Internacional

A primeira dimensão do que seria um comércio justo se refere à mudança de alguns dos princípios que regiam as negociações no Gatt e agora na OMC, particularmente a "Cláusula da Nação mais Favorecida"

Livre-comércio, essa foi a denominação dada às transações entre os países, particularmente a partir do século 18, sob a égide do liberalismo econômico. A teoria era de que a produção seria potencializada pela divisão internacional do trabalho a partir da especialização de cada país, a qual também representaria a respectiva vantagem comparativa no comércio. Assim, não faria sentido interpor barreiras à circulação de mercadorias, pois os países se desenvolveriam vendendo ou trocando produtos de acordo com sua especialização. Por exemplo, França e Portugal exportariam vinho; Alemanha e Estados Unidos, trigo; e Inglaterra, tecidos e outros bens industriais.

Não funcionou bem assim porque cada país, à medida do possível, buscava produzir e vender bens industriais, pois estes agregam maior valor ao resultado do comércio. Para tanto, protegiam-se contra a concorrência por meio de tarifas elevadas e outros mecanismos, enquanto procuravam acessar o mercado dos outros, às vezes à força, como ocorreu quando a Inglaterra declarou guerra à China para obrigá-la a comprar o ópio produzido na Índia, uma de suas colônias. Todas as potências que disputavam mercados e colônias no século 19 foram protecionistas, destacando-se os EUA, que enfrentavam cada crise econômica elevando as tarifas externas para limitar suas importações. Mesmo assim, o comércio mundial cresceu muito no final desse século. Porém, devido ao fortalecimento e às demandas dos mercados internos, e não à liberalização das barreiras ao comércio. Apesar do discurso liberal, na prática o “livre-comércio” não existia.

A falta de regulação da economia mundial e o protecionismo comercial foram considerados fatores importantes para provocar a Primeira Guerra Mundial, a grande depressão de 1929, a crise do liberalismo e, conseqüentemente, a Segunda Guerra Mundial. Uma das medidas adotadas no pós-guerra foi constituir mecanismos para negociar a redução das tarifas externas dos diferentes países que se dispuseram a isso, inicialmente 28, por meio da adesão ao Acordo Geral de Comércio e Tarifas (Gatt). Na década de 90, o Gatt foi substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC), que incorporou seus acordos e regras de funcionamento.

Embora a tarifa média de bens industriais se reduzisse de 40% para quase 4%, entre 1948 e 1979, e o comércio mundial tivesse praticamente quintuplicado, o Gatt e sua sucessora dificilmente podem ser considerados instrumentos de promoção do livre comércio. Em primeiro lugar, a dimensão e a velocidade da redução tarifária, bem como os bens envolvidos, eram negociadas nas rodadas do Gatt, em que os países industrializados – particularmente EUA, União Européia, Japão e Canadá, também conhecidos como “O Quadrilátero”, ou “Quad” – tiveram hegemonia desde o início e as regras foram definidas de acordo com seus interesses.

A partir de 1994, novos temas, como serviços e propriedade intelectual, também foram incluídos nas negociações devido ao lobby de corporações multinacionais desses setores. As regras internacionais de comércio e investimentos são definidas cada vez mais de acordo com os interesses das empresas, chegando, em alguns casos, a pôr os direitos das multinacionais acima da própria legislação dos Estados nacionais.

Comércio justo

Comércio justo é a denominação do contraponto ao livre comércio. Além da assimetria econômica entre os países que este ajudou a provocar, devido a negociações de má-fé e regras manipuladas, normas trabalhistas e ambientais também têm sido violadas em função da competição desenfreada no comércio internacional, pois o desrespeito à legislação pode significar a redução de preços e a conquista de mercados.

A primeira dimensão do que seria um comércio justo se refere à mudança de alguns dos princípios que regiam as negociações no Gatt e agora na OMC, particularmente a “Cláusula da Nação mais Favorecida”, que dá tratamento igual a todos os países que participam das negociações. O que um país oferecer a outro é obrigado a oferecer aos demais. Parece razoável e democrático não haver discriminação, não fosse o fato de os países não serem iguais e possuírem níveis e perspectivas de desenvolvimento econômico muito diferenciados.

Ao contrário da teoria, a liberalização comercial não beneficia automaticamente a todos, mas apenas aqueles que estão mais preparados. Por exemplo, o Brasil produz cerca de 200 mil automóveis por ano, enquanto os EUA produzem 2 milhões, dez vezes mais. A introdução de regras iguais para o comércio, nesse caso, favoreceria o segundo, apenas devido a sua escala de produção.

Desde o final dos anos 50 os países em desenvolvimento lutam para criar exceções às regras por meio de metas e prazos diferenciados para o cumprimento dos acordos de liberalização comercial, para que os mais atrasados possam se recuperar e participar do comércio mundial de forma mais equilibrada. Obtiveram algumas conquistas com a criação da Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Unctad) e do Sistema Geral de Preferências, mas as assimetrias persistiram.

A outra dimensão se refere à venda de bens produzidos por meio de procedimentos socialmente e ambientalmente corretos. O consumidor final tem a garantia de que determinadas mercadorias exportadas pelos países em vias de desenvolvimento – como madeira, café, têxteis, entre outros – não foram produzidas por meios escusos, desrespeitando direitos trabalhistas básicos e regras de proteção ambiental.

Para tanto, existem entidades que certificam os produtos, principalmente quanto ao aspecto ambiental. Por exemplo, se o café está isento de agrotóxicos, se a madeira foi colhida de forma sustentável e mesmo se os tapetes foram feitos por adultos. O custo adicional do cumprimento das regras e da certificação é assumido pelos consumidores dos países industrializados. A exportação de produtos certificados representa um nicho em expansão que, no entanto, dificilmente se tornará um consumo de massa, em razão de seu preço mais alto. A rigor, também significa admitir que existe uma produção irregular que não é coibida, mas apenas evitada, e que somente os consumidores de maior renda têm acesso a mercadorias de boa qualidade.

Nem livre e muito menos justo

O conceito de livre comércio, atual­mente associado às políticas neoliberais, defende a economia de mercado e nenhuma interferência do Estado no seu funcionamento. No entanto, um calhamaço de quase mil páginas de normas e procedimentos, fruto das rodadas de negociação comerciais, impõe-se por intermédio da ação do Estado, representado pela OMC e seus membros, em evidente contradição ao discurso liberal. Estamos, na verdade, tratando de comércio regulado. A questão é: comércio regulado em benefício de quem?

A resposta é simples: em benefício dos países industrializados e dos cartéis das empresas multinacionais. No final do século 19, o número de países independentes não ultrapassava meia centena e os desenvolvidos da época eram responsáveis por quase dois terços do comércio mundial. Atualmente existem mais de 190 países independentes, mas os trinta mais industrializados, com menos de 20% da população mundial, continuam responsáveis pela mesma proporção do comércio – um terço dela realizado entre eles próprios –, enquanto os demais, com 80% da população, respondem por apenas um terço. Antes da Segunda Guerra Mundial, 42% do comércio era dominado por cartéis, hoje é um pouco menos.

O livre mercado não ampliou a participação dos países mais pobres no comércio mundial, situação que é ainda mais dramática para aqueles detentores de monoculturas de produtos como algodão e açúcar, por exemplo, extremamente prejudicados pelos subsídios agrícolas das nações desenvolvidas.

A maioria dos países que hoje são industrializados e desenvolvidos implementou um certo padrão de participação no comércio mundial. Este, normalmente, se iniciou com a exportação de produtos primários, sobretudo agrícolas, seguida pela de produtos têxteis e, posteriormente, de bens industriais de maior valor agregado, como os bens de capital e bens de consumo durável. Periodicamente eram introduzidas medidas protecionistas para controlar a remessa de divisas e favorecer a substituição de importações.

Quando o Gatt foi instituído, em 1948, a maioria dessas nações já se encontrava na terceira fase, mas nem por isso concederam aos países atrasados e às ex-colônias regras mais favoráveis. Ao contrário, negociaram a redução das tarifas externas dos bens de maior valor agregado de acordo com a capacidade de abertura dos países industrializados para a competição externa, retiraram os produtos agrícolas da pauta de negociações já na década de 50 e submeteram os produtos têxteis a sucessivos acordos multifibras a partir da década de 60, que na melhor das hipóteses ofereciam cotas de exportação para os países em desenvolvimento.

O auge do neoliberalismo, no início dos anos 90, favoreceu a entrada de outros temas na pauta, como propriedade intelectual e serviços. O primeiro não era sequer tema comercial, mas as grandes corporações de produtos farmacêuticos queriam proteção contra a quebra de suas patentes por meio de uma instituição com poder coercitivo como a OMC, e o Acordo Trips foi feito na Rodada Uruguai do Gatt, em 1994. O segundo tema era totalmente desconhecido para os países em desenvolvimento, mas não para American Express, Lyonnaise des Eaux e outras multinacionais do setor de serviços, e um acordo geral de comércio e serviços (Gats) também foi assinado. Tudo em troca de negociações sobre agricultura que, concretamente, até hoje não avançaram.

A política do Quad de ganhar sem conceder prosseguiu no interior da OMC e nas conferências ministeriais que ocorreram desde 1996. Porém, em 2003, uma série de países, articulados por Brasil e Índia, conformou o G20, que se posicionou fortemente contra os subsídios agrícolas aplicados pelo Quad e conseguiu reduzir a pauta de negociações em andamento na OMC para quatro temas: acesso a mercados não-agrícolas (Nama), serviços, agricultura e facilitação de comércio.

O primeiro diz respeito a novas reduções de tarifas externas de produtos não-agrícolas, que afetam principalmente os países em desenvolvimento que possuem tarifas mais elevadas. A média brasileira, por exemplo, é de 11%, contra 2% dos EUA. O tema serviços implica o oferecimento de acesso a novas áreas e o último item tem a ver com a mudança de procedimentos que regulam o comércio.

Já a negociação de acesso aos mercados agrícolas pressupõe a possibilidade de ganhos para os países em desenvolvimento, mas o Quad, particularmente a União Européia, resiste duramente contra a eliminação de subsídios e redução de tarifas. Esse tema esteve sob todos os holofotes durante a conferência ministerial de Hong Kong realizada em dezembro de 2005 e culminou com a promessa de liberalização do comércio agrícola até 2013, cujas modalidades seriam definidas em 2006, em troca de concessões dos países em desenvolvimento em Nama e serviços.

Novamente a injustiça se apresenta. A rigor os países em desenvolvimento não deveriam conceder nada em troca do acesso aos mercados agrícolas dos países desenvolvidos, pois já cederam muito ao longo dos últimos 57 anos, freqüentemente em troca de promessas não-cumpridas. Entretanto, em Hong Kong, os negociadores da União Européia acusavam o G20 de não conceder nada em Nama e serviços e por isso não receberiam ofertas em agricultura.

A retórica faz parte do jogo de negociações e o governo brasileiro operou para que a conferência gerasse encaminhamentos, particularmente, em relação à agricultura e à preservação do comércio multilateral. Porém, a contrapartida foi aceitar uma fórmula de Nama (fórmula suíça) que, se vier a ser aplicada, cortará a tarifa externa em valores reais, perfurando a Tarifa Externa Comum do Mercosul em muitos itens, e poderá provocar uma nova onda de abertura econômica no Brasil, com efeitos negativos sobre o emprego, como já vivemos no início dos anos 90.

A pressão do agronegócio brasileiro sobre o governo para fazer qualquer tipo de concessão em troca do acesso aos mercados agrícolas dos países desenvolvidos sempre foi grande. Por isso é fundamental que a sociedade se envolva na discussão, pois esta não pode atender somente a interesses corporativos. Se temos a ganhar com o aumento da exportação de produtos agrícolas, também podemos perder mais do que ganharemos caso façamos demasiadas concessões no setor industrial, responsável por mais de 60% da nossa pauta de exportações.

Kjeld Jakobsen é consultor em relações internacionais e presidente do Instituto Observatório Social