
Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil
As direções da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, apoiados pelos bolsonaristas, centrão e governadores de estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Paraná e Goiás, agem para destruir as condenações dos golpistas de 8 de janeiro de 2023, inédita e profunda medida da democracia no Brasil, saudada mundo afora. Pela primeira vez, golpistas antidemocráticos estão sendo sentenciados no país. A efetividade do processo de condenação torna-se requisito vital para a consolidação da democracia no país.
No dia 10 de dezembro, mês natalino, na calada da madrugada, de modo sorrateiro, a Câmara dos Deputados deliberou, em escandalosa votação, a diminuição das penas dos condenados, que o STF havia julgado em cuidadoso e longo processo jurídico. Uma noite apressada valeu mais que anos de investigação, contraditório e tramitação transparente do procedimento legal. De um golpe, o trabalho jurídico rigoroso é destroçado pela votação orquestrada na Câmara dos Deputados. O golpe, mais uma vez, domina a cena política brasileira e agride a democracia. A palavra de ordem Congresso inimigo do povo, mais do que nunca, mostra sua verdade.
O golpe contra a sempre frágil democracia brasileira, que parecia dar passos para superar sua debilidade, mais uma vez busca abater a democracia e restabelecer a impunidade habitual para os golpistas. A história do Brasil combina a impunidade dos membros das classes dominantes com a violência brutal contra os que divergem delas. As desiguais reações aos episódios de sentar-se na cadeira da presidência da Câmara traduz de maneira escandalosa a desigualdade de tratamentos. Enquanto os bolsonaristas, que bloquearam o trabalho do Congresso por dois dias, estão impunes até hoje, o deputado Glauber Braga foi retirado na cadeira a força e com violência, além da imprensa ser expulsa do plenário e a TV Câmara ser desligada para impedir a visibilidade da agressão. Dois pesos e duas medidas que aniquilam a democracia. Outra vez, a palavra de ordem Congresso inimigo do povo reafirma sua verdade.
O golpe, iniciado em 2016 com a destituição de Dilma Rousseff, sem motivos legais desmascarados anos depois, é um processo que busca impedir que os setores democrático-progressistas governem. Ele ganhou novo formato nas eleições antidemocráticas de 2018, com a prisão e o afastamento do candidato Lula, líder em todas as pesquisas de opinião, e com o uso ilegal de fake news e de financiamento de empresas. Em 8 de janeiro de 2023, o golpe tentou assumir seu modo operante tradicional: tomada do poder nacional pela violência. Tais episódios de maior visibilidade, entretanto, escondem os infindáveis pequenos golpes, que buscam impedir o aprofundamento da democracia no país, o desenvolvimento dos governos democrático-progressistas e buscam pavimentar o retorno ao governo federal da direita e extrema direita.
A criação do atual modelo de emendas parlamentares no Congresso Nacional, na gestão Messias Bolsonaro, visando comprar o centrão e impedir qualquer processo legal de impeachment contra ele, representou um duro golpe na democracia brasileira por retirar do Executivo orçamentos preciosos para políticas públicas, dar ao Legislativo poderes de deliberação e execução do orçamento próprios do Poder Executivo e corromper as eleições ao impor condições de competição bastante desiguais, já que deputados e senadores têm a seu dispor volumosos recursos públicos, via orçamento secreto, para realizar suas campanhas. As emendas parlamentares no estilo atual, sem transparência e com recursos enormes, são um forte golpe à vida democrática. A excrescência chamada orçamento secreto corrompe a democracia. Mais uma vez, a palavra de ordem Congresso inimigo do povo mostra toda sua verdade.
A corrupção da parte majoritária do Congresso Nacional, com exceção da minoria de parlamentares democráticos e honestos, produz outro ataque vigoroso à democracia. Ela adquire diferentes formatos. O Congresso Nacional e diversos setores do Poder Executivo, nacional e subnacional, de parte do Poder Judiciário e do poder midiático encontram-se hoje comprometidos e assaltados pelo crime organizado. Tal invasão tem impedido a tramitação e a execução de leis fundamentais para combater o crime organizado. Leis urgentes, dada a gravidade da situação da segurança pública, são proteladas em tempos desmoralizantes no Congresso, e, muitas vezes, têm sido descaracterizadas de tal modo que perdem toda sua possível eficácia, facilitando a criminalidade na sociedade e no Estado brasileiros.
O crime organizado corrói Estado e sociedade. Ele impõe a violência como fator de resolução dos conflitos sociais e, assim, deprime a democracia como lugar legítimo de resolução pacífica de conflitos sociais. Os golpes não se fazem apenas pelo recurso à violência explícita, mas também pelo acionamento de violência implícita e/ou simbólica e pela instalação de um ambiente de ódio e violência, que dificulta a vida democrática. A violência inibe a democracia. A penetração do crime organizado hoje nas esferas legais de poder constitui-se em fator de desestabilização permanente da democracia no país.
A situação é ainda mais grave dado o sequestro do tema da segurança pública pela extrema direita, com a aquiescência da mídia. As violentas e ineficazes ações das forças policiais nas favelas colocam em risco a vida da população e de policiais, matam jovens negros e nada resolvem, mesmo porque não atacam o andar de cima do crime organizado, que está instalado não nas favelas, mas em mansões e escritórios das classes dominantes do país. Será possível acreditar que os chefes sejam aqueles, em geral negros, apontados? Ou eles estão bem protegidos e impunes no âmbito das classes dominantes? Helicópteros, aviões, caminhões apreendidos com drogas sempre desaparecem sem deixar pistas e os morros continuam a ser invadidos por operações espetaculares, bem ao gosto da mídia. Impunidade, privilégios, espetacularidade, repressão, violência, em doses dissonantes, em uma sociedade desigual, carregada de privilegiados e carentes.
A tendência atual em muitos países de subtrair políticas da gestão do Poder Executivo e colocá-las sob o controle de setores dominantes, mascarados de técnicos. Em verdade, eles estão submetidos a determinadas visões ideológicas de mundo. Tal processo tem subtraído da democracia áreas importantes do Estado e das políticas públicas. A suposta independência do Banco Central retira a política monetária da alçada do governo eleito e, na prática, subordina o banco ao mercado financeiro, sob pretextos tecnocráticos. Basta observar sua composição para ver quem decide sobre essas políticas. Tal movimento termina por impor um modelo único de conceber o desenvolvimento, com graves limitações à democracia, pois um de seus requisitos mais básicos exige a possibilidade de escolha entre alternativas existentes na sociedade. Os entraves às distintas políticas de desenvolvimento do país se tornam notáveis. Mais uma vez a democracia aparece ferida por golpes silenciosos. Governos democráticos são obrigados a gerir o país sob modelos de desenvolvimento que lhes são estranhos e, mais que isso, adversos.
Os golpes têm afinidades históricas com a mídia no país, devido a ela ser organizada de maneira tão antidemocrática em grandes conglomerados de produção e difusão de bens simbólicos. Golpes não prescindem da fabricação anterior de climas de desestabilização para serem viabilizados. Foi o que ocorreu em 1964 e em 2016. Para além do legítimo papel democrático da mídia de informar, debater, analisar, fiscalizar e avaliar governos, ela no Brasil, diversas vezes, tem buscado mesmo governar, seja impondo projetos, seja impedindo outros. Neste sentido, a mídia brasileira, com poucas exceções que confirmam a regra: silencia acontecimentos relevantes, dá intensa visibilidade a outros e manipula a esfera pública em defesa de seus interesses e dos negócios das classes dominantes. Poucos são os episódios em que ela assume a defesa e a ampliação da democracia.
Muitas vezes, a mídia tem acionado o “jornalismo de campanha”, por meio do qual sob a aparência de jornalismo, ela produz as mais deslavadas campanhas. Não dá para esquecer a sua atitude deliberada e antidemocrática de destruição política da imagem pública de Lula, quando 59 capas de revistas semanais, 680 primeiras páginas de jornais e 13 horas de Jornal Nacional foram manipuladas, durante anos, com tal objetivo. Nenhum massacre semelhante aconteceu com nenhum dos políticos das classes dominantes, por mais torpes que fossem suas atitudes. Muitos outros exemplos de perseguição política pública de políticos e partidos democrático-progressistas podem ser também lembrados. A mídia no país funciona como se fosse um mero partido político das classes dominantes, sem respeitar os mínimos princípios mesmo do jornalismo liberal.
Ao deter o poder de silenciar e dar visibilidade à realidade e aos entes sociais na sociedade complexa em que vivemos, a mídia, as redes sociais e as big techs instituem privilégios e legitimam impunidades. Basta ver como aparecem ou desaparecem na grande maioria das vezes, os empresários envolvidos em escândalos de corrupção. Eles são, quase sempre, esquecidos e silenciados. O caso das Lojas Americanas, que envolve três dos maiores empresários brasileiros, saiu rapidamente de cena. O mesmo pode acontecer com o escândalo da Refit e do Banco Master. Enquanto os bilhões de reais roubados dos cofres públicos são omitidos, sistematicamente, da esfera pública, os gastos do governo com programas sociais, em benefício da população, aparecem sempre taxados como problemas para o desenvolvimento e equívocos do governo, provenientes da gastança pública. Em suma, a mídia protege privilégios e falcatruas das classes dominantes, apoia sua impunidade, e exerce pressão cotidiana contra mecanismos e projetos, que buscam beneficiar a maioria da população. O tratamento desigual da mídia afeta a democracia. Sem democratização da mídia e das redes sociais torna-se difícil consolidar a democracia no Brasil. Sem regulamentação da mídia, das redes sociais e das big techs, a democracia no país continua sempre fragilizada. O pluralismo de informações e opiniões é alicerce do funcionamento da democracia.
Muitas outras faces do golpe poderiam ser tratadas no texto. Elas conformam um processo golpista contínuo e longo, que combina: desgaste do governo nacional; tentativas de imposição de políticas e privilégios, e, quando necessário, golpes contra a democracia de diversas dimensões e modalidades. Tal processo escancara os múltiplos ataques sobre a democracia, seu aprofundamento e sua consolidação, tão vitais para o Brasil. Ele aponta a fragilidade da cultura democrática e a postura antidemocrática de grande parte das classes dominantes brasileiras, que não pestanejar em recorrer aos golpes sempre que governos não subservientes a sua lógica estão no poder nacional. Com a proximidade das eleições nacionais de 2026 e a possibilidade de nova vitória de Lula, elas vão recorrer a todos os expedientes possíveis, legais e ilegais, silenciosos e escancarados, pacíficos e violentos, para impedir um novo governo democrático-progressista.
Além da eleição presidencial, as escolhas dos parlamentares e dos governos subnacionais serão vitais para o aprofundamento e consolidação da democracia. Uma democracia ampliada que combine a democratização do Estado, em que a prevaleçam as políticas públicas em benefício da população, interditando sua dominação pelos interesses dos privilegiados, com a democratização da sociedade, na qual as desigualdades sociais, as opressões de toda ordem e os privilégios sejam enfrentados e superados e, em seu lugar, floresça uma sociedade justa, que respeite os diferentes, e criativa, que possibilite a diversidade cultural, o pluralismo político, a igualdade e a liberdade para todos.
Antonio Albino Canelas Rubim é pesquisador e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA)