Internacional

Corina Machado, portanto, não age apenas como oponente interno e supostamente agente de uma transição democrática, mas como aliada explícita de interesses externos, em particular dos Estados Unidos

Enquanto escala a tensão provocada tanto pela mobilização militar dos Estados Unidos no Caribe sob o falso pretexto de combate ao narcotráfico na região, quanto por ameaças veladas de Donald Trump a uma eventual intervenção na Venezuela, a oposição a Nicolás Maduro segue fazendo o que mais tem feito ao longo das últimas décadas: trabalhar pela desestabilização interna, criar um ambiente propício a uma guerra civil, recorrer a agentes externos e não à luta política tradicional para tirar o chavismo do poder e usurpar, na caradura, a soberania e a independência do seu próprio país. María Corina Machado, uma mistura de política oposicionista, extremista e preposto dos Estados Unidos, convertida em Prêmio Nobel da Paz por razões questionáveis, é o principal nome e maior exemplo do caráter dessa oposição a Maduro.

Em um dia, Trump avisou: “Não descarto nada”, disse, ao ser questionado se enviaria tropas norte-americanas à Venezuela. No dia seguinte, Corina emendou o soneto intervencionista, defendendo abertamente os ataques dos Estados Unidos ao seu país. Qualquer semelhança com o empenho da família Bolsonaro em aplaudir movimentações militares norte-americanas e exibir desejo de uma intervenção de Trump no Brasil não são mera coincidência, já que a líder oposicionista venezuelana segue a cartilha da extrema direita internacional, em que a pregação do discurso pela liberdade avilta qualquer projeto de soberania da nação, a “denúncia” do jogo político interno esconde a intenção de uma agenda privatista e liberal, e o ataque ao presidente e às forças políticas contrárias ao que ela defende serve de pretexto para, no fundo, desmontar as instituições e entregar riquezas nacionais.

Nesse jogo, importam menos os valores, princípios e preferências do seu país e mais o oportunismo que lhe convém para estimular intervenção externa. Não faltam exemplos. Um dos mais sérios foi quando, diante das 27 vítimas de ataques norte-americanos, Corina Machado respondeu que “quem declarou guerra aos venezuelanos foi Nicolás Maduro”, e ainda encampou o discurso norte-americano segundo a qual as vítimas seriam narcotraficantes – contrariou, assim, a declaração de outros países da região, como Trinidad e Tobago, Nicarágua, Cuba e Colômbia, que afirmam ter provas sobre alguns dos ataques realizados e que se trataria de pescadores, não narcotraficantes.

Em outro discurso, ela apelou diretamente às Forças Armadas venezuelanas, pedindo que agentes do Estado “baixem suas armas” e se juntem ao “povo” numa hora que definiu como “iminente”.  Chamar à desmilitarização para aderir a uma causa política de oposição, especialmente em contexto de conflito interno, equivale a estimular um tipo de insurreição ou ruptura institucional. Isso não apenas estica os limites da construção democrática pacífica (se é que esse é seu objetivo), mas também coloca em risco a ordem interna, favorecendo cenários de instabilidade onde a lógica de intervenção estrangeira pode encontrar terreno fértil.

Mas Corina Machado foi além da agenda militar. No centro de seu projeto está a economia. Ela defende abertamente privatizações de setores-chaves, incluindo o petróleo, como condição para “refundar” a Venezuela. Isso tem implicações profundas em termos de poder econômico e decisão estatal, pois quem controla o petróleo controla (em boa parte) o Estado venezuelano. Alguns de seus discursos colocam as empresas norte-americanas em “posição estratégica” para investir no país. Esse tipo de projeto — liberalização rápida e entrega de ativos estratégicos ao capital externo — é coerente com um modelo de subordinação econômica que muitos latino-americanos rejeitaram nas décadas passadas.

Num manifesto, Corina Machado fala no “fim da era chavista” e prega a redução do Estado, o livre mercado, a reinserção da Venezuela no cenário internacional... ao lado dos Estados Unidos. É o pacote tradicional: sob o pretexto de abrir mercados e incentivar capital externo, propõe-se reduzir a regulação e fazer privatização em massa, além de prometer enormes oportunidades de investimento para as empresas norte-americanas. Durante um evento em Miami ela foi explícita: “Vamos expulsar o governo do setor prolífero, vamos privatizar toda a nossa indústria”. Em entrevista ao podcast de Donald Trump Jr, filho do presidente Trump, lembrou que a Venezuela tem enormes recursos – petróleo, gás, minerais, terras e tecnologias – e acrescentou que os venezuelanos estão em localização estratégica, a poucas horas dos Estados Unidos, e têm “potencial infinito”. Para os norte-americanos, claro. A promoção de privatizações estratégicas num país cuja soberania energética sempre foi vista como pilar coloca em risco o controle nacional sobre recursos.

Em outra declaração, deixou clara sua interlocução direta com integrantes do governo Trump: “Certamente acredito que o Secretário de Estado Marco Rubio é uma das pessoas no governo que melhor compreende as ameaças que a América Latina e nossa região representam para os Estados Unidos. Tenho estado em contato com ele, claro, e com sua equipe, e até mesmo com o Congresso. Em ambos os partidos, temos amigos e defensores muito bons da nossa causa”. Note-se a inversão de lógica de seu modo de enxergar os problemas, ao mencionar as “ameaças que a América Latina e nossa região representam para os Estados Unidos”.

Corina Machado, portanto, não age apenas como oponente interno e supostamente agente de uma transição democrática, mas como aliada explícita de interesses externos, em particular dos Estados Unidos. Nessas suas falas e documentos recentes, ela coloca o investimento norte-americano, a participação de corporações estrangeiras no setor petrolífero venezuelano e a intervenção geopolítica como partes integrantes de seu plano para o país. Isso não é erro marginal. A Venezuela já sofreu historicamente com intervenções externas, sanções, bloqueios, disputas pelo controle de seus recursos naturais. Propor agora um “salto para o futuro” guiado por capital e poder estrangeiro é escancarar a tutela como projeto de país. Essa sua vocação não é de hoje. Há bastante tempo Corina Machado defende que os Estados Unidos intervenham militarmente na Venezuela. Disse isso no primeiro governo Trump, falou abertamente nas manifestações contra Maduro na eleição de 2018 e ao longo do tempo vem engordando uma extensa folha corrida de uma oposição de DNA golpista que não se conforma com derrotas eleitorais.

Não podemos analisar a Venezuela sem examinar o que ocorreu desde a morte de Hugo Chávez. Foi o país que mais teve eleição nos últimos anos – 35 disputas em 24 anos. A oposição elegeu governadores e até maioria em uma das assembleias. Convém lembrar ainda que houve um processo de sanções rigorosas. O país viu seu volume de receitas cair de US$ 57 bilhões para US$ 700 milhões. Empresas, reservas de ouro e reservas internacionais foram confiscadas. Deu-se escassez de alimentos e remédios. Caiu a capacidade de refinar petróleo. Tudo isso não foi fruto do chavismo, e sim do bloqueio. Por fim, mas não menos importante, houve uma guerra civil depois que Maduro assumiu, financiada e articulada pelos Estados Unidos. Muitos dos candidatos de oposição participaram disso, entre os quais Henrique Capriles, Leopoldo López e Corina Machado.

Sua inspiração é talvez a própria história de intervenções externas na América Latina. No início do século 20, a Doutrina Drago afirmava que a simples falha de um país latino-americano em pagar dívida externa não justificava a intervenção armada de potências estrangeiras. Logo depois viria o Corolário Roosevelt, que ampliou o papel dos Estados Unidos como “polícia hemisférica”, justificando intervenções em nome da estabilidade ou proteção de interesses econômicos.  Não é demais lembrar as invasões norte-americanas no Haiti (1915-34), na Guatemala (1954) e no Chile (1973), sempre sob justificativas de liberdade, anticomunismo ou proteção de interesses estratégicos. As consequências, sabemos bem: regimes militares, rupturas institucionais, dependência econômica e ciclos de instabilidade política. Depois vieram as reformas neoliberais dos anos 1980 e 1990, quando muitos países abdicaram de sua soberania pelo viés econômico, com liberalização acelerada e mal planejada, privatizações e entrega de ativos públicos. Sem esquecer sanções econômicas, bloqueios financeiros ou pressões diplomáticas. Países como Cuba, Venezuela e Nicarágua entraram nesse padrão.

Maduro tem apoio popular, a oposição venezuelana também tem, num fenômeno similar ao que ocorre no Brasil, por exemplo, onde a diferença entre derrotado e vitorioso numa eleição é pequena. Num contexto assim, não se pode comprar pelo valor de face o discurso oposicionista, de que se trata de uma ditadura para justificar uma intervenção armada externa dos Estados Unidos. É um erro histórico e que só se presta ao entreguismo que Corina Machado representa.

José Dirceu é advogado e militante político, foi ministro da Casa Civil.