Internacional

Livros abordam a construção política do FSM e seus desafios estratégicos

Fomos brindados no período recente com vários livros sobre o Fórum Social Mundial (FSM), cujos autores, em sua maioria, são companheiros que deram contribuições relevantes para sua realização. Refiro-me a José Corrêa Leite1, Bernard Cassen2, Boaventura de Sousa Santos e Chico Whitaker. A presente resenha é sobre os livros de autoria dos dois últimos.

Em O Fórum Social Mundial: Manual de Uso, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos procura destrinchar o sentido do FSM, sua epistemologia, sua metodologia de funcionamento, sua estratégia e ação política, sua eficácia e, por que não, também seus problemas e dificuldades, concluindo com uma série de sugestões para fortalecer sua democracia, sua representação e sua organização.

Ao contrário de seus outros três colegas, Boaventura não participou diretamente dos organismos responsáveis pela realização do FSM. Isso o obrigou a interpretar os acontecimentos a partir daquilo a que pôde assistir pessoalmente e de informações indiretas, como depoimentos, publicações, o que fez com pequena margem de erro. Suas principais críticas estão embasadas em números oficiais dos organizadores, como, por exemplo, as ausências no FSM. Ele nos legou uma contribuição deveras profunda e importante.

Em seu livro, Chico Whitaker faz uma referência ao risco em que Cassen incorreu ao escrever seu texto na primeira pessoa (Anexo 10). Mesmo tendo feito essa observação, Chico, que também escreveu em primeira pessoa e com muita convicção sobre o que acha que o FSM é e o que não é, referencia-se em quase cinqüenta anexos, que são artigos produzidos e entrevistas concedidas por ele mesmo, desde a primeira edição do FSM, em 2001. Dessa forma, além de parecer que rompe com o princípio de que ninguém fala em nome do FSM, acaba se repetindo e expondo os mesmos argumentos várias vezes.

Chico participa do processo organizativo desde o início e tem sido um membro do Comitê Organizador (CO) muito dedicado. Seguramente poderia nos oferecer testemunhos muito interessantes sobre o desenvolvimento da organização das várias edições do FSM e de seu processo preparatório, bem como sobre a construção dos métodos que têm possibilitado a convergência de movimentos e personalidades tão diversificados. Porém, o centro de seu texto é o desafio de manter o que ele denomina de não-diretividade, horizontalidade e diversidade do FSM como condição sine qua non para assegurar sua continuidade.

Existem agrupamentos de esquerda que classificam o FSM como um mecanismo de conciliação de classes e outros termos menos publicáveis. No entanto, a ampla maioria das forças progressistas do mundo é unânime em reconhecê-lo como uma grande iniciativa na luta contra a globalização neoliberal. Difícil é definir, e talvez ainda seja cedo demais para isso, o que é o FSM e o que poderá ser no futuro.

Para Boaventura, o FSM é uma utopia crítica, um movimento diferente e novo que aglutina velhos movimentos. Sua novidade se expressa na capacidade de gerenciar e negociar as tensões que surgem dessa aglutinação. O novo também é relacionado com a utopia. O FSM não é um evento único, mas um conjunto de eventos a partir dos fóruns temáticos, regionais e nacionais que se reproduzem cada vez mais. É um espaço de tradução de culturas, práticas e saberes, e quem os traduz são ONGs, intelectuais e ativistas, e tem como princípios a igualdade e o respeito pela diversidade.

Para Chico Whitaker, o FSM é um espaço de articulação e aglutinação, organização horizontal por intermédio de redes, diverso e sem estrutura dirigente. Não é um movimento, não tem declaração final e ninguém está autorizado a pronunciar-se em seu nome, três condições expressas em sua Carta de Princípios. O FSM projeta as forças de resistência e os movimentos como líderes da resistência mundial à globalização e é um intermediário da mudança do mundo para a socie­dade.

Realmente, um evento dessa natureza, mesmo sendo internacional, não se transforma num movimento, pelo menos por ora, quando as lutas permanentes contra o neo­liberalismo ainda se dão no nível dos Estados nacionais, e assim será, provavelmente, por muito tempo. A recente luta contra a privatização da água na Bolívia, por exemplo, ocorreu somente lá e foi organizada pelos bolivianos. Não se deu em outros lugares e, no máximo, contou com a torcida dos movimentos de outros países. Mesmo com o caráter internacionalista das mobilizações de Seattle, Praga, Gênova etc e a existência de um “fio condutor” entre elas na resistência ao neoliberalismo, essas manifestações são pontuais e dependentes, em primeiro lugar, da capacidade organizativa e da mobilização local.

O FSM é uma brilhante invenção política, como escreveu o companheiro José Corrêa, que está animando importantes setores da sociedade civil organizada em todo o mundo. Embora já se falasse em eventos anti-Davos há algum tempo, foi somente a partir da crise asiática, um revés enorme para as políticas de ajuste estrutural e para o Consenso de Washington, que se percebeu que o neoliberalismo não era invencível. A nova conjuntura que surgiu internacionalmente a partir de 1997-1998 estimulou as mobilizações e o fortalecimento de organizações sociais e não-governamentais antiglobalização neoliberal em nível internacional.

A proposta de um fórum para tratar os temas sociais na mesma data do Fórum Econômico Mundial de Davos, com amplitude mundial, debates estruturados e possibilidades de manifestações, além de uma boa estratégia publicitária, como afirma Chico, foi um alento para muitos que estavam preocupados com o isolamento em que o movimento social se encontrava diante da ofensiva do pensamento único. Hoje, depois de quatro edições do FSM no Brasil e uma na Índia, o fato de se realizar ou não na mesma data do Fórum Econômico Mundial tornou-se uma questão secundária, pois se espera que possa cumprir um papel maior na organização social do que ser simplesmente um contraponto a Davos. Por mais relevante que este possa ser para o capital, não é seu único nem mais importante espaço de formulação estratégica.

O maior risco atual é superestimar o FSM. Ele é importante por todos os motivos mencionados pelos que o analisam, mas não pode ser tratado como a única possibilidade que temos para enfrentar o neoliberalismo. E precisa ser aprimorado. Há debates em andamento sobre isso, conforme transparece nos dois livros em questão nesta resenha, que abordam sua Carta de Princípios, a representação dos que o organizam e dos que dele participam, bem como os objetos e a metodologia dos debates.

A Carta de Princípios foi uma iniciativa do CO brasileiro em 2001, após a realização da primeira edição do FSM em Porto Alegre, e foi emendada e aprovada na primeira reunião do Comitê Internacional (CI), criado também naquele momento. Ela era necessária para traçar os parâmetros dos perfis de movimentos que se esperava que participassem dali para a frente, principalmente no tocante a sua postura quanto a democracia, pluralismo, diversidade e métodos não-violentos de luta. Também era necessária para reforçar o caráter do FSM como antineoliberal, não-confessional, não-governamental e não-partidário.

A Carta foi modificada pelos organizadores indianos na preparação da edição de Mumbai, pois alegavam que necessitava ser adaptada a sua realidade política e cultural. Os indianos tinham toda razão, e a comparação entre a Carta original e a modificada pode ser vista no livro do Boaventura. Não havia ninguém capaz de identificar esse problema na reunião do CI em São Paulo, em 2001, que aprovou sua versão original. O CI ainda padece dessa debilidade, que tem origem, em parte, em sua representação. Como foi montado inicialmente a partir de convites do CO, foi composto pelas entidades que seus integrantes conheciam e consideravam relevantes. Dessa forma, os latino-americanos e europeus são hegemônicos, em detrimento da representação de outras regiões. Atualmente, tendo em vista a realização de cinco edições e o fato de o FSM de 2006 estar previsto por meio de eventos descentralizados e o de 2007 ser na África, além do desgaste natural do atual modelo, há propostas de alteração da estrutura organizativa, inclusive reduzindo a composição do CO e equilibrando o CI. Claro que nem tudo se resolve por intermédio de mudanças estruturais, mas é saudável mexer no sistema atual para dinamizar o processo.

Esse fato chama a atenção para o principal desafio do FSM. Torná-lo efetivamente mundial. Apenas realizá-lo em diferentes continentes ou de forma descentralizada não será suficiente se seus participantes não forem capazes de pelo menos olhar o que ocorre em outros lugares, tentar entender as diferentes formas de agir e organizar e incorporá-las. Boa­ventura chama a atenção para isso quando comenta a importância da religiosidade em várias regiões do mundo, como a própria Índia, bem como as diferenças de estratégia e ação política da esquerda ocidental comparada com a oriental. Pessoal­mente, quando representei a CUT no CO e no CI, defendi a realização do FSM na Índia, pois achava bom que os que querem transformar o mundo tivessem a oportunidade de conhecer a realidade social de um país como aquele. É muito diferente do que vemos por aqui e nos ajuda a ampliar a visão.

Boaventura também chama a atenção para os ausentes do FSM, como os pobres que se organizam em suas comunidades, mas não têm financiamento para participar dos eventos, ainda mais quando são realizados em outros países, e para a inexistência de uma representação mais expressiva da África, da Ásia e do Oriente Médio, causada tanto pela distribuição desequilibrada dos recursos do FSM quanto pela falta de representação dessas regiões nos organismos decisórios do processo. Óbvio que ninguém, em particular, é culpado por isso. Porém o fato é que isso não está na agenda real da maioria dos que se dedicam a organizar o FSM – e, no caso das publicações, é Boaventura quem levanta o tema. Aliás, ele discute ainda outro problema grave. O total desequilíbrio e desigualdade de gênero tanto na composição dos painéis de discussão nas diferentes edições quanto no CO e no CI. No primeiro FSM, a jornalista e escritora canadense Naomi Klein chegou a comparar a reunião do CO com a Última Ceia, pela participação de uma ampla maioria de homens de barbas grisalhas. A igualdade que queremos na sociedade dificilmente será alcançada se não formos capazes de implementá-la onde temos domínio, o que é o caso do FSM.

A metodologia das discussões no FSM vem sofrendo alterações a cada edição, sempre com a preocupação dos organizadores de melhorar sua eficácia, o que é louvável. No entanto, parece que sempre há uma tensão devido à pressão que a mídia faz, e muitos participantes também, para que o FSM apresente iniciativas e resultados concretos. Que a grande imprensa faça isso para tentar desqualificá-lo, tratá-lo como uma inutilidade, é compreensível e esperado. Problemático é quando alguns participantes compartilham essa expectativa, pois isso pode representar insegurança sobre o que fazer. Quando não temos respostas, esperamos que os outros as dêem. O FSM nunca assumiu a responsabilidade de produzir nenhuma posição ou iniciativa, e não precisa. São seus participantes que têm de fazê-lo, preferencialmente todos juntos, com ou sem FSM.

Os organizadores têm procurado estabelecer mecanismos para estimular diferentes redes a se articular e tomar iniciativas conjuntas por intermédio da aglutinação de atividades, em lugar de audiências numerosas em torno de palestras de grandes nomes, para que se privilegiem atividades autogeridas de “baixo para cima”, criando meios para divulgação das propostas oriundas dos diferentes eventos e encontros.

Por melhor que os organizadores possam fazer para criar esse espaço, é esperar demais que os movimentos troquem suas prioridades do dia-a-dia apenas pelas propostas surgidas no FSM. O Brasil era, provavelmente, um dos poucos lugares no mundo onde podiam ser realizadas as primeiras edições do FSM devido à cultura política existente, a dois governos que podiam apoiar o evento estruturalmente e por ter uma campanha madura contra o neoliberalismo. Mesmo assim, aqui ainda há muito que caminhar na superação do corporativismo e para a construção de um verdadeiro internacionalismo social.

Houve, no entanto, uma iniciativa em 2001, a partir de organizações como MST, Via Campesina, Attac, CUT, 50 Years Is Enough, Our World Is Not for Sale (Owins), ONGs de vários países e outras organizações sociais, que produziram o manifesto “Porto Alegre convoca para as mobilizaçõess”, chamando a atenção para o calendário de atividades oficiais ao longo do ano, como a reunião de governadores do FMI, a reunião do G-8 em Gênova, entre outros, e para a necessidade de prosseguir com as mobilizações ocorridas em Seattle e em outras ocasiões. Nos anos seguintes, esse agrupamento voltou a se reunir e produzir posições contra o neoliberalismo e a guerra, propondo inclusive uma data em 2003 para manifestações mundiais contra a guerra no Iraque. Estas ocorreram com grande participação e foram um grande sucesso – não tanto pelo que os proponentes representam socialmente, mas sim porque era uma proposta correta e podia ser assimilada em diferentes países.

Essa iniciativa nada mais foi que cumprir o espírito do FSM, ao permitir que organizações que até então não costumavam trabalhar juntas passassem a fazê-lo, mesmo que pontualmente. No entanto, Chico Whitaker critica esse acontecimento por várias vezes em seu livro, como se os sucessivos manifestos fossem tentativas de produzir documentos finais dos eventos, o que ele tanto condena.

Ora, por maior que seja o número de organizações que assinam um documento durante um evento, se este não contiver a assinatura e a anuência de todos os presentes, não pode representar a todos. Mesmo assim, além da crítica, parece que o autor procura desqualificar o documento ao traduzir várias vezes “calls” do título em inglês, “Porto Alegre calls for mobilization”, por “apela”, em vez de “convoca”, que é não só o verdadeiro sentido do verbo como o utilizado nas versões em português e espanhol.

Outro e “novo” desafio do Fórum, de certa maneira apontado por Boaventura, é superar a intolerância e o sectarismo, presentes tanto entre os conservadores quanto em setores da esquerda que representam os “velhos” movimentos sociais. Além da importância da realização do FSM em Mumbai em 2004, mencionada anteriormente, essa decisão evitou que, na hipótese de ser realizado novamente no Brasil, o Fórum se transformasse num “Fórum de Avaliação do Governo Lula” no seu momento mais difícil, e não no aprofundamento do debate sobre a luta contra a globalização neoliberal. Nós já tivemos a possibilidade de ver como certos grupos organizados reagem contra posições com as quais não compartilham. Dificilmente aplicam o respeito, a tolerância e a democracia que reivindicam para si mesmos e para suas idéias.

Tomara que o FSM, ao contribuir para o fortalecimento da sociedade civil, possa gerar também a idéia de que a sociedade tem de cumprir seu papel, e não simplesmente esperar que o Estado resolva tudo. Tomara que se compreenda que, mesmo na situação privilegiada de termos Lula no governo do Brasil, ele não pode assumir sozinho a responsabilidade de mudar as políticas do FMI, do Banco Mundial, da OMC, do governo Bush, entre outros; nem enfrentar sozinho a dívida externa e tantas outras mazelas ou adotar as políticas e promover as mudanças defendidas pelos movimentos sociais que ele ainda não conseguiu tornar universais. O governo Lula tem de reagir, sim, e promover muitas mudanças necessárias. Porém, não a partir de slogans, gritos e vaias, mas sim a partir do programa de governo que o elegeu, fortalecido e aprimorado pela organização, pela reivindicação, pela pressão e pelo engajamento do movimento social.

Por último, há o tema da relação do FSM com as diferentes esferas de governo e com os partidos políticos. Esses foram excluídos da possibilidade de participar diretamente na formulação de suas propostas, mas participam indiretamente de tudo o que é decidido. Por exemplo, o FSM de Mumbai dificilmente teria ocorrido sem que se tivesse chegado a um acordo com os vários partidos comunistas da Índia, para que apoiassem e participassem do evento, o que começou a ser discutido durante o Fórum Social Asiático em Hyderabad.

As transformações sociais que buscamos necessitam do envolvimento do Estado mesmo que uma parcela dos ativistas antiglobalização seja anarquista. No caso das edições brasileiras do FSM, a maior parte da conta foi paga com recursos governamentais. Foi, aliás, um fator fundamental para que o primeiro encontro em Porto Alegre pudesse ocorrer. Óbvio que não é o caso de pôr os governos como membros do CI, porque o FSM é uma atividade da sociedade civil, mas não seria melhor discutir diretamente e com transparência com os governos o que eles podem oferecer e expor-lhes diretamente o que os movimentos estão pensando? Qual é o problema de considerar determinado governo como um aliado para desenvolver determinadas ações decididas durante os debates no FSM?

No caso dos partidos políticos, eles são expressões da visão política de setores da sociedade. Não seria prudente torná-los membros do CI, porque poderia gerar disputas desnecessárias, mas achar que as visões partidárias estão ausentes do processo seria muita ingenuidade.

Se é assim, em ambos os casos valeria a pena criar espaços para que essas forças partidárias e governamentais, que também buscam a transformação do mundo, pudessem se expressar, até para reduzir as tensões e desconfianças de que determinadas iniciativas, como a dos movimentos sociais, sejam “submarinos” ou como aconteceu na reunião do CI em Barcelona em 2002, quando os brasileiros foram acusados por um integrante italiano de estar operando em favor da Democratici de Sinistra (DS) ao credenciar um representante da Tavola de la Pace.

Enfim, temos muito chão pela frente, há muito ainda que fazer no Fórum Social Mundial – e os livros publicados contribuem para o debate.

Kjeld Jakobsen é presidente do Instituto Observatório Social e do Instituto para o Desenvolvimento da Cooperação e Relações Internacionais (Idecri). Secretário de Relações Internacionais da CUT (1994-2003), representou a Central na organização do FSM entre 2000 e 2003.