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O pensador que sonda as profundezas do passado age como um pescador de pérolas que desce ao fundo do mar, não para escavá-lo e trazê-lo à luz, mas para extrair o rico e o estranho, as pérolas e o coral das profundezas, e trazê-los então à superfície. O pescador, então, encontra novas formas e contornos cristalizados que se mantiveram imunes aos elementos, algo "rico e estranho", que é sempre bom e necessário recuperar.
Esse raciocínio, que gosto muito, é encontrado em Homens em Tempos Sombrios, de Hannah Arendt, e decorre do pensamento de Walter Benjamin, que desenvolveu uma originalíssima abordagem em torno da relação entre o passado e o presente. Surgiu-me no espírito ao pensar na situação do Haiti, que voltou à cena mundial com o terremoto recente, que causou mais de 200 mil mortos.
Entrevistada recentemente pela revista CartaCapital, Edwige Danticat, escritora haitiana que vive nos EUA, desafia ou elucida o preconceito e a discriminação que pesam sobre sua pátria, costumeiramente rotulada como "ilha maldita". Ela devolve perguntas: os EUA são por acaso malditos porque tiveram o 11 de Setembro? O Japão é maldito porque sofre continuamente terremotos? E, então, vai ao fundo do mar para encontrar a pérola que explica o Haiti e a exclusão de que tem sido vítima ao longo dos séculos.
"O Haiti é uma nação negra que desafiou o mundo para afirmar o próprio direito de existir. A história da maldição aparece sempre. De verdade, indica é ignorância histórica. Minha ilha, desde o início, teve de pagar um preço pesadíssimo à França para obter, em 1804, a própria independência, isolada como foi do resto do mundo, onde a escravidão ainda existia. O Haiti sofreu também logo duas invasões por parte dos EUA. E no decorrer da primeira foi utilizado principalmente como fornecedor de madeira, com um desflorestamento sem igual. O que não quer dizer que o Haiti não tenha responsabilidade, mas simplesmente que o mundo fez todo o possível para que o país falisse como Estado desde o primeiro dia."
A pérola que ela vai buscar no fundo mar, que explica o porquê de tanta perseguição ao Haiti, é a Revolução de 1804, que acabou com a escravidão, desafiando a tudo e a todos, contra o pensamento dominante, incluindo o Iluminismo, que não chegou a condenar a escravidão.
A independência haitiana foi conseguida a ferro e a fogo, numa revolução extraordinária liderada por um Spartacus negro, Toussaint L'Ouverture, que a comandou por longos treze anos, até a vitória final. Essa insurreição foi a maior virtude e o maior pecado do povo haitiano, pecado pelo qual paga até os dias de hoje. O presidente dos EUA, Thomas Jefferson, a qualificou como um mau exemplo.
O pastor pentecostal Pat Robertson, conhecido por sua presença na televisão americana, ex-candidato à Presidência da República nos EUA, expressou na CBN, baseado em sua ideologia carregada de preconceitos, mas reveladora do pensamento dominante, como o Haiti é visto pela potência imperial:
"Algo aconteceu há muito tempo no Haiti e as pessoas talvez não queiram falar sobre isso. Estavam sob domínio francês, na altura de Napoleão III, juntaram-se e fizeram um pacto com o diabo. Disseram: `Vamos servi-lo se nos libertar do Príncipe'. É uma história verdadeira. E o diabo disse: `Ok, está combinado'. E os franceses foram expulsos. Os haitianos revoltaram-se e conseguiram libertar-se. Mas, a partir dali, foram amaldiçoados com coisas atrás de coisas."
Edwige Danticat tem razão. Nunca deixam de lado o mito da maldição, nunca esquecem o pecado da revolução. Claro que não dá para desconhecer uma tragédia como a do terremoto de janeiro. Participei de uma delegação parlamentar que visitou o país por um dia, 3 de fevereiro deste ano, cumprindo uma agenda intensa, sem direito a descanso. Éramos cinco deputados federais: Raul Jungman, que chefiava a delegação, Janete Pietá, Cláudio Cajado, Colbert Martins e eu.
A missão parlamentar sabia perfeitamente que não era possível apropriar-se de uma situação tão complexa em tão pouco tempo. Mas tinha consciência que o Parlamento brasileiro não podia ficar indiferente àquela tragédia.
O cenário era desolador. Caminhamos entre destroços. Vimos o que 45 segundos de terremoto podem causar. O presidente René Preval nos falou em 1 milhão de desabrigados, além dos mais de 200 mil mortos. Dos 15 edifícios que abrigavam os ministérios, 13 foram ao chão, como o foram o suntuoso Palácio do Governo, o palácio do Legislativo, o palácio do Judiciário, a Catedral Católica. Nada daquilo que simbolizava, corporificava o poder ficou de pé.
René Preval nos disse que a prioridade, além de outras ajudas, como alimentos, médicos e medicamentos, são as barracas de lonas, já que não há chance de até maio, quando começa a estação das chuvas, serem construídas coisa de 100 mil habitações para os que estão hoje em acampamentos extremamente precários em Porto Príncipe. Sem essas barracas, com as chuvas, a tragédia assumirá contornos ainda mais dramáticos.
O presidente não escamoteou: as consequências do terremoto foram trágicas porque Porto Príncipe não estava preparada para o fenômeno. A natureza é o que é, nos disse. Um terremoto em Honshu, no Japão, há coisa de seis meses, como lembrava recentemente Ignacio Ramonet, na mesma escala (7,1) causou um morto e um ferido. Preval nos lembrava que os quatro furacões de 2008, que assolaram toda a região, provocaram 66 mortes no Haiti. Nenhuma em Cuba. O Haiti, nos disse, não estava preparado. Cuba, sim.
Estivemos com oficiais brasileiros que estão à frente da Minustah, a missão da ONU no Haiti. Um deles nos dizia que em alguns locais de Porto Príncipe, como Cité Soleil, uma gigantesca favela de mais de 400 mil habitantes, as pessoas estavam comendo melhor no pós-terremoto, com a ajuda humanitária que chegara, do que o faziam antes. A miséria haitiana é profunda, e tem a ver com o castigo que foi imposto ao país por séculos.
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Creio que se impõe uma espécie de Plano Marshall para o Haiti, que leve em conta o terremoto, que considere não apenas ele, mas a impressionante situação social, a obscena miséria em que a grande maioria vive. O próprio presidente Preval, na conversa com a nossa delegação, dizia que não se pode esquecer as províncias. Pensar apenas na capital Porto Príncipe é desconhecer a grandiosidade dos problemas que o pequeno país enfrenta. Afinal, 80% da população vive da agricultura, o que indica que tem de ser pensado um projeto que leve isso em conta, contemplando toda a nação haitiana.
Testemunhamos o trabalho das forças da Minustah, integradas por dez países, e vimos seus extraordinários méritos. Ouvimos elogios do presidente Preval à presença dessas forças, e particularmente sobre a atuação dos militares brasileiros. Referências elogiosas também foram feitas pelo presidente da Câmara de Deputados do Haiti, Levaillant Louis-Jeune. Assim, a presença da Minustah ainda se justifica, especialmente com o terremoto.
O Haiti, no entanto, não pode ser compreendido como uma questão militar. Não sendo uma questão militar, por que os EUA se apressaram em deslocar um gigantesco contingente para a pequena nação logo após o terremoto? Com que direito? Com que objetivos? No caso da Minustah, as forças militares têm um mandato da ONU, tem objetivos claros, e são de paz. E os EUA? O que querem lá? Será que se trata apenas do medo de que os haitianos migrem para os EUA? Ou serão as manias do Império, que não admite qualquer conturbação em águas e terras que considere de seu domínio?
Um olho no padre, outro na missa. Mesmo afundados no Iraque e no Afeganistão, não deixam de fazer incursões típicas da política imperial pela América Latina. Há pouco, as bases militares colombianas. Agora, esse desembarque maciço no Haiti.
Quando é que o Haiti terá direito a comandar soberanamente seus destinos? Os poderosos do mundo, de fato, nunca perdoaram a Revolução de 1804, aquela ousadia sem par. Não custa lembrar que os EUA, eles, sempre eles, invadiram o Haiti em 1915 e só se retiraram em 1934. Depois vieram ditaduras e mais ditaduras, sempre serviçais aos interesses do Império. E fome, e miséria, e exclusão - trágico destino de um país condenado por sua revolução gloriosa.
Quem sabe o terremoto, com suas dramáticas consequências, convoque o país a buscar o que tenha de forças intelectuais e políticas e isso provoque uma reviravolta que recoloque a nação num novo leito, um leito que a faça ouvir os ecos daqueles sonhos ancestrais, de mais de 200 anos atrás, tão generosos. Aquela pérola ainda pode ser resgatada.
No dia 12 de fevereiro deste ano, o presidente René Preval pediu ao povo que enxugasse as lágrimas e reconstruísse o país. "O Haiti não pode perecer." Em nome do povo haitiano, em nome daquela gloriosa revolução, em nome de Toussaint L'Ouverture, não deve perecer. E os países verdadeiramente solidários, como inegavelmente tem sido o Brasil, têm de contribuir para esse caminho: um Haiti soberano e capaz de dar condições de vida dignas ao seu povo.
Emiliano José é jornalista, doutor em Comunicação pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia, escritor, deputado federal (PT-BA)
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