitar qualquer tipo de colaboração com o Ministério da Justiça, mostram uma estranha falta de vontade de atuar na desestruturação dessas organizações. A confirmação disso veio com a indicação do secretário de segurança pública de São Paulo, Guilherme Derrite, como relator do projeto de lei enviado pelo governo Lula, contra as facções criminosas. A determinação dele em pedir licença do cargo de secretário de segurança de São Paulo e assumir a relatoria do projeto ficou evidente. Ele quer retirar a autonomia da Polícia Federal no combate ao crime organizado e, ainda, abrir brechas para a ingerência norte-americana no Brasil.
De forma espantosa, estamos assistindo uma explícita movimentação de setores da direita brasileira para colocar impedimentos na ação do Estado brasileiro contra o crime organizado. O discurso da direita era “bandido bom, é bandido morto”, mas mudou quando começaram a ser condenados os líderes da tentativa de golpe de Estado; agora, a direita brasileira quer impedir a PF de investigar, pois ela está chegando na rede de comando. Não demora, estão pedindo anistia e blindagem para todos os chefes de quadrilhas.
Gerson Almeida é sociólogo e foi Secretário Nacional de Articulação Social no governo Lula 2