Cultura

Contamos com anos de experiência na gestão de processos de democratização ao acesso aos bens e serviços culturais e com a Agenda 21 das Cidades para a Cultura

Mais alguns meses e estaremos, em 10 de fevereiro de 2005, celebrando 25 anos da fundação do Partido dos Trabalhadores. Não há como negar a importância desse fato na história política do Brasil, por algumas razões. Primeira, num país submerso, por mais de uma década, a uma ditadura militar, emerge um poderoso movimento operário que dá impulso, a partir do coração industrial do país – o ABC –, a um conjunto de movimentos sociais gestados na sombra em diferentes regiões e lhes dá sentido e perspectiva. Segunda, aquele movimento operário imprimiu um forte caráter de classe às disputas sociais e políticas do momento, sem deixar de dialogar com outros setores sociais que somavam forças contra o regime, ou seja, sem cair na armadilha do sectarismo. Terceira, o movimento operário mobilizou a energia social capaz de constituir um conjunto de instrumentos de luta popular, ou seja, teceu estruturas orgânicas com fortes vínculos com os excluídos da sociedade brasileira – como o PT e a CUT – e estimulou a reentrada na cena política do país de um expressivo número de organizações, movimentos e partidos de esquerda, antes reprimidos pelo aparato da ditadura. Quarta, aquele movimento operário constituiu-se simultaneamente num fato político e cultural, introduzindo novos valores democráticos e republicanos na cultura política das esquerdas e no fazer político tradicional da sociedade brasileira.

Uma razão, em especial, demandará um exame atento da experiência do PT: não temos paralelo na história do Brasil – e no continente – em tempos de “normalidade democrática representativa” de um partido que, nascido das lutas sociais, tenha crescido sob fogo cerrado do Estado, das elites e da mídia; tenha sido capaz de eleger bancadas parlamentares em municípios, estados, na Câmara e no Senado Federal; tenha dirigido governos municipais, esta­duais e, a partir da eleição de 2002, alcançado o governo do país.

Essa trajetória, por assim dizer, vertiginosa, merecerá nos próximos meses um conjunto de análises mais detidas seja pelo olhar de quem viveu e construiu essa aventura política de transcendental importância para a história do Brasil, seja por quem a vem combatendo sistematicamente ao longo desses 25 anos. Um conjunto de análises capaz de dar conta da complexidade desse riquíssimo processo, das contradições e conflitos de um projeto político de largo fôlego, dos seus equívocos e acertos que, de um modo ou de outro, marcaram profundamente a trajetória da reconstrução da democracia representativa no Brasil.

Para os objetivos deste diálogo, destaco um aspecto: o PT constitui-se simultaneamente como um fato político e cultural. Ou seja, a trajetória política do partido é inseparável dos avanços democráticos e da disputa de valores contra o pensamento e o “fazer político” conservadores prevalecentes na cultura política do país, ainda que, de algum modo, o reproduza na prática cotidiana.

Não cabe aqui uma digressão teórica sobre valores defendidos pelas esquerdas frente ao conservadorismo oligárquico. O que exige o debate, hoje, considerando que somos governo em municípios, estados e na União, é como traduzimos os valores do socialismo democrático, da participação popular, do compromisso com o direito das classes trabalhadoras e dos excluídos à educação, à saúde, à moradia digna, à terra para trabalhar, à cultura, com a afirmação da soberania nacional, em políticas públicas que modifiquem para melhor a vida das pessoas.

A um partido com vocação transformadora como o PT corresponde a necessidade vital de não acomodar-se, de introduzir novos temas, novos elementos na agenda do país, de polarizar com sua ação mobilizadora as forças populares nesse processo de transição para o qual não existe desenho prévio. Desse modo torna-se possível articular a vocação transformadora do partido com a vocação hegemônica indispensável à consolidação de um bloco social duradouro, capaz de dar sustentabilidade a um novo ciclo de desenvolvimento.

A disputa em curso nos próximos meses – as eleições municipais – exigirão de nós ousadia e criatividade em todos os campos. Desejo, com estas linhas, indicar um deles – o campo das políticas públicas de cultura – como um espaço privilegiado do debate. Para ele contamos com um acúmulo de experiência obtido ao longo de anos na gestão de processos de democratização do acesso aos bens e serviços culturais e uma sistematização recente que resultou na formulação da Agenda 21 das Cidades para a Cultura.

O lugar da fala

O lugar de onde se fala. Esse território que permeia a vida material e o sonho humano: a cidade. Espaço do convívio e do conflito. De decifrar interesses, alinhar-se a eles ou contestá-los. Espaço para o exercício de pactos que, institucionalizados, constituem novos direitos. Que incorporam elementos de cultura republicana e democrática e, ao fazê-lo, produzem uma perspectiva de superação da cultura oligárquica herdada. O tema dos direitos culturais cobra de maneira incontornável sua inclusão na pauta das esquerdas. A Agenda 21 das Cidades para a Cultura, aprovada no Fórum Universal das Culturas em Barcelona, em maio, sistematiza um conjunto de princípios, compromissos e recomendações que merecem a atenção das forças democráticas da sociedade brasileira. Particularmente no momento da disputa eleitoral nos municípios, oportunidade privilegiada para definir perspectivas, afirmar valores e explicitar novos projetos políticos para as cidades.

Por dever de justiça cabe registrar o esforço da administração popular de Porto Alegre, conduzida pelo prefeito João Verle, para viabilizar o processo de debates que resultou nas sucessivas redações do texto que, por fim, chegou às mãos dos prefeitos de centenas de cidades de todas as partes do mundo, durante os trabalhos do Fórum. Esse esforço envolveu a participação de gestores, artistas, produtores e militantes da cultura de diferentes países da América Latina – e, naturalmente, a participação ativa da Alcaldía de Barcelona. Registre-se também que a sessão que aprovou a Agenda 21 das Cidades para a Cultura foi presidida pela prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, recém-eleita para dirigir a Cidades e Governos Locais Unidos (CGLU), a nova entidade de representação mundial de cidades e regiões.

Já não é motivo de polêmica a importância dos espaços locais como fator de aprimoramento democrático, de ampliação do controle social sobre a ação política e administrativa dos governantes. As experiências políticas mais avançadas não podem prescindir de uma forte participação dos cidadãos nos processos destinados a formular e gerir políticas públicas. Essa noção rompe com a cultura conservadora, autoritária, cultivada pela direita, e expõe de modo eficaz as raízes das práticas populistas e clientelistas tradicionais. As lideranças e dirigentes dos partidos de esquerda que se lançam agora na disputa pelas prefeituras não podem perder de vista a afirmação dos processos de participação popular como um elemento central diferenciador da cultura conservadora que combatemos.

A diversidade cultural

“A diversidade cultural é o principal patrimônio da humanidade. É o produto de milhares de anos de história, fruto da contribuição coletiva de todos os povos, através das suas línguas, imaginários, tecnologias, práticas e criações. A cultura adota formas distintas, que sempre respondem a modelos dinâmicos de relação entre sociedades e territórios. A diversidade cultural contribui para uma existência intelectual, afetiva, moral e espiritual satisfatória” (Declaração Universal da Unesco sobre a Diversidade Cultural, artigo 3º), “e constitui um dos elementos essenciais de transformação da realidade urbana e social”.

Aprendemos em prosa e verso que a maior riqueza cultural do Brasil é a sua diversidade. Enquanto a indústria cultural, durante muitos anos, veio tomando todas as providências para pasteurizá-la, para homogeneizá-la e, portanto, sendo ou não esse seu objetivo, para empobrecê-la. A questão fundamental que se propõe para nós, como forças políticas de esquerda, na disputa pelo poder local é: que medidas práticas, que políticas públicas de cultura devem ser implementadas para garantir uma ação eficaz nas duas vertentes essenciais do fazer cultural – cultivar a memória e garantir a liberdade de criação? Tradição e invenção, como cultivar a primeira e estimular a segunda?

A constituição de Conselhos Municipais de Cultura como espaço institucional permanente de diálogo entre o poder público, os criadores e produtores culturais e os cidadãos da comunidade é indispensável para estimular as expressões culturais locais e o diálogo entre elas e as diferentes expressões artísticas e culturais do país. A integração do município no Sistema Nacional de Cultura defendido pelo documento “A imaginação a serviço do Brasil”, apresentado à sociedade brasileira pelo companheiro Lula na campanha de 2002 e agora em fase de discussão por iniciativa do Ministério da Cultura, contribuirá substantivamente para a reafirmação do papel do poder público e a recuperação dessa extraordinária diversidade cultural que nos caracteriza.

Espaço físico do fato cultural

“As cidades e os espaços locais são ambientes privilegiados da elaboração cultural em constante evolução e constituem os âmbitos da diversidade criativa, onde a perspectiva do encontro de tudo aquilo que é diferente e distinto (procedências, visões, idades, gêneros, etnias e classes sociais) torna possível o desenvolvimento humano integral. O diálogo entre identidade e diversidade, indivíduo e coletividade, revela-se como a ferramenta necessária para garantir uma cidadania cultural planetária como a sobrevivência da diversidade lingüística e o desenvolvimento das culturas”.

Um conjunto de experiências que já ultrapassam duas décadas nos autoriza a afirmar que o exercício de participação popular, em diferentes conselhos ou nas assembléias mais amplas do Orçamento Participativo em algumas das nossas administrações, instala, por assim dizer, elementos de uma nova cultura democrática e republicana nas cidades que governamos. O tema cultura, hoje, mobiliza expressivos contingentes de cidadãos, rompendo aquela falsa hierarquia que anos e anos de gestão autoritária e tecnocrática fez prevalecer como verdade absoluta: “Primeiro as necessidades básicas, depois o supérfluo” – como se os equipamentos e atividades culturais não se incluíssem entre as necessidades básicas dos cidadãos.

Articular as experiências já amadurecidas nas administrações populares – como os Corredores Culturais no Estado de São Paulo – com as propostas da nova geração de gestores e utilizar as instâncias construídas pelo partido, como a Secretaria de Cultura do Diretório Nacional, com o objetivo de qualificar cada vez mais nossos quadros e nossos serviços aos cidadãos produzirão a curto prazo uma sensível diferença entre nós e nossos adversários nos embates municipais.

A centralidade das políticas

“A afirmação das culturas, assim como o conjunto das políticas que foram postas em prática para o seu reconhecimento e viabilidade, constitui um fator essencial para o desenvolvimento sustentável das cidades e territórios no plano humano, econômico, político e social. O caráter central das políticas públicas de cultura é uma exigência das sociedades no mundo contemporâneo. A qualidade do desenvolvimento local requer o imbricamento entre as políticas culturais e as outras políticas públicas – sociais, econômicas, educativas, ambientais e urbanísticas”.

Para as esquerdas está posto o desafio de recuperar a imaginação política e, a partir do chão onde pisam, redefinir o lugar das políticas públicas de cultura e sua relação com as demais políticas de governo. Afastar-se das concepções utilitárias e conservadoras de cultura, que a entendem como ornamento – ou simplesmente como uma dimensão do eterno panen et circencis – e acabam por reproduzir uma relação de subordinação com os criadores e produtores culturais e, o que é ainda pior, com os cidadãos. Esse desafio vale para as pequenas, médias e grandes cidades e exige uma resposta objetiva no debate, no campo dos valores, com os nossos adversários.

À medida que investirmos de maneira sistemática na constituição dos instrumentos de formulação e fiscalização (conselhos), de execução das políticas públicas de cultura (secretarias, coordenações, fundações); à medida em que estabelecermos um diálogo permanente com a Câmara de Vereadores, com o objetivo de integrar o município ao Sistema Nacional de Cultura, estaremos nos aproximando do objetivo de culturalizar o conjunto das políticas, conferindo-lhes o caráter transformador que desejamos.

Por fim, reproduzo aqui alguns dos compromissos contidos na Agenda 21 das Cidades para a Cultura que podem perfeitamente ser assumidos pelos programas de governo dos candidatos a prefeito e pelas plataformas dos candidatos a vereadores como uma nova perspectiva de tratamento das políticas públicas de cultura:

   - Garantir o financiamento público da cultura mediante os instrumentos necessários. Entre eles deve destacar-se o financiamento direto de programas e serviços públicos, o apoio a atividades da iniciativa privada através de subvenções, assim como aqueles modelos mais novos como o microcrédito, fundos de risco etc. Igualmente, cabe contemplar o estabelecimento de sistemas legais que facilitem incentivos fiscais às empresas que invistam na cultura, sempre tendo em conta o respeito pelo interesse público.
- Constituir espaços de diálogo entre as diferentes opções espirituais e religiosas que convivem no território local e destes com o poder público, com o fim de assegurar o direito de livre expressão e uma convivência harmônica.
- Promover a implementação de formas de avaliação do impacto cultural para considerar, com caráter perceptivo, as iniciativas públicas ou privadas que impliquem em alterações significativas na vida cultural das cidades.

Uma última reflexão sobre a necessidade política de dirigentes das cidades, de nossos prefeitos e vereadores perceberem a importância das políticas públicas de cultura na disputa simbólica que travamos em cada uma delas. Pergunto aqui, sobre a necessidade de seduzir, com que valores? Não é raro que a percepção do espaço que nos cerca nos venha pela perda. Releio esses versos de Drummond sobre “A morte das casas de Ouro Preto”:

Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não vêem. Também morrem.
São frágeis as construções humanas.

Suas edificações, suas representações, seus símbolos. É indispensável cultivá-los para que algum dia nossos filhos tenham onde reconhecer-se. Os antigos nos ensinam sutis hierarquias: há os que falam e os que calam. Entre os que falam, primeiro anunciam o nome, logo depois, o lugar. Sobre os que calam se diz: “Não têm eira nem beira”. Os que não têm nome nem lugar. Penso na legião de homens e mulheres, milhões deles despejados dos campos para as cidades brasileiras no último quarto do século 20. Penso na luz empoeirada da tarde que os recebeu na beira da cidade sonhada. Na beira da miragem. Sempre na beira. Como nomear esse lugar inóspito e desconhecido? Com que palavras compor a esqualidez desse território que mais rejeita que acolhe?

Nossas cidades se converteram em formigueiros humanos. Não vamos reconstituí-las como espaço dos nossos sonhos e dos nossos conflitos, naquele lugar que acolhe os que vieram guiados pela miragem, sem exercitar a capacidade de seduzir os membros de cada comunidade, de demonstrar a eles que os valores culturais da nossa gente são o cerne de sua regeneração.

Hamilton Pereira é presidente da Fundação Perseu Abramo