Cultura

O governo Lula conduz uma transição do paradigma neoliberal para um novo projeto de desenvolvimento. Um possível segundo mandato deve concluir esse processo de transição

"(...)não se trata de instrumentalizar a cultura para a luta política, e sim de fazer da própria luta pela hegemonia o processo histórico de instituição de uma cultura política. Nas esquerdas brasileiras, a luta pela hegemonia transformou-se em atuação pedagógica (ensinar a verdade às massas), propaganda, (convencer as massas) e produção de um sentimento identificador (a consciência de classe autêntica e correta)."

Marilena Chaui, in Cidadania Cultural - O Direito à Cultura

A hegemonia do pensamento conservador será posta à prova, mais uma vez, no processo de disputa política em curso nesses últimos meses do governo Lula. Além do necessário debate em torno do novo projeto de desenvolvimento, a partir da redefinição do papel da esfera pública que avançou durante os últimos quatro anos, o país não pode se furtar à discussão em torno dos valores ético culturais que devem cimentar a reconstrução democrática no Brasil.

O combate à fome, a redução da fratura social que herdamos, o compromisso do Estado republicano com a garantia dos direitos do cidadão e a conquista de novos direitos, a retomada do desenvolvimento, sustentável, com distribuição de renda e garantia da diversidade cultural, são alicerces dessa nova edificação moldada pelo trabalho dos brasileiros e pela capacidade de liderança das forças democráticas e populares que sustentam uma nova perspectiva para o país. A disputa em curso, quando devidamente despida dos véus da hipocrisia e da retórica exercitada ad nauseam pelo vasto aparato conservador, trata do confronto entre a apropriação privada do Estado, a defesa da democracia dos patrícios, dos proprietários, a substituição da idéia de nação pela noção de mercado, de um lado, contra a recuperação do papel da esfera pública como coordenadora do projeto de desenvolvimento, a plebeização da democracia com o alargamento da participação popular, a recuperação da nossa capacidade de planejar nosso futuro como Nação e afirmar nossa presença soberana no mundo, de outro.

Passados quase quatro anos, podemos afirmar que o governo Lula conduz uma transição do paradigma neoliberal para um novo projeto de desenvolvimento para o Brasil. Alguns de nós imaginávamos que essa transição se consumaria no primeiro ano de mandato. Outros, que nós simplesmente não estávamos transitando para lugar algum, mas repetindo mecanicamente as políticas do governo anterior, tamanhos os condicionamentos herdados. Ao longo dos últimos meses, as reações da sociedade brasileira - uma democracia que abriga interesses extraordinariamente complexos - indicam que vivemos, sim, uma transição e que pela primeira vez não se trata de uma transição por cima, de acordo com a tradição histórica do nosso país, mas de uma transição que incorpora os de baixo. Estamos, talvez, ensaiando os primeiros passos para retomar a construção interrompida de que falava Celso Furtado.

Desatado o processo de recuperação da legitimidade da esfera pública como fator indispensável para o desenvolvimento econômico do país, trata-se de aprofundar o debate sobre a qualidade desse desenvolvimento. Voltando a Celso Furtado, a economia dá conta dos números, de quantificar o desenvolvimento, a cultura fala da qualidade, da alma do desenvolvimento. As esquerdas brasileiras - e o Partido dos Trabalhadores, em especial, pela relevância que tem - não se detiveram para dar conta teórica e politicamente desse desafio que está indissoluvelmente vinculado à disputa de hegemonia, à constituição de uma nova cultura política, no país.

Uma contribuição relevante a esse esforço nos vem de Marilena Chaui, na coletânea de ensaios Cidadania Cultural - O Direito à Cultura, que publicou recentemente pela Editora Fundação Perseu Abramo. Com a lucidez de sempre, Marilena reelabora a formulação de Gramsci ao afirmar que "a hegemonia não é forma de controle sociopolítico nem de manipulação ou doutrinação, mas uma direção geral (política e cultural) da sociedade, um conjunto articulado de práticas, idéias, significações e valores que se confirmam uns aos outros e constituem o sentido global da realidade para todos os membros de uma sociedade, sentido experimentado como absoluto, único e irrefutável porque interiorizado e invisível como o ar que se respira. Dessa perspectiva, hegemonia é sinônimo de cultura em sentido amplo e sobretudo de cultura em sociedade de classes." Essa disputa de hegemonia, evidentemente, não se circunscreve ao mundo acadêmico. Será travada na arena política e entre suas armas contam-se a raiz social dos contendores, a força política e eleitoral que foram capazes de organizar na sociedade, os aparelhos ideológicos de que dispõem e o programa que oferecem ao país.

Do ponto de vista das esquerdas, trata-se de conquistar a mais significativa derrota das posições neoliberais e consolidar de maneira ampla a legitimidade de uma agenda democrática e popular no novo governo. Essa definição parte do entendimento de que o governo Lula, como afirmei, mesmo considerando severas limitações, opera um processo de transição entre o paradigma neoliberal e um novo modelo de desenvolvimento. A vitória possível para um segundo mandato, pela qual trabalhamos, deve trazer consigo a conclusão do processo de transição para uma nova dinâmica de desenvolvimento que ofereça as bases materiais para a sociedade sem explorados nem exploradores que sonhamos ao propor o Manifesto de 10 de fevereiro de 1980, quando o Partido dos Trabalhadores emergiu na cena política do país.

Avanços democráticos

Num momento em que a dinâmica que organiza o pensamento e os projetos político-ideológicos em disputa na sociedade se transfere para os meios de comunicação e deixa, sob esse aspecto, esvaziados os partidos - particularmente os partidos conservadores -, a própria mídia, no caso brasileiro, trabalha na perspectiva de igualar as siglas, para desmoralizá-las em seguida. Para fazer frente a essa perspectiva é necessário e urgente o esforço dos partidos de esquerda para conferir nitidez aos valores que defendem e aos projetos culturais, em sentido amplo, que lhes dão suporte.

O esquecimento da política - ou, para ir direto ao ponto, o combate que a mídia conservadora trava contra a atividade política - vai abrindo um perigoso espaço em que medra um ambiente carregado de conservadorismo, quando não degenera no estímulo a uma aberta atitude reacionária, amamentada pelo preconceito de classe, de raça ou contra os migrantes que se deslocam de sua região, ou mesmo de outros países, para as grandes metrópoles do Sudeste, sobretudo São Paulo. Não há como romper o cerco do conservadorismo que vai se constituindo, particularmente nos setores médios das grandes metrópoles brasileiras, sem um esforço para entender e estimular o sentido libertário do fazer cultural que vem se tecendo no Brasil, nos últimos anos.

Verifica-se no país um processo de criação disperso, mas suficientemente significativo para desencadear um vigoroso movimento cultural contra os valores conservadores, veiculados diariamente pelo monopólio dos meios de comunicação de massa. Entretanto, tal movimento cultural não ocorre. Não se traduz em um corpo reconhecível; não reclama identidade alguma. A característica marcante das múltiplas expressões culturais que se produzem hoje, no Brasil, é precisamente a pulverização, a dispersão. A baixa capacidade de dialogar com outras manifestações vindas das diversas regiões do país, a ausência de uma fisionomia que componha valores comuns, que dê forma inteligível aos desencontrados fragmentos do mosaico que compomos.

Se partirmos do entendimento de que é a sociedade, e não o Estado, que cria cultura, e que cultura envolve, em sentido amplo, troca de valores estéticos diferentes, e, mais ainda, que cultura é, em última análise, comunicação, chegaremos à conclusão de que a alta concentração da mídia, no Brasil, se constitui em um elemento inibidor da diversidade do impulso criativo nas regiões mais afastadas das plantas da indústria cultural estabelecidas no sudeste do país e das suas possibilidades de intercâmbio e enriquecimento. Desse modo, é mais fácil encontrar na produção artística brasileira o diálogo - de resto indispensável - com outras expressões culturais do mundo contemporâneo do que com nossa própria e diversa criação. Esse fato cultural não é obra do acaso. Deve-se, em alguma medida, ao monopólio dos meios de comunicação de massa na sociedade brasileira que tende à homogeneização e à pasteurização do que se produz.

Resulta desse processo uma importante produção simbólica que não encontra canais para expressar se. No interior da fratura social visível estala outra fratura, de natureza cultural, ainda insuficientemente examinada que, quando se cruza com novas tecnologias de baixo custo, (CDs, DVDs etc.), gera um vasto mercado informal, subterrâneo, capaz de reproduzir milhões de cópias e alcançar parcelas da sociedade sistematicamente mantidas à margem do consumo de bens simbólicos, em razão do alto custo deles no mercado oficial das megagravadoras de imagem e som. Essa base da sociedade, por sua vez, consome conteúdos que expressam uma rebeldia difusa contra a ordem, mas aspira, contraditoriamente, à inclusão dentro da ordem. Ela não detém os meios necessários e suficientes para articular-se com outras fontes de manifestações simbólicas no extenso território do país a ponto de afirmar-se com fisionomia própria em contraposição à indústria cultural e, em alguns casos, não se propõe a isso. Ao contrário, pretende constituir uma espécie de mercado paralelo de amplas dimensões para capturar com o discurso do rap, do hip-hop ou do funk uma legião de jovens manos e falcões nas periferias das grandes metrópoles brasileiras ou, ainda, os rebentos da classe média entediados, em busca de emoções fortes.

Trago tais elementos para o debate dos temas da cultura com o objetivo de identificar essa justaposição dos mercados - a Daslu e Heliópolis; o Shopping da Barra e a Rocinha, ambos filhos do apartheid social que se incorporou ao cotidiano dos brasileiros como sua paisagem inevitável. E para indicar a ausência do Estado - garantia do equilíbrio democrático das respostas aos direitos dos cidadãos - como fator inseparável dessa fratura social e cultural. Recuperar, portanto, os mecanismos de ação do Estado republicano como instituição legitimada pelo voto dos cidadãos para incidir no interior desse processo social e cultural fragmentado é um dos desafios centrais do novo projeto de desenvolvimento do país. Um projeto de desenvolvimento que incorpore a indispensável dimensão cultural, como desejava Celso Furtado ao distinguir desenvolvimento de crescimento econômico puro e simples.

Talvez devamos buscar a explicação para aquela ausência de pontes diretas entre os processos sociais e políticos que vivemos e a criação cultural em sentido estrito na emergência e massificação dos produtos oferecidos pela indústria cultural; na extraordinária diversidade da nossa criação cultural regional, que obedece a outros ritmos e outras dinâmicas produtivas e não encontra meios para se exprimir nacionalmente, como mencionei, em razão do controle monopolizado das mídias, em particular da TV; mas também podemos encontrá-la na debilidade programática dos partidos, na ausência de uma sistematização do pensamento das esquerdas contemporâneas no campo dos valores, capaz de organizar e conferir nitidez ao horizonte ético-cultural das aspirações populares que encarnamos. Ao recusar inicialmente o dirigismo e a visão utilitarista do processo cultural - que caracterizou em alguma medida a prática tradicional das esquerdas -, incidimos no erro oposto, ou seja, numa concepção liberal de relação entre o coletivo partidário e os criadores - os artistas -, que são tratados individualmente. Não realizamos o esforço consciente para incorporá-los de maneira articulada em espaços democráticos de debate e elaboração passíveis de gerar processos renovadores no tratamento dessa difícil relação entre o fazer político e o fazer cultural, no mundo contemporâneo. O resultado se expressa numa reduzida e descontínua capacidade do partido de oferecer respostas adequadas aos problemas que envolvem essa dimensão inseparável da transformação social que desejamos.

O lugar dos partidos

Em 2002, ao apresentar ao país o documento "A Imaginação a Serviço do Brasil", sistematizamos um acúmulo, ainda que insuficiente, de formulações resultantes do esforço de artistas, intelectuais e militantes da cultura ao longo de mais de duas décadas. Tal acúmulo trazia consigo o impulso imaginativo de quem produzia propostas a partir da sociedade, mas também o limite de não contar com um quadro satisfatório das informações objetivas sobre a dinâmica político-administrativa do Estado. Hoje se exige que prestemos contas da gestão à frente do governo e, ao mesmo tempo, mantenhamos a sensibilidade com relação ao que se produz a partir da sociedade, no campo da cultura. Aqui cabe destacar o lugar de onde partimos: os partidos.

O programa de governo elaborado pelas forças políticas que propõem a reeleição do presidente Lula não pode ser formulado exclusivamente a partir da experiência - sem dúvida valiosa - conduzida nos últimos quatro anos à frente do governo. Para produzir os avanços necessários, ele deve resultar do diálogo dos partidos políticos que dão suporte à coligação, entre si e com os movimentos sociais, segmentos e organizações de classe, as universidades e centros de produção e difusão do conhecimento, setores econômicos e políticos comprometidos com a nova proposta de desenvolvimento do país, capaz de resgatá-lo da estagnação econômica de duas décadas, da fratura social e cultural que nos golpeia e da desmoralização da atividade política. Não deve, pois, o programa de governo constituir-se apenas numa peça de natureza administrativa que lista metas e fixa os meios orçamentários e extra-orçamentários para cumpri-las.

O governo Lula desencadeou um conjunto de políticas de caráter transformador, realizou conquistas tão relevantes para a democracia brasileira que não pode limitar-se a oferecer aos cidadãos apenas mais do mesmo. Para uma parcela considerável da população, o governo Lula significou pela primeira vez na vida a possibilidade de traduzir o discurso político em mudança concreta nas condições de vida e de trabalho. Significou para milhões de pessoas a possibilidade de exercer como direito o que antes o Estado oferecia como esmola para a clientela ou, para usar uma expressão contemporânea, como políticas compensatórias. A produção de avanços que abram caminho para um novo paradigma de desenvolvimento pós-neoliberal passa pela valorização do espaço dos partidos políticos - à direita e à esquerda devastados pela crise do sistema de financiamento - como mecanismos indispensáveis para a construção e o aprimoramento da experiência democrática em curso, pela primeira vez conduzida pelos setores populares. Reiterando, o papel dos partidos sempre - e neste momento em especial - é absolutamente crucial para produzir, dentro de regras democráticas, o grande projeto de país que desejamos para o Brasil do século 21.

Para tanto, é necessário abrir, com vistas ao III Congresso do Partido dos Trabalhadores, previsto para o próximo ano, o mais amplo debate sobre os rumos da proposta socialista e democrática do PT numa sociedade que não cessou de modificar-se desde sua emergência na cena política, nos anos 80. Esse debate não poderá escapar de algumas definições de caráter - ter caráter é ter projeto, ensinava Paulo Emílio Sales Gomes - e da estratégia de transformação que defendemos para o país, além do incontornável debate sobre os códigos internos do partido, seus estatutos, seus métodos de direção, sua democracia interna.

Ao nos debruçarmos sobre o país para decifrar seus enigmas e enfrentar seus dilemas, para projetá lo na dimensão futura, para exercer, contemplando-o, a mais fecunda e característica condição humana - sonhar o sonho coletivo -, não podemos prescindir das expressões culturais que o gênio de nossa gente produziu. É indispensável que, dentro do Partido dos Trabalhadores, sejamos capazes de forçar, de modo definitivo, a estreita moldura que recorta nossa discussão sobre cultura, realizada sempre, para lembrar a frase de Marilena Chaui, "...por três prismas: o do entretenimento, o da agitação cultural (instrumental) e o da divisão doutrinária entre cultura de elite e cultura popular" (pág. 10). Há um longo caminho a percorrer no sentido de incorporar a inseparável dimensão da cultura socialista e democrática ao novo projeto de Brasil que rompa com o ambiente conservador que nos sufoca. Esse caminho exige uma abordagem contemporânea das questões da criação, produção e difusão cultural no país. Num sistema global em que as formas de gerir a economia são cada vez mais semelhantes, são as culturas que trazem consigo a fisionomia diferenciada com a qual nos apresentamos diante dos povos do mundo.

Hamilton Pereira (Pedro Tierra) é presidente da Fundação Perseu Abramo e secretário executivo da área de Cultura do Programa de Governo