
Casa do Tambor de Criola
Em encontros nacionais ou internacionais de culturas, uma das questões mais recorrentes é por que foi possível durante a gestão Messias Bolsonaro, tão marcada por seus ataques ao campo cultural, que as leis Aldir Blanc I, Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, depois traduzida em Plano Nacional Aldir Blanc (PNAB), fossem aprovadas? O paradoxo da situação exige explicações.
No Brasil e no mundo, quase todos sabem o que significou a gestão Messias Bolsonaro. Ela assaltou sociedade, cultura e fazedores de cultura. A bibliografia já existente reúne boa quantidade de estudos sobre a gestão. As análises demonstram sua atuação persistente em agressões, ataques, bloqueios, censuras, cortes orçamentários, desmantelamento de instituições, desativação de políticas, discriminações, produção de medos, perseguições, violências simbólicas e até físicas, tentativas de imposição de culturas autoritárias, além de outras medidas contra às culturas, em especial, democráticas e emancipatórias. A bibliografia, porém, não se debruça sobre a questão específica, que mobiliza este texto.
A situação se mostra mais enigmática, quando se constatam as grandes votações recebidas pelas três leis tanto na Câmara dos Deputados, quanto no Senado Federal, e, mais ainda, na derrubada do veto presidencial. Tudo em um Congresso Nacional, com maioria de bolsonaristas e seus aliados do chamado Centrão, agrupamento parlamentar fisiológico. Uma bancada, que funciona sempre à negócio.
Com o chamado “orçamento secreto”, a gestão comprou o apoio do Centrão e do parlamento, para evitar seu impeachment. A espantosa contradição entre as vitórias das referidas leis e a composição do Congresso Nacional reforçam a perplexidade.
Decifrar o enigma é um dever da reflexão sobre a cultura e as políticas culturais. O esforço só será possível com a realização exaustiva de pesquisas, que possam desvelar o conjunto de fatores explicativos do fenômeno. Enquanto as investigações não permitem ainda desvendar o enigma, resta esboçar hipóteses. O presente texto enfrenta o desafio. Ele formula hipóteses, por certo insuficientes, para tentar interpretar o episódio de enorme relevância para a cultura e as políticas culturais no país.
A pandemia da Covid-19 causou brutais sequelas mundo afora. No Brasil, seu impacto foi gigantesco, não só pelo absurdo de mais de 700 mil mortes, mas também pelo embate desigual vivido no país entre aqueles que defendiam medidas consistentes para enfrentar a epidemia do vírus e os que desqualificavam tais procedimentos em atitude negacionista.
Tal cenário potencializou os efeitos perversos da pandemia. No Brasil, a conjunção entre pandemia e pandemônio marcou a condução da saúde e de muitas outras áreas de atuação nacional. Os desacordos e confrontos entre a gestão e entes federativos estaduais e municipais adquiriram importância para abrandar a perversa conjunção.
Na cultura, além de tudo, a gestão Messias Bolsonaro discriminou os fazedores de cultura, excluindo-os das medidas gerais de auxílio à população, votadas no Congresso Nacional. A exclusão, junto às agressões sofridas, fustigou os agentes culturais, que sobreviviam em situação de grande fragilidade, devido à paralisação de suas atividades na tentativa de conter o vírus. As manifestações públicas das culturas foram das primeiras paralisadas, o que colocou os trabalhadores culturais em situação de precariedade. A conjugação entre debilidade extrema, marginalização e agressões resultou em revolta propícia à luta político-cultural. Entretanto, as carências vividas, em sentido inverso, deprimiram também o ímpeto de mobilizações.
A situação dramática forjou uma necessária superação das dificuldades inclusive com a ultrapassagem da aversão do meio cultural em dialogar com o parlamento. Antes, as conversas não iam além de pedidos individuais aos políticos amigos de mediação com autoridades da cultura, para obtenção de apoios para suas produções. Reverter a postura individualista e buscar relações parlamentares mais coletivas foram passos para a nova atuação dos fazedores de cultura junto ao Congresso Nacional. Tal aprendizado foi vital para viabilizar as leis, bem como a pressão política sobre os parlamentares.
A superação das dificuldades requer conversas com parlamentares sensíveis à cultura e com seus assessores. Eles tiveram papel relevante na sensibilização dos outros membros do Congresso, muitos deles distantes da cultura. O enfrentamento das dificuldades e da aversão ao parlamento colocou na agenda pública interesses comuns em lugar de pleitos individuais. Sem a sintonia entre agentes, comunidades, parlamentares e assessores nada seria possível. Cabe assinalar o papel dos órgãos do parlamento vinculados aos assuntos culturais, tal como a Comissão de Cultura. Ela teve um papel relevante no processo.
A posição secundária ocupada pela cultura na pauta de prioridades dos parlamentos contribuiu, por mais paradoxal que possa parecer, para facilitar a tramitação das leis, pois como a cultura não é o foco prioritário de trabalho da maioria dos deputados e senadores, a situação não enseja a presença de posições prévias, que dificultasse a tramitação das leis. A desatenção facilitou o processo.
Some-se a tudo isso a vigência no ambiente político da pressuposição, muitas vezes reiterada, de que as culturas não dão voto. Dadas as enormes carências existentes no país, as atenções dos políticos, quase sempre, se voltam para assuntos como educação, saúde, emprego, habitação e similares. Com raras exceções, os políticos colocam as culturas entre suas prioridades.
A pretensa irrelevância eleitoral convive, de modo paradoxal, como certa valorização da cultura canônica, tomada como indicador de distinção social, na sociedade brasileira, altamente elitista. Ainda predomina no país a concepção de classe que separa os que possuem cultura, daqueles que supostamente não têm cultura. A confusão entre cultura e educação formal é evidente. Em uma sociedade onde poucos têm acesso à educação, em especial em níveis mais avançados, a educação formal, tomada como cultura, serve de base para a discriminação de classe.
A vigência ainda se mantém, apesar de ser insustentável, dado que todos são seres culturais, pois vivem concepções de mundo, modos de vida, valores, sensibilidades, ideários, emoções etc. A valoração social da cultura permite que ela seja percebida como benéfica para todos. A cultura emerge como desejo da sociedade, como neutra e acima dos conflitos sociais, mesmo inserida nas contradições da sociedade capitalista. As disputas culturais parecem poder ser momentaneamente esquecidas.
A gestão Messias Bolsonaro não conseguiu, além da busca implacável de destruição da cultura, produzir culturas autoritárias, que fossem assumidas pela bancada bolsonarista nas disputas parlamentares. Ou seja, a guerra cultural bolsonarista foi capaz de debilitar as culturas existentes, mas não teve a força de instalar uma cultura tecida por valores autoritários. Assim, os parlamentares bolsonaristas não possuíam algo já elaborado para contrapor às propostas encaminhadas no Congresso Nacional, inclusive por setores democráticos de esquerda. Pouco adiantou a investida do Secretário Nacional de Cultura contra as leis no Congresso Nacional.
A relação com parlamentares e assessores foi essencial para a costura e vitória das leis. A mobilização do campo cultural ganhou fôlego. Por incrível que pareça, as limitações presenciais da pandemia e o deslocamento de parte das manifestações para o ambiente virtual pode ter, inclusive, favorecido a mobilização. As redes sociais conseguiram acolher o movimento do campo cultural. A combinação entre espaços presenciais e remotos pesou no êxito da mobilização.
Outro dado não pode ser menosprezado. Como as leis mobilizam recursos federais, como nunca aconteceu, para destiná-los aos estados, Distrito Federal e municípios, o interesse dos parlamentares foi atiçado, buscando contemplar suas bases eleitorais. O fator não é nada
desprezível para entender a decisão de aprovar as leis, mesmo derrotando a gestão que apoiava. Além disso, a pressão dos fazedores de cultura de todo Brasil sobre os políticos não deve ser menosprezada.
A mobilização e pressão de dirigentes estaduais, distrital e municipais de cultura, além de governadores, devem ser consideradas. Como a área da cultura sempre teve carência de financiamento, o surgimento da possibilidade de vultosos recursos animou dirigentes, fóruns organizativos e entidades associativas da cultura em pressionar o parlamento nacional, ainda que isso significasse derrotar a gestão Messias Bolsonaro.
Enfim, o conjunto desigual e combinado de fatores pode, em conjunção astral, possibilitar o improvável: a aprovação por tal Congresso Nacional das referidas leis, que representam uma mudança nos padrões de financiamento à cultura, não só em termos de volume de recursos, mas inclusive em sua perspectiva federativa, nunca alcançada antes.
Após a vitória surpreendente da lei Aldir Blanc I, as leis seguintes, Paulo Gustavo e Aldir Blanc II, sendo esta última uma legislação não temporária como as outras, vão de algum modo surfar na onda desencadeada pela aprovação da lei Aldir Blanc I, pois pavimentou contatos, produziu alianças, teceu caminhos e ainda estimulou a boa competição entre partidos de esquerda, como o PT e o PCdoB. Apesar de não pública, tal concorrência teve peso evidente na formulação e tramitação das duas leis. Ela não deve ser silenciada e estigmatizada como negativa, pois dela resultou a conquista de mais duas leis, que têm potencial de alterar o modelo de fomento à cultura no Brasil, ainda muito problemático pelo peso excessivo das leis de incentivo no financiamento nacional à cultura.
No conjunto de fatores acionados, alguns devem ser revistos, outros necessitam ser complementados por meio de estudos a serem desenvolvidos para explicar a confecção das referidas leis. Esclarecer os modos de agir pode ser interessante para estimular novas conquistas. O estudo da gestação de políticas e da participação da sociedade servem para mostrar a complexidade das conjunturas e as possibilidades de vitórias, mesmo em contextos improváveis.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)