A universidade pela qual aqueles jovens lutaram há cem anos era incompatível com um país para poucos, situado ao Sul de uma América Latina atrasada, dividida e dependente. Ao perceberem a necessidade de transformá-la, se deram conta de que também precisavam mudar a estrutura social do país, profundamente injusta e desigual. Este é o principal legado da Reforma Universitária de Córdoba, principalmente para a construção de uma América Latina mais unida, democrática e integrada
“Los dolores que nos quedan son las libertades que nos faltan.”
Manifesto dos Estudantes de Córdoba
Em junho de 2018 celebra-se o centenário da Reforma Universitária de Córdoba. Quem eram e por que lutavam aqueles jovens que escreveram uma das mais belas páginas da história social argentina? Tomados pelo espírito de mudança que sacudiu o mundo no princípio do século passado, os descendentes dos imigrantes sonhavam com uma universidade democrática e inclusiva, capaz de rever velhas crenças e dar respostas a impasses do país. Essas ideias se chocaram com o projeto de Nação das classes dirigentes, com sua república oligárquica e suas universidades elitistas e monásticas.
Enquanto os filhos das elites iam estudar na Europa, restava para os descendentes de imigrantes uma universidade caduca, mantida sob a influência da Igreja Católica, resiliente ao ensino laico requerido pela modernidade capitalista. Na virada do século, eles representavam 30% da população argentina. Nos Estados Unidos, principal destino dos europeus, eles correspondiam a 15%. No Brasil, não chegavam a 10% da população. Mas, ao contrário do que acontecia na América do Norte, onde votavam e podiam ser votados, na Argentina a maior parte deles não tinha se nacionalizado, seja por se sentirem superiores aos “mestiços” locais, seja em razão dos obstáculos legais criados pelas elites, receosas de que os seus privilégios fossem ameaçados por eles.
Embora tivessem peso econômico e social entre a burguesia nacional e o proletariado – classes fundamentais para o florescimento da democracia no país –, os imigrantes estavam privados de participação política. As instituições da Argentina não foram feitas para recebê-los. Eles não se viam representados nos partidos políticos, nas universidades ou demais instituições políticas e sociais. Eram apenas tolerados pela aristocracia, que lhes dava o direito de ingressar em suas universidades. Deveriam se dar por satisfeitos, pensavam as classes dirigentes, e deixar de querer transformá-las. Desde sempre a aristocracia rural implicou com aquela “chusma de imigrantes”, que invadiu a Argentina e ocupou as grandes cidades do litoral, como Buenos Aires, La Plata e Rosário, e também do interior, como Tucumã e Córdoba.
Foi nesse contexto que os estudantes cordobeses se levantaram e, com uma greve geral contra o fechamento do hospital universitário, em março de 1918, iniciaram o movimento. Logo se deram conta de que as estruturas arcaicas da universidade não mudariam se permanecessem sob o controle das elites e a influência dos intelectuais jesuítas que a fundaram. Meio século antes do emblemático maio de 1968, eles foram para as ruas e reivindicaram, nada mais nada menos, que o direito de os estudantes exercerem o governo da universidade, de forma paritária e independente, por meio de suas associações de classe. Naquela época, a Argentina contava com apenas três universidades nacionais: Buenos Aires, La Plata e Córdoba. Das três, a Universidade de Córdoba era a mais retrógrada. No entanto, tomar os seus muros de assalto e permanecer isolados no interior da Argentina não mudariam muita coisa.
De fato, a transformação da universidade requer a mudança da sociedade ao redor dela. Por isso, os líderes do movimento lançaram apelos aos colegas das demais universidades da Argentina e da América Latina, conclamando todos a se unirem em torno da Reforma Universitária. Assim, o espírito de Córdoba se projetou muito além do país. Esse foi o pulo do gato daqueles jovens. Em vez de se consumirem em intermináveis discussões intramuros, se isolando da sociedade e do restante do país, eles descortinaram na ação política nacional e internacional o sentido do seu movimento. Tinham razão, pois uma universidade inclusiva e democrática não poderia existir senão em uma sociedade livre e democrática. Juntos se levantaram contra os privilégios da aristocracia; combateram o colonialismo e o imperialismo; solidarizaram-se com a Revolução Russa; defenderam os ideais integracionistas dos Libertadores. Viveram a política não só como reflexão teórica, como se espera dos estudantes, mas também como práxis transformadora, em sentido contrário ao das classes dominantes.
É bom lembrar que, naqueles tempos, as universidades latino-americanas estavam dominadas pelo positivismo cientificista, por um lado, e pelo tradicionalismo religioso, por outro. Os filhos dos imigrantes entenderam que para alcançar a plena emancipação dependiam de sua formação universitária, mas o sistema de ensino existente não correspondia minimamente às suas aspirações. O ingresso na universidade foi acompanhado de imensa frustração. Reitores e professores baseavam a sua autoridade em conhecimentos anacrônicos, inúteis para compreender e explicar as mudanças pelas quais passava o país. Às classes dominantes interessava uma universidade tradicionalista. Elas não viam nenhum sentido no ensino crítico e transformador. Além disso, não foi para estudar que aqueles jovens foram trazidos para a América do Sul. O incipiente capitalismo argentino, atrasado e dependente, necessitava de braços, sobretudo para o campo, não de especialistas sofisticados. Como seus pais, eles estavam aqui para trabalhar duro. É compreensível que se sentissem excluídos e inconfortáveis, inclusive entre os demais estudantes argentinos. Decidiram, portanto, romper as cadeias e mudar a história.
Seus alvos declarados foram o regime administrativo, o método docente e o conceito de autoridade imperante em Córdoba. Denunciaram os privilégios de uma “determinada camarilha”, cujo lema, “hoje para você, amanhã para mim”, adquiriu validade de estatuto universitário; os professores foram acusados de manter a universidade distante das “disciplinas modernas”, divorciada dos reais problemas do país, e as autoridades acadêmicas de serem responsáveis pelo “espírito de rotina e submissão” reinante na instituição. Divulgado em 21 de junho de 1918, o Manifesto se dirigia aos Homens Livres da América e dizia: “Creemos no equivocarnos, las resonancias del corazón nos lo advierten: estamos pisando sobre una revolución, estamos viviendo una hora americana”.
Cem anos depois, a Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila) é parte dessa história. As ressonâncias da reforma de Córdoba estão inscritas no projeto que deu origem a essa universidade. Para se ter uma ideia desses vínculos, basta ver as recomendações da comissão de implantação da Unila, na qual elas estão presentes. Assim como tantas outras universidades criadas no Brasil no século 21, a Unila oferece aos filhos das classes populares o acesso à universidade pública e gratuita. Além de contribuir para uma sociedade mais justa e democrática, a Unila tem uma missão internacionalista, que a diferencia das demais e faz dela uma universidade aberta aos povos latino-americanos.
Neste momento em que se reclamam novos mapas cognitivos para a explicação da realidade, sua missão é constituir o pilar educacional da integração latino-americana. Por meio do desenvolvimento científico, tecnológico e cultural, cabe a ela contribuir para a preservação da paz, da democracia e dos direitos humanos na região. Superada a atual fase de retrocessos, um novo ciclo integracionista por certo terá lugar na América Latina. À Unila cumpre estar preparada para sustentá-lo. Abraçar a defesa desse projeto educacional, internacionalista e pioneiro não implica desconhecer a necessidade de aprimorá-lo constantemente.
Certamente os tempos são outros e a política nunca esteve tão degradada como agora, especialmente aos olhos da juventude. Mas não existe alternativa fora dela. Como diziam os líderes do movimento há cem anos, “as dores que ficam são liberdades que faltam”. O centenário da Reforma Universitária de Córdoba, que brevemente será festejado por universitários em várias partes do mundo, enseja a reflexão sobre o legado daqueles jovens que ousaram lutar pela liberdade, enfrentaram os poderosos e mudaram a universidade do seu tempo. Representa, ao mesmo tempo, uma oportunidade para refletir sobre o atual quadro de retrocesso democrático e suas consequências danosas para o ensino superior.
A universidade pela qual eles lutaram era incompatível com um país para poucos, situado ao Sul de uma América Latina atrasada, dividida e dependente. Ao perceberem a necessidade de transformá-la, se deram conta de que também precisavam mudar a estrutura social do país, profundamente injusta e desigual. Este é o principal legado da Reforma Universitária de Córdoba, não só para a democratização da vida universitária (onde quer que ela se encontre ameaçada), mas também, e principalmente, para a construção de uma América Latina mais unida, democrática e integrada.
Renato Martins é professor adjunto de Ciência Política e Sociologia (Unila), presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco) e pós-doutorando em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires (UBA)