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Em abril de 1974, mês de uma greve de fome nossa na Lemos Brito, Bruno já está sob os cuidados de Maria Helena e Godinho. Os dois haviam decidido: cuidariam de Bruno

As ditaduras são uma bomba. Ao explodirem, espalham estilhaços por todos os lados.
Estilhaços de sofrimento.
Sofrimentos diretos: pessoas sequestradas, presas, submetidas a toda sorte de torturas, desaparecidas, mortas.
Terror em carne viva.
Indiretos, se possível chamá-los assim porque inseparáveis, a atingir as famílias.
Primeiro, mães, heroínas, a saírem à caça, modo a localizar as crias, dando-se por felizes se as encontrarem vivas.
E as famílias inteiras – a espada da ditadura atravessa todos os membros da família, sem exceção.
Ditaduras desintegram famílias.
Poucas resistem íntegras.
Filhos, capítulos à parte.
Penso em Theodomiro.
Teve filhos na prisão.
A partir do casamento com Maria Conceição Gontijo de Lacerda.
Penso no primeiro filho do casal, Bruno.
O nome, inequivocamente, homenagem a Bruno Maranhão, um dos principais dirigentes do PCBR, sobre o qual já falamos nessa série.
Para chegar à trajetória do filho, no período da ditadura, necessário recuperar um pouco da história de outro casal, vítima dos terrores do regime militar.
Falo de Renato Godinho Navarro, falecido recentemente, e de Maria Helena de Lacerda Godinho.

Queda da AP
Militantes da Ação Popular (AP), casaram-se em 1970. Eram clandestinos. Deslocados para Salvador, são presos em maio de 1971, ao lado de vários outros militantes, entre os quais Tibério Canuto de Queiroz Portela e Antônio Rabelo, os quais, junto com Godinho, compunham o Comando Regional da AP. O outro integrante, José Carlos Arruti Rey só não foi preso porque pouco antes havia viajado para a Espanha visitar o pai doente.
AP, sob cerco. Eu próprio, também da AP, havia sido preso em novembro de 1970. Um pouco antes, caíra Benjamin Ferreira de Souza, logo depois, Mara Loguércio, casada com ele, ambos também militantes da organização. Mais ou menos no mesmo período, são presos dezenas de secundaristas, e alguns poucos universitários, todos militantes ou área de influência da AP. A barra havia pesado, e pesaria ainda mais.

Maria Helena lembra a convivência de Godinho com os companheiros da Galeria F, na Penitenciária Lemos Brito, em Salvador, onde floresceram amizades de vida inteira. Uma delas, Theodomiro Romeiro dos Santos. Eu e Godinho, também, nos tornamos amigos por toda a existência.

Theo, para recordar, foi condenado à morte em março de 1971. Depois, viu a pena ser diminuída para prisão perpétua. Pouco a pouco, os advogados foram conseguindo redução, até chegar à condenação de 16 anos e alguns meses.

Em 13 de dezembro de 1973, Godinho viu-se livre depois de passar mais de dois anos na Galeria F como prisioneiro político. Maria Helena, em liberdade desde maio daquele ano.

Em 15 de dezembro, o casal retorna a Belo Horizonte, e se hospeda na casa dos pais dela. Lá, encontra a irmã Maria Conceição, esposa de Theodomiro.

Os dois a surpreendem com Bruno no colo, nascido naquele 5 de dezembro – mês intenso aquele dezembro de 1973. O menino, no olhar de Maria Helena, uma criança forte, saudável, bonita e carequinha.

Foi o primeiro contato de Godinho e Maria Helena com Bruno, primeiro filho de Theodomiro. Maria Conceição viaja para Salvador, filho ao colo. Maria Helena fala da separação de Theo e Conceição no ano de 1974. Um tempo depois, haverá reconciliação. E só muito mais tarde, acontecerá rompimento definitivo entre os dois, já no exílio decorrente da fuga dele em 1979.

Passados entre três e quatro meses, Maria Conceição volta a Belo Horizonte, com o filho. Doente, precisava ir para São Paulo se tratar. Deixa Bruno com os pais, e um recado, de acordo com Maria Helena: se ninguém da família pudesse criá-lo, seria levada a entregá-lo a algum amigo, pois, doente, não tinha condições de cuidar dele.

Casal acolhedor
Em abril de 1974, mês de uma greve de fome nossa na Lemos Brito, Bruno já está sob os cuidados de Maria Helena e Godinho. Os dois haviam decidido: cuidariam de Bruno.

Theodomiro, preso. Tomou-se uma primeira providência: fazer contato com a advogada Ronilda Noblat de modo a resolver um problema. Conceição registrara o filho apenas com o nome da mãe. Ronilda se virou nos trinta, e o menino passou a se chamar Bruno Gontijo de Lacerda Romeiro dos Santos.

Os oficiais do cartório foram até a Penitenciária Lemos Brito, Theo reconheceu a paternidade. Bruno tinha pai, agora. De papel passado. Theo concordou inteiramente com a proposta de Godinho e Maria Helena cuidarem de Bruno. Envia carta ao juiz aprovando a ideia. A impossibilidade de mãe doente cuidar do filho o preocupava, e agora, com tal decisão ficava mais tranquilo. Em mãos acolhedoras.

Formalizada a situação de Bruno, agora oficialmente sob os cuidados de Maria Helena e Godinho, o casal toma o cuidado de estabelecer alguma rotina de contatos entre pai e filho, não obstante as dificuldades impostas pela prisão de Theo, pela distância, ele em Salvador, os dois em Belo Horizonte, as dificuldades financeiras a dificultar eventuais viagens.

Cartas, muitas cartas. Fotografias, o quanto pudessem. E uma visita anual à Penitenciária Lemos Brito, em Salvador.

Enquanto vou contando, pensando na minha fala do início desse texto. A ditadura, ao encarcerar pessoas, especialmente jovens, adiciona penas, castigos, aos filhos, também. Desintegra famílias. Claro, alguém pode argumentar: separação ocorre nas melhores famílias. E é verdade.

Inegável, no entanto, o fato de serem muito maiores as possibilidades de desentendimento, dificuldades de relação numa situação como aquela. Um, preso. Mulher, em liberdade. Avolumam-se às vezes as incompreensões, até por impossibilidade de comunicação. Os filhos pagam o preço disso tudo – o preço da existência de uma ditadura.

Sorte, e nem sei se a palavra cabe, Bruno contar com a irmã da mãe, Maria Helena, a abraçar imediatamente o filho dela, dispor-se a cuidar dele, tornar-se a verdadeira mãe, para além dos laços de sangue.

Fácil, não seria, estabelecer uma relação entre Bruno e o pai. Mas, aconteceu. Pelos cuidados de Maria Helena e Godinho. E pela disposição, carinho de Theo, cuja atenção evidenciava a disposição de ser um pai presente, nos limites de uma situação como a vivida por ele.

A correspondência enviada por Maria Helena e Godinho, muito frequente. Não obstante, muitas vezes não chegasse ao destino. Passava obrigatoriamente pelo crivo da censura da segurança do presídio. Também as cartas de Theo passavam pelos censores. Lidas e carimbadas pelo serviço de segurança. As correspondências não aprovadas obviamente não chegavam às mãos dos destinatários.

Escrevendo para o censor
Em prisões da ditadura, você escreve primeiro, para o censor. Ao dar forma às ideias, pensa, reflete sobre o leitor inaugural, o imaginário, e real, homem ou mulher, sujeito encarregado da censura.

Pensa no que pode e o que não pode, o que deve e o que não deve escrever. Ditaduras atravessam todas as relações. O prisioneiro e os familiares têm de levá-la em conta, não cometer erros, não abrir o jogo, há sempre perigo na esquina.

Chega julho de 1974. Eu próprio, ao lado de Theo, na Galeria F. Ele, com o coração em Bruno. Maria Helena e Godinho, tomados de amores pelo menino. Theo escrevia para eles, tentando chegar ao filho. Numa carta de 27 daquele mês, chama-os “manos”, e se vale da sabedoria oriental ao dizer-lhes ser a paciência a maior das virtudes.

Era a sexta carta dele para os dois – nenhuma delas chegara ao destino. Batia pé: se não receberem esta, ia continuar escrevendo. Água mole em pedra dura tanto bate até que fura. A última carta dos manos estava datada de 22 de junho, mais de um mês antes. Viera junto com o “diário de Bruno”. A carta dele, a do dia 27 de julho, chegou às mãos dos manos.

O “diário de Bruno” fora ideia dos manos. Forma de aproximar o filho do pai, torná-lo mais real, dar a Theo a visão do cotidiano do filho. A ideia deixou Theo muito feliz, como ele confessa na carta de julho. Reclama: as fotografias não haviam ficado muito boas. Não dava para ver direito o rosto de Bruno.

Perguntava: e os dentes? Já nasceram? Pedia: digam pra ele que eu estou com muita saudade e mando um beijo e um abraço. Acrescentava: o fato de vocês terem ficado com ele me dá uma tranquilidade muito grande. As visitas anuais permitiram a Maria Helena e Godinho presenciarem a emoção e a felicidade de Theo diante do filho.

No diário, durante o primeiro ano de vida de Bruno, registravam-se as primeiras gracinhas, as primeiras palavras, nascimento dos dentes, primeiros passos, informações sobre o desenvolvimento físico, tipo de alimentação, relatórios do pediatra, fotos, tudo. Theo, de longe fosse, e era, revelava-se um pai atento, preocupado, cheio de atenções com o filho, muito amor.

Sabia: a prisão seria longa. O filho, um oásis naquele deserto. A ele todo amor, o quanto pudesse naquelas condições.

Ia escrevendo. Volta e meia perguntava pelo crescimento dos dentes. Pensando no crescimento dele: daqui a uns seis meses, ele já vai estar falando um monte de coisas. Tinha esperança, já vai dar até pra conversar com ele. Pedia: deem um abraço bem apertado e um beijo nele e digam que fui eu que mandei.

Reclama às vezes de Godinho e de Maria Helena, de não falarem mais extensivamente de Bruno na correspondência. Lembra: o filho havia completado nove meses, deve estar enorme e bonito, exclamava, pai coruja. Se puderem, mandem fotografia, solicitava. Queria saber, ansioso: ele já fala alguma coisa? Está cabeludo? E os dentes?, perguntava sempre pelos dentes.

Em 23 de setembro de 1974, numa das cartas, brincava: o fato de Bruno ser o menino mais bonito e simpático do mundo “não é novidade nem acaso”. Perguntava a Maria Helena: “você nunca ouviu dizer que os filhos recebem os caracteres dos pais? É um problema de genética…”.

Sempre havia alguma reclamação, jeito de mandar recado às intromissões da censura, a prejudicar a relação do pai com o filho: não havia recebido os retratos coloridos de Bruno, enviados por Maria Helena, nem a carta que os acompanhava.

Estou retado da vida, dizia. “Se eu souber quem pegou, esse alguém nem queira saber o que é que eu faço…”.

Em 8 de outubro de 1974, finalmente chegam a carta e os retratos. Pai que é pai, só pode falar bem do filho: “achei que ele está com uma ótima disposição, bonito e grande”. Registra: com fisionomia muito diferente da última vez que o vira.

Pai que é pai, se vê no filho: “aquela fotografia dele sentado no berço é quase idêntica a uma que eu tirei quanto tinha a mesma idade. Aquela em que ele está com os olhos meio fechados...”. Claro, foto tirada por alguém quando ele, Theo, era bebê – Bruno, a cara do pai, podia ser diferente?

Já fica em pé direitinho, né? Vai demorar pra começar a falar? Vai perguntando na carta, sempre ansioso. Confessa que às vezes se surpreende pensando em Godinho, em Maria Helena, em Bruno, “nas minhas pouco frequentes divagações”.

Nota dele: os pensamentos giram no interior de um círculo muito restrito. Neles, falta a sensação molecular da vida extramuros. Estão ausentes os pequenos detalhes e atitudes da vida cotidiana. São eles, tais detalhes e atitudes, a permitirem avaliar a estrutura das pessoas.

“Por isso eu gosto tanto quando você escreve que nasceram os dentinhos, que ele gosta de comer e rasgar papel (deve ser tendência antiburocrática), de brincar com tampinhas e mastigar o rabo da pata velha…”.

Nos muros da prisão
Coisa de quem está cercado pelos muros de uma prisão. “Esses pequenos flashes, descrições de coisas aparentemente insignificantes tomam uma dimensão muito grande para mim”.

Manifesta uma preocupação: quer saber como Bruno se comporta com pessoas estranhas. A pergunta, ele diz, o envolve diretamente. Porque quando encontrá-lo novamente, ele, Theo, será um estranho para ele. São as estranhas situações de um pai prisioneiro, e sem condições de ver o filho com frequência. Sob uma ditadura.

Em 16 de maio de 1975, e aí, registro, eu já não dividia a Galeria F com ele, Theo manda um beijo enorme para Bruno “e diga que eu mandei ele aprender a ler e escrever para poder receber cartas minhas”.

Em 24 de junho do mesmo ano, manda outro beijo, aí pelo fato de Bruno completar um ano e meio de idade. Em 13 de agosto daquele mesmo ano, pede a Godinho e Maria Helena informarem como o filho está se desenvolvendo, “tudo direitinho”. E solicita aos dois para dar uma notícia ao menino: está fazendo uma bola e uma almofada para ele. Pai que é pai...

As cartas cobriram todo o período de prisão de Theo, do final do segundo semestre de 1970 até o dia 17 de agosto de 1979, quando ele foge da prisão. Theo nas cartas, como já visto, queria saber cada detalhe do desenvolvimento do filho, inclusive do aproveitamento escolar. E não se enganem: não se descuidou da função de pai provedor, desempenhada com muita “garra e persistência”, como diz Maria Helena.

Nós, na Galeria F, desenvolvemos uma oficina de artesanato, com linha de produção e tudo. Havia os artistas, os mais prendados, a embelezar com criações refinadas as bolsas, as carteiras, os cintos, as batas, os tapetes, e os operários braçais, como eu, a executar os serviços mais brutos, a exigir menos elaboração. Toda essa produção se dirigia a um mercado consumidor constituído por amigos dos presos, por familiares, por um público solidário à nossa condição.

O resultado de tais vendas atendia às necessidades dos presos, aqueles com menores rendimentos. Para sustentar as famílias, para pagar advogados. Não era muito, mas ajudava. Provinha daí o recurso de Theo para garantir a condição de pai provedor. Mensalmente, os manos recebiam um cheque, a contribuir de modo decisivo no sustento de Bruno.

A fuga de Theo, em 17 de agosto de 1979, deixou Godinho e Maria Helena à beira de um ataque de nervos. Souberam pela televisão. Um medo enorme de a repressão, aberta ou clandestina, sequestrar Bruno de modo a obrigar Theodomiro a se entregar. O casal tomou todos os cuidados.

Maria Helena chegou a parar de trabalhar. Bruno e a segurança dele, viraram prioridade absoluta. Como se voltassem à clandestinidade. Vigilância tempo integral. Diretora da escola foi informada das razões de ausência dele, só encerrada quando pelos meios de comunicação souberam da entrada de Theodomiro na Nunciatura Apostólica, dia 30 de outubro de 1979, mais de dois meses de tormento. Melhor: a vida só voltou ao normal mesmo quando Theodomiro chegou a Paris, exilado, no final daquele ano.

Em 1981, Bruno passa as férias de fim de ano com Theodomiro, em Paris. Depois da volta de Theo ao Brasil, em 1985, é convidado pelo pai para passar as férias de fim de ano com ele, em Recife.

Terminadas as férias, Bruno revela o desejo de morar com o pai. Godinho e Maria Helena aceitaram, não obstante, fosse uma iniciativa dolorosa para eles. Bruno era como um filho, era um filho. Férias de julho, e Bruno revela vontade de voltar a Belo Horizonte. Depois desse retorno a Minas, os contatos entre pai e filho se deram por telefonemas, por algumas visitas de Theo. Na idade adulta, Bruno ia anualmente a Recife passar o Natal com o pai.

Theodomiro e toda a família, presentes na formatura universitária de Bruno. No casamento dele, também, assim como no nascimento da primeira filha, em dezembro de 2016. Acompanhou de perto a doença do pai, e se fez presente nos períodos mais críticos. Theo morreu em 14 de maio de 2023. Bruno segue morando em Belo Horizonte.

Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros