Internacional

A formação das redes de cidades como atores constitui um importante vetor para a atuação municipal no plano externo

Este artigo1 discute alguns desdobramentos da pesquisa “Gestão pública estratégica de governos subnacionais frente aos processos de inserção internacional e integração latino-americana”2, com o intuito de explorar os limites e possibilidades que se apresentam especificamente à atuação externa de governos locais3.

No atual contexto de globalização e de integração produtiva, comercial e financeira, assistimos à intensificação das assimetrias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Essa situação de crescente desigualdade, evidentemente, reflete-se no plano interno dos países, adquirindo mais força e gravidade nas regiões e cidades, que emergem como locus privilegiado de articulação entre instituições políticas, agentes econômicos privados e organizações não-governamentais.

As cidades adquirem, cada vez mais, um novo tipo de protagonismo, seja no enfrentamento dos grandes problemas urbanos – como segurança, pobreza, transporte, saúde, meio ambiente, habitação e telecomunicações, dentre outros –, seja na construção de alternativas para o desenvolvimento e a geração de empregos. Para tanto, adotam estratégias diferenciadas que conjugam iniciativas voltadas, de um lado, para a atração de investimentos, a renovação da base econômica e a modernização da infra-estrutura urbana e, de outro, para a melhoria da qualidade de vida, a integração social e a governabilidade.

Nesse quadro, o grande desafio da gestão pública municipal consiste não apenas em promover mudanças capazes de conseguir competitividade e inserção nos espaços econômicos globais, mas também – e sobretudo nos países em desen­volvimento, como é o caso latino-americano – em assegurar as condições mínimas de bem-estar social para que a convivência democrática possa se consolidar.

Frente a esses novos requisitos de gestão, governos locais são induzidos a assumir novos papéis e funções, como, por exemplo, a liderança desse processo de transformação e o desempenho de função coordenadora e articuladora entre as administrações públicas das diferentes instâncias de governo, a iniciativa privada e os demais integrantes da sociedade civil. Além disso, a resposta a essas demandas implica ampliação de seus respectivos campos de atuação em muitos setores estratégicos, tais como: promoção econômica para o exterior, concepção e implementação de projetos urbanísticos, de moradia e de meio ambiente, infra-estrutura de serviços urbanos, transportes e comunicações, segurança pública e justiça, políticas sociais e culturais.

O imperativo de projeção e inserção na economia global – incluindo a integração em redes e organizações regionais e mundiais de cidades e autoridades locais – exige, necessariamente, o desenvolvimento de novas relações bilaterais e multilaterais, o que impõe um novo padrão para a gestão municipal no campo das relações internacionais. Os governos locais assumem, assim, uma nova condição de sujeitos políticos no sistema internacional, interagindo, inclusive, com organismos de natureza eminentemente intergovernamental.

Embora esse protagonismo político e econômico das cidades no plano internacional já constitua uma realidade mais consolidada no exterior – como, por exemplo, nas grandes urbes européias (Barcelona, Lisboa, Lille, Glasgow), asiáticas (Seul, Taipei, Hong Kong, Cingapura, Xangai) e, até certo ponto, latino-americanas (Bogotá, Córdoba, Buenos Aires) –, no caso das metrópoles brasileiras como Porto Alegre, São Paulo – e também de cidades de porte médio como, por exemplo, Guarulhos –, apenas nos últimos anos essas experiências avançaram em seus respectivos processos de institucionalização.

A incorporação do tema das relações internacionais por parte de diferentes governos municipais induz a uma reflexão mais aprofundada a respeito do novo espaço de intervenção do nível local de governo no cenário internacional, envolvendo tanto as possibilidades abertas a sua atuação, enquanto ator internacional emergente, quanto as limitações que lhe são impostas em função de sua própria circunstância federativa.

O entrave federativo

Os movimentos espontâneos de assunção de novas responsabilidades pelos governos estaduais e municipais reacenderam o debate a respeito da necessidade de revisão do atual modelo federativo brasileiro frente aos novos requisitos de autonomia. É forçoso reconhecer que o perfil da Federação brasileira não se ajusta às necessidades e aos desafios apresentados pelo momento atual4.

As questões em discussão nos planos regional e local reproduzem, em grandes linhas, as tendências do atual debate internacional, que enfatiza a autonomia dos entes federados como caminho para o revigoramento das federações. A qualidade da Federação passa a ser um aspecto vital para estados e municípios, no sentido de que suas regras de funcionamento não podem dificultar o desempenho econômico das unidades que a compõem na economia globalizada.

Se até há pouco tempo estados e municípios representavam meras unidades administrativas da Federação brasileira, desde a promulgação da Constituição de 1988 – que consagrou o município como ente federado –, evidencia-se a maior capacidade de gestão financeira e de prestação de serviços públicos por parte dos governos municipais, o que coloca em pauta a necessidade de reflexão sobre uma nova agenda para o municipalismo brasileiro.

Além disso, a própria dinâmica imposta pela globalização fez com que os municípios viessem a assumir sua condição de ente político, com uma dimensão econômica e social e, ainda, um nível de interesse comum de sua comunidade. Embora na prática esse aumento do poder de intervenção dos governos municipais já tenha se evidenciado, ainda não foi plenamente reconhecido nos planos jurídico-institucional, fiscal, ou mesmo político.

O debate sobre o federalismo representa uma questão estratégica para os governos municipais pela possibilidade que abre para a revisão das bases do modelo brasileiro frente aos novos condicionantes impostos pela nova realidade nacional e internacional. O desempenho do novo papel configurado para o nível local de governo pressupõe nova concepção de autonomia, assim como clara distribuição de competências entre esferas de governo. Considerando que o maior dinamismo da economia se reverte em aumento da arrecadação, a autonomia municipal emerge como condição tanto para uma atuação estratégica dos governos locais, voltada para o desenvolvimento regional, quanto para o enfrentamento da situação de restrição orçamentária das cidades.

Isso porque o aproveitamento das oportunidades propiciadas pela lógica internacional – conjugando a exploração adequada das condições existentes e o desenvolvimento de políticas voltadas à criação e ao aprofundamento de vantagens competitivas5– depende da forma como o governo municipal e sua comunidade se recolocam não somente frente à economia global, mas também frente à federação e à democracia.

Processos de integração regional

Paralelamente às questões de caráter eminentemente interno, a própria dinâmica do atual contexto global induz ao estudo dos governos locais enquanto novos atores nas relações internacionais, o que requer maior compreensão a respeito de suas peculiaridades e fraquezas, assim como de sua influência relativa no contexto federal e no próprio aparato institucional da integração. É preciso considerar que a ampliação do campo de atuação das cidades é acompanhada, simultaneamente, pela inclusão de novos atores no jogo político, assim como pelo aumento das possibilidades e dos obstáculos a ser superados.

Por essa razão, o estudo dos impactos dos processos de integração regional – e, no caso específico das cidades brasileiras, o estudo do Mercosul e de suas negociações com a Alca e a União Européia, além de suas articulações com os demais países da América Latina – pode ser extremamente funcional à gestão dos governos municipais, na medida em que objetiva desenvolver subsídios para a reorientação das políticas públicas municipais, seja identificando e neutralizando impactos negativos, seja aproveitando as vantagens competitivas oferecidas pela cidade no ambiente ampliado do Bloco, envolvendo competição e comércio.

À medida que as decisões tomadas no âmbito regional tornam-se mais evidentes, a integração vai, paulatinamente, participando da vida doméstica das nações envolvidas. Além disso, o próprio avanço das negociações em torno da integração também faz com que sua temática se aproxime do cotidiano do cidadão comum. Nesse sentido, os municípios tendem a ganhar importância nos processos de integração.

Essa é uma situação que ilustra a clássica interdependência entre a vida doméstica e a regional, criada pelo processo de integração. E essa crescente interdependência entre Estados membros do Mercosul pode fazer com que alterações significativas no âmbito da integração provoquem – nas instâncias governamentais e não-governamentais – a necessidade de buscar canais e formas de participação capazes de garantir sua sobrevivência ou promover sua expansão.

As redes internacionais

A formação – ainda em processo – do novo espaço político configurado pela atuação das redes de cidades como atores emergentes no sistema internacional constitui outro importante vetor para a atuação municipal no plano internacional. O estudo desse processo, no entanto, exige o entendimento da orientação política, da lógica de funcionamento e da eficácia dessas redes, enquanto instrumentos de expressão de governos locais nos próprios processos de integração em que estão inseridos e também em negociações internacionais relevantes, como é o caso da Alca, por exemplo.

Um primeiro aspecto a ser considerado em uma análise desse tipo consiste em entender as relações que se estabelecem entre as cidades que participam das redes, seja no plano nacional, seja no internacional. O tratamento sob forma de rede6 deverá levar em conta a complementaridade entre as unidades envolvidas, e não a mera utilização das mesmas redes como plataformas relevantes para a obtenção de vantagens específicas.

Além disso, é preciso entender as possibilidades que as redes de cidades – seja entre si, seja na relação com os Estados nacionais – estabelecem com os blocos regionais e com as organizações internacionais (políticas, financeiras e outras), no sentido de maximizar vantagens e competências específicas7. Isso significa visualizar como tais vantagens e competências podem ser abordadas, de modo que não impliquem em jogo de soma zero8.

Daí a importância de estudar maneiras pelas quais atitudes cooperativas possam evitar perdas para alguns participantes, ou mesmo não-participantes, identificando alternativas que façam com que a lógica de pressão ou, ainda, estratégias de plataforma adotadas por algumas redes para alcançar objetivos de visibilidade possam vir a ser utilizadas de forma cooperativa.

Um terceiro aspecto, certamente relacionado com os dois anteriores, é a utilização das redes de cidades para maximizar capacidades. Os níveis de desenvolvimento e a capacidade produtiva e tecnológica alcançados nas últimas duas décadas do século 20 – e nesta primeira do século 21 – sugerem que as escalas e a alocação das capacidades devem ser pensadas em termos globais, e não apenas locais, regionais ou nacionais.

Esse tema tem sido tratado de maneira diferenciada em cada tipo de cidade, de acordo com suas dimensões, capacidades, inserção geográfica e participação global. Os anos 90 foram marcados pelo predomínio dos valores ligados à idéia de competitividade9. Os problemas colocados por esse modelo, admitidos por órgãos internacionais, por Estados e pela literatura, reavaliam a preponderância desses valores e sugerem a necessidade de fortalecimento de formas cooperativas. Ainda que a competição e a hegemonia permaneçam como formas política e intelectualmente relevantes, para que as redes de cidades tenham eficácia elas deverão fortalecer instrumentos cooperativos.

Além disso, nos casos das grandes cidades, a definição de identidade e vocação viabiliza instrumentos de cooperação simétrica – em contraposição aos enfoques tradicionais do assistencialismo –, sob a forma da cooperação técnica e da cooperação engendrada pela geração de negócios empresariais, envolvendo iniciativas de comércio, de venda de serviços e de transferência de tecnologia, entre outras.

Desse modo, as redes de cidades poderiam vir a se transformar em locus organizacional de discussão e debate a respeito das vocações nos contextos regional, nacional e internacional. Além disso, podem vir a deter alguma especialidade agrícola ou de agribusiness, competências em ramos de tecnologia ou high-tech em serviços (bancos, comércio). A contemporaneidade sugere não haver sempre espaço para vocações simultâneas. Por exemplo, hubs nas áreas de transportes aéreo e marítimo, grandes feiras especializadas etc. O importante será a necessidade de enfatizar formas não-predatórias, que contemplem o interesse do conjunto dos participantes das redes. O uso do conceito de desvio de comércio é particularmente útil nesse caso, uma vez que trata de agregar valor, e não de distribuir diferentemente a riqueza existente ou em vias de ser produzida.

Por fim, as redes podem vir a desempenhar o papel de contribuir para a formação de grupos epistêmicos10, especialmente voltados à formulação dessas políticas. É importante ainda salientar que os conceitos aqui apresentados requerem a participação dos Estados nacionais em sua formulação, assim como sua adesão, sob risco de ineficácia.

A cooperação técnica e financeira

Além das oportunidades de atuação municipal abertas pelos processos de integração regional e pelas redes de cidades, os governos locais contam com outro interessante recurso para elevar a eficiência e eficácia de sua gestão: a utilização das possibilidades existentes no campo da cooperação técnica e financeira internacional.

Conforme observam Keohane e Nye11, ao sofrerem os impactos negativos advindos dos processos de globalização e regionalismo, os Estados nacionais tendem a reagir no plano das relações internacionais ou a redistribuí-los no plano interno, dependendo de seus respectivos graus de sensibilidade e vulnerabilidade12.

Nessa perspectiva, quanto maior o grau de vulnerabilidade internacional de um país, maior será a tendência de o governo central redistribuir esses custos aos entes federados, via descentralização de políticas. Nesse processo, governos locais passam a ter de absorver custos gerados pela dinâmica global que antes não lhes eram atribuídos.

No caso brasileiro, essa dinâmica acabou por configurar verdadeiro paradoxo a ser enfrentado pela gestão municipal, na medida em que – paralelamente à transferência de novas responsabilidades, por meio da descentralização de políticas para os governos locais – o governo federal instituiu a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que limita a capacidade de endividamento dessas instâncias subnacionais de governo.

Frente a essa situação, as prefeituras municipais defrontam-se com duas possibilidades. A primeira reside na ampliação das receitas pela elevação dos impostos. A segunda consiste na identificação de outras alternativas gerenciais, que lhes permitam desincumbir-se de suas responsabilidades sem gerar novos custos.

É nesse contexto de grave restrição orçamentária que as possibilidades de cooperação técnica horizontal – assim como de captação de financiamentos externos – ganham destaque, porque viabilizam recursos para elevar a eficiência e eficácia das administrações locais sem gerar custos e permitindo maior participação por parte da instituição receptora. Existem atualmente dois tipos de financiamento internacional: financiamento a fundo perdido e empréstimos com juros praticados no mercado internacional, menos custosos que os juros internos.

No caso das cidades brasileiras, essas duas alternativas são de difícil concre­­tiza­ção. A primeira não se viabiliza por­que – na avaliação da comunidade financeira internacional – o Brasil é considerado país muito desenvolvido para receber qualquer tipo de financiamento a fundo perdido. E a segunda também apresenta dificuldades para a grande maioria das cidades em decorrência das restrições ao endividamento municipal impostas pela LRF.

A busca de solução para essa questão, evidentemente, não se situa no campo das atividades burocráticas. No atual contexto, o aproveitamento das possibilidades advindas da cooperação técnica e do financiamento internacional exige muita criatividade e capacidade de identificação de oportunidades externas, podendo inclusive atuar no sentido de propiciar a abertura de novos espaços para intervenção do governo municipal no campo das relações internacionais.

E o sucesso dessa empreitada será determinado pela capacidade governamental de articular necessidades e soluções internas com essas novas possibilidades abertas no exterior, sem romper com o papel clássico exercido pelo Estado nacional – por meio de suas burocracias especializadas – no campo da política internacional.

Ou seja, os grandes temas que se apresentam envolvem as seguintes questões: como utilizar as possibilidades criadas pela arena externa para resolver as necessidades dos municípios sem entrar em conflito com os preceitos da Federação? Como a interação entre os níveis interno e externo pode ser bem utilizada para a solução dos problemas dos municípios? Que instituições são mais apropriadas para essa tarefa e como elas podem ou devem atuar?

O enfrentamento dessas questões envolve, necessariamente, a implementação de mudanças empíricas, cabendo ao governo local a função fundamental de, por um lado, identificar as oportunidades abertas no plano externo e, por outro, inserir uma nova cultura político-administrativa no âmbito da estrutura estatal, caracterizada, no nível interno, pela articulação cooperativa entre as diversas instâncias do Estado, os setores privados e a sociedade civil.

Esse novo padrão de gestão – se desenvolvido no contexto do jogo social13 – pode inclusive contribuir para dar sustentação política à atuação do governo local no plano externo. Assim, muitas questões concretas enfrentadas pelos governos municipais poderão resultar da conexão entre a identificação dos problemas e a escolha de alternativas no nível interno e as iniciativas articuladas no plano internacional, envolvendo formas de cooperação técnica e de financiamento externo.

Maria Inês Barreto é doutora pela Eaesp-FGV, diretora e pesquisadora do Cedec, assessora superior de gabinete do Núcleo de Apoio à Mobilização de Recursos e Relações Internacionais da Prefeitura Municipal de Guarulhos