Garantir ao público a participação no debate sobre concessão é dar-lhe o direito de decidir sobre o que é seu
Garantir ao público a participação no debate sobre concessão é dar-lhe o direito de decidir sobre o que é seu
O espectro radioelétrico (a "divisão do ar" em faixas de freqüência para transmissão dos sinais de rádio e TV aberta) é um bem público, não pertence a ninguém, não tem dono. Por ser um "espaço" de todos e fisicamente limitado, deve ser regulado e administrado pelo Estado. Ou seja, cabe ao país definir quem pode utilizar e de que maneira esse espaço e como seus canais de exploração serão distribuídos. O fato de ser um serviço público, além de explorado diretamente pelo Estado, pode ser delegado a terceiros. Mas isso não retira do Estado o dever de controlá-lo. É assim em qualquer área.
Com a radiodifusão, no entanto, a coisa é diferente. A sociedade não tem nenhum poder de interferência sobre o uso do espectro. As emissoras de TV recebem a concessão por quinze anos e as de rádio por dez anos, e durante todo esse período não têm de prestar contas a ninguém sobre o uso que fazem das outorgas. Dessa forma, os empresários reinam sozinhos, ditam as regras e não cumprem nem o pouco que a lei prevê para o setor.
Um exemplo de ilegalidade cometida atualmente é o veto, previsto no Código Brasileiro de Telecomunicações, à participação de uma mesma pessoa na administração ou na gerência de mais de uma concessionária de radiodifusão na mesma localidade. Levantamento com rádios FM em São Paulo feito pelo Observatório do Direito à Comunicação (www.direitoacomunicacao.org.br) revelou que, embora a exigência seja formalmente cumprida, na prática o princípio é flagrantemente desrespeitado. Segundo o estudo, dois grandes grupos possuem cinco emissoras em FM transmitindo para a capital, chegando a vender publicidade casada para as diversas emissoras.
A lei também proíbe, por exemplo, a veiculação de publicidade comercial em mais de 25% do tempo da programação dos canais. Esse índice é sistematicamente ignorado pelos chamados "supermercados eletrônicos", emissoras como Shop Tour, Mix TV e congêneres, que ocupam toda a sua programação com a venda de produtos
Já o artigo 54 da Constituição proíbe aos parlamentares do Congresso Nacional "ser proprietários, controladores ou diretores de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público, ou nela exercer função remunerada". No entanto, um estudo do professor Venício A. de Lima, da Universidade de Brasília, mostrou que 10% dos deputados federais da última legislatura eram controladores de empresas de radiodifusão.
Já, portanto, uma clara mistura entre o poder concedente, responsável por dar a outorga de rádio e TV, e o concessionário, o que potencializa uma situação de uso de concessões como moeda de favorecimento político, prática comum no Brasil. Sejam as emissoras de rádio e TV comerciais, sejam as retransmissoras, ou mais recentemente as educativas e até algumas rádios comunitárias, boa parte das outorgas é dada a políticos em troca de apoio.
Cabe à Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) fiscalizar as concessões nos quesitos técnico e administrativo e ao Ministério das Comunicações fiscalizá-las em relação aos aspectos de conteúdo. Mas nada disso ocorre e todos permanecem à margem da lei. A assessoria da Anatel alega que, no caso de emissoras outorgadas, só age mediante demanda do Ministério das Comunicações.
Renovação sem critério
No final dos anos 1980, o lobby pesado dos radiodifusoras durante a Constituinte garantiu condições draconianas para que uma outorga não fosse renovada, estabelecendo como regra para isso a deliberação de dois quintos do Congresso Nacional em votação nominal. Mesmo se não existisse essa restrição, a falta de critérios para avaliar se determinada emissora cumpriu os princípios do serviço de radiodifusão, tais como os previstos na Constituição Federal, praticamente inviabilizaria qualquer debate público sobre de que maneira o fez.
A ausência de regulamentação de artigos da Constituição Federal do capítulo da Comunicação contribui para essa situação. É o caso do artigo 221, segundo o qual a produção e a programação das emissoras de rádio e TV devem atender preferencialmente a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; devem promover a cultura nacional e regional e o estímulo à produção independente; e respeitar os valores éticos e sociais das pessoas e da família. Outro exemplo é a proibição à existência de monopólio na radiodifusão, prevista no artigo 220, cuja falta de especificação permite a concentração do setor em seis redes.
Mesmo com toda essa permissividade, os processos de renovação demoram anos para se concretizar. Há exemplos de concessionários cuja outorga é renovada no momento em que um novo período de exploração já está praticamente vencendo. Segundo relatório da subcomissão de concessões da Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI), da Câmara dos Deputados, o tempo total médio de tramitação dos pedidos de renovação no Poder Executivo é de 6,5 anos - e o prazo de validade da outorga, no caso do rádio, é de dez anos. Para seguir funcionando, as empresas refugiam-se em decretos que garantem o funcionamento precário enquanto o pedido não é julgado pelo Estado.
Quadro favorece monopólio
A ilegalidade e a imoralidade que predominam nas concessões sustentam, portanto, um sistema de comunicações concentrado e nada plural. O monopólio e o oligopólio estão presentes regional e nacionalmente. Hoje seis redes privadas nacionais de televisão aberta e seus 138 grupos regionais afiliados detêm a propriedade de 667 veículos de comunicação, entre emissoras de TV, rádios e jornais. Os dados são do estudo "Os Donos da Mídia" realizado em 2002 pelo Instituto de Estudos e Pesquisa em Comunicação. A pesquisa mostrou que o campo de influência dessas redes privadas se capilariza por 294 emissoras de televisão VHF, que abrangem mais de 90% das emissoras nacionais. Somam-se a elas mais quinze emissoras UHF, 122 de rádio AM, 184 FMs e cinqüenta jornais diários.
À inexistência de mecanismos que proíbam o monopólio junta-se o foco para a escolha dos concessionários em critérios meramente econômicos. Em 1996, o Decreto Presidencial n° 2.108 determinou como critério mais importante para concessões de rádio e TV comerciais a oferta de dinheiro pela outorga. A conseqüência imediata dessa política é o cerceamento da diversidade de meios e conteúdos, de vozes que deveriam ter o direito de ocupar seu lugar na esfera pública midiática.
A sociedade se mobiliza
Garantir a participação da sociedade no debate sobre a concessão e renovação das outorgas é dar ao público o direito de decidir sobre o que é seu. E foi com esse objetivo que diversos movimentos sociais e organizações da sociedade civil lançaram em 5 de outubro a Campanha Nacional por Democracia e Transparência nas Concessões de Rádio e TV (www. quemmandaevoce.org.br). O centro da mobilização é subordinar o processo de decisão sobre as concessões ao público.
Na pauta de reivindicação das entidades estão a implantação de mecanismos de participação popular no processo de renovação, gestão do espectro e fiscalização das concessões; a criação de critérios transparentes e democráticos para o processo de outorgas, a fiscalização das ilegalidades flagrantes e a realização de uma conferência nacional de comunicação para discutir novas políticas democráticas para o setor.
O Partido dos Trabalhadores apoiou a causa e a mobilização. A resolução sobre comunicação de seu 3° Congresso propõe a "imediata revisão dos mecanismos de outorga de canais de rádio e TV" a partir do "cumprimento da lei, haja vista a flagrante ilegalidade em diversas emissoras, a maior transparência e agilidade nos processos e a criação de critérios e mecanismos para que a população possa avaliar e debater a concessão e renovação de outorgas".
A citada resolução e outra, aprovada pelo Diretório Nacional em 31 de outubro, manifestam apoio do partido à campanha por democracia e transparência nas concessões de rádio e TV. Para que a iniciativa ganhe corpo, a participação da militância petista é fundamental. Já há articulações estaduais da campanha em torno das organizações ligadas à Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS) e às entidades do campo da comunicação, como o Intervozes e a campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania.
Já a direção do partido, seus parlamentares e integrantes no governo devem assumir o papel de pressão no interior do governo e do Congresso para que as mudanças propostas comecem a ser viabilizadas. Se o PT tem tido clareza em entender o conservadorismo da chamada "grande mídia comercial" por outro lado ainda tem tido pouca ousadia em comprar brigas para democratizar as regras que sustentam esse oligopólio. Essa campanha é uma ótima oportunidade para uma nova postura partidária em relação ao tema.
Bia Barbosa e Jonas Valente são jornalistas e diretores do Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.