Nacional

Marco Aurélio Garcia, presidente interino do PT, faz balanço da eleição e da situação do partido

Como você avalia o resultado eleitoral?
Muito positivo. O presidente foi reeleito em segundo turno, o que permitiu uma clarificação do debate. No primeiro turno a eleição estava um pouco morna, as questões, um pouco obscurecidas, entre outras coisas porque os outros candidatos se dedicaram a um ataque frontal ao presidente na crença de que com isso poderiam, como de fato ocorreu, viabilizar um segundo turno.

No segundo turno, ficou muito claro que estavam em jogo dois projetos absolutamente diferentes. Um projeto de volta ao passado: fiscalista, com fortes riscos privatistas. De outro lado, um programa alicerçado no que o presidente Lula fez nos primeiros quatro anos, que era, a partir do controle da inflação, de um equilíbrio fiscal consistente, da redução da vulnerabilidade externa, mas, sobretudo, a partir dessa mágica que se conseguiu, de crescer com distribuição de renda – ainda que pouco –, lançar objetivos mais ambiciosos. Ou seja, um crescimento mais acelerado mantendo a distribuição de renda. Esse foi um tema que, de certa maneira, ganhou corações e mentes porque o país estava um pouco adormecido.

Também foi possível contrastar outros aspectos: política externa, por exemplo. Enquanto de um lado se falava abertamente em retomar a Alca, privilegiar as relações com os Estados Unidos e com a União Européia, nós mostrávamos por que a Alca não tinha se viabilizado e que, apesar de mantermos boas relações com os EUA e com a União Européia, tínhamos outras prioridades também: a construção de uma unidade sul-americana, a política Sul-Sul e os grandes temas multilaterais. Tudo isso jogou a oposição numa defensiva muito grande.

O segundo aspecto foi a nossa capacidade de ampliação. Constituímos uma frente muito ampla de forças em torno de um programa consistente. A idéia de que para fazer uma frente ampla tem de diluir o programa não é correta. Foi exatamente esse programa que permitiu que setores muito expressivos da sociedade e do sistema político brasileiros se identificassem conosco. Tínhamos, no primeiro momento, o PT, o PCdoB, o PRB e o PSB. No segundo turno uma parte significativa do PDT nos apoiou em função desse posicionamento mais claro, assim como a maioria dos deputados do PV. E o componente fundamental foi que grande parte do PMDB nos acompanhou.
Como deve ser o contorno da política de alianças no novo governo?
O futuro governo deve refletir o conjunto dessas forças e, sobretudo, seu acordo com esse novo programa. Minha sensação é de que vamos ingressar num novo período da vida política do país. O primeiro mandato tem uma obra em si a apresentar, sobretudo no plano social e no equilíbrio macroeconômico, mas é um governo de transição. Num período em que a situação social era muito grave, a macroeconomia estava desequilibrada, ele conduziu o país para uma situação social menos grave, ainda com mazelas sociais enormes, e criou um patamar a partir do qual podemos sonhar com um crescimento da economia muito mais intenso mas ao mesmo tempo responsável.

Creio que ingressaremos num período que oferece grandes desafios do ponto de vista de renovação do pensamento econômico. No passado, essa criatividade foi menor. Muitas vezes a equipe econômica cometeu o erro de fazer com que soluções necessárias fossem transformadas em virtude. Elas, de certa forma, destruíram nosso horizonte estratégico em certo momento. Hoje, abriu-se um horizonte em que o governo pode pensar estrategicamente não só os quatro próximos anos, mas um período mais longo da economia.

Essa alameda que se abre terá implicações também do ponto de vista político. Elas passam por entendermos a necessidade de uma grande coligação que, do ponto de vista social, são os trabalhadores do campo e da cidade, amplos setores das classes médias e o empresariado produtivo e, do ponto de vista político, vai dos setores mais à esquerda até setores de centro-esquerda ou mesmo de centro. Ela também terá de enfrentar de modo muito radical a questão da reforma do sistema político eleitoral e outros temas da democratização, vinculados à reforma do Estado.

A crise do PT está superada?
Não. Se não tivesse havido o chamado escândalo do dossiê, provavelmente teríamos tido um desempenho melhor para a Câmara e para o Senado, quem sabe superando o número de deputados da eleição anterior. Não só o PT, mas as esquerdas de modo geral. Sem isso, talvez Lula tivesse ganhado no primeiro turno, mas, paradoxalmente, não teríamos tido essa confrontação política do segundo turno.
O PT, no entanto, enfrentaria problemas com qualquer resultado. Em primeiro lugar, ele não esteve à altura dos desafios que passou a ter em 2003, de ser um partido de governo. Não foi capaz de mobilizar a sociedade na defesa do governo. Em segundo lugar, não foi capaz de vocalizar para o governo demandas políticas e simbólicas da sociedade, do próprio PT, e o partido tem essa função de mediação. E também não se reorganizou internamente. Talvez, esgotados pelo esforço para chegar à Presidência da República, não tenhamos sido capazes de fazer uma reflexão mais profunda de que período se abria com a eleição do Lula, nem entender os temas da necessária transição e os limites para defini-la, deixando, ao mesmo tempo, de ter uma visão estratégica. Perdemos um pouco o horizonte enquanto partido.

O governo é sempre consumido por tarefas que tornam mais difícil essa reflexão. Não que ela não devesse ter sido feita, mas essa era uma tarefa fundamental do partido, que não o fez por várias razões. A explicação mais trivial e que tem uma certa base empírica é que a direção do PT foi esvaziada porque muitos quadros, que tinham tido desempenho substancial na história anterior, foram para o governo. Isso é parcialmente verdadeiro porque quem foi para o governo poderia ter tido uma incidência efetiva no PT, inclusive como uma esfera de reflexão e intervenção, e não teve. Eu o digo autocriticamente, eu era membro da direção nacional e não intervim, talvez, com a determinação necessária.

Por outro lado, temos um sistema político muito perverso, que criou grandes armadilhas para o próprio PT. Eu insisto, para o mau humor de certos setores da imprensa, que nunca houve “mensalão”, mas essencialmente uma prática de financiamento das campanhas eleitorais de outros partidos para mantê-los na base. Não houve um sistema de prebendas regulares, até porque grande parte dos que se chama de “mensaleiros” é do próprio PT − uma incongruência dizer que estávamos pagando alguns deputados do PT. Por que não pagar todos? O jornalismo investigativo nunca estabeleceu um nexo entre depósito e votação.

O grande problema foi que não nos demos conta de que era de fundamental importância a renovação do sistema político-eleitoral-partidário, e portanto o partido navegou um pouco nesse sistema. Os episódios expressam, no que diz respeito ao PT, um caso clássico de gestão temerária. Nós nos deixamos atrair por um tipo de financiamento “caixa dois” – que é sempre interesseiro, que espera contrapartidas. Não recorremos seja a um financiamento legal que um partido de governo teria possibilidade de obter, seja ao autofinanciamento, que é a cobrança de mensalidades de milhares de quadros que estavam nos nossos governos. Isso mostra como nos deixamos aprisionar por um tipo de estrutura política que todos os outros partidos já praticavam, mas nós não podíamos nos permitir.

O PT tem de se repensar por várias razões. O Brasil está vivendo um novo período, ele não é o Brasil da fundação do PT, nem mesmo o país que elegeu Lula pela primeira vez. Houve uma mudança na base social do Lula e, se é verdade que ele sempre foi maior que o PT, embora sempre tenha estado ao lado do PT, hoje o lulismo é um fenômeno muito maior do que no passado. Então, a mudança do PT, menos que de pessoas, menos que de estruturas organizativas, tem de se dar rumo a um pensamento sobre o país e um projeto estratégico. É claro que existem problemas de organização, mas problemas de organização são eminentemente políticos.

Lideranças do partido propõem a “despaulistização” do PT. O que você acha disso?
Essa visão não aponta para as questões de fundo. Não há a menor dúvida de que o partido precisa ter uma representação muito mais expressiva de outros estados, sobretudo do Norte e do Nordeste, onde a esquerda obteve grande vitória. Essa mudança deve ter implicações de composição social, da base real do PT, o que precisa se refletir na nova direção. O PT de São Paulo tem problemas, mas outros também os têm. O PT de Minas, do Rio, do Rio Grande do Sul, cada um tem um conjunto de problemas que precisa ser enfrentado.

E como vamos compatibilizar a representatividade que uma direção deve ter com a sua eficácia? Você pode ter um partido com parlamentares, governadores, prefeitos, dirigentes sindicais, mas isso implica essas pessoas assumirem um compromisso efetivo na condução do partido. Se for simplesmente para emprestar o nome é melhor criar uma espécie de conselho de notáveis que enfeite o partido. A ida de um governador, um parlamentar, um líder sindical ou um grande intelectual para a direção do partido tem de se traduzir em ganhos efetivos para a estrutura. Tivemos problemas ao serem designados para dirigir secretarias importantes do PT parlamentares com grande visibilidade social, mas sem tempo para se dedicar às tarefas partidárias...

E que nomeiam um assessor profissional que, de fato, é quem vai tocar... Só que esse profissional não foi eleito! Um partido com a dimensão institucional que o PT tem exige certo nível de profissionalização. Evidentemente, há uma lógica da burocratização – isso foi estudado amplamente, já por Robert Michels, quando analisou a socialdemocracia. Há milhares de estudos sobre a burocratização dos partidos operários, sejam comunistas, sejam socialdemocratas ou de outro tipo. Então, é importante que tenhamos criatividade para construir um sistema de contrapesos para isso. Também alguns partidos socialdemocratas passaram a ser governados por suas bancadas parlamentares, o que não me parece uma boa solução. O ideal é que tivéssemos uma combinação de dirigentes que tenham visão dos problemas, capacidade de formulação e de condução e de lideranças dos movimentos sociais, dos sindicatos – o PT tem forte componente sindical que precisa estar refletido –, parlamentares, intelectuais e figuras de governo, que devem estar também, porque trazem outra sensibilidade.
Como você vê hoje o papel das tendências dentro do PT?
Avançamos quando criamos e regulamentamos o direito de tendência, o que permitiu que as distintas sensibilidades que o partido tinha pudessem se expressar abertamente. Isso, no entanto, traz algumas contrapartidas perigosas. As tendências hoje já não expressam simplesmente projetos políticos diferenciados. Aliás, se elas expressarem projetos políticos muito diferenciados, corre-se um risco de o partido se transformar numa espécie de federação de micropartidos. Mas, mesmo que essa identidade subsista, as tendências passaram por metamorfoses e, em muitos casos, atualmente congregam mais interesses de grupos e de pessoas para garantir espaço no partido. Isso é válido para todas as tendências. Não estou desqualificando-as, mas elas, hoje, reúnem cada vez menos projetos diferenciados e cada vez mais interesses pessoais e grupais.

Talvez pudéssemos pensar num certo movimento de destendencialização do PT. Não que as tendências devam deixar de existir, mas por que eu tenho de estar rigidamente submetido a uma tendência se em determinados momentos estou mais próximo de posições de outra tendência? Elas deveriam se constituir muito mais em função de projetos políticos e menos em função de razões ideológicas. Esse é um dos problemas essenciais. A direção nacional, inclusive a Executiva, tendo em vista que deve guardar uma proporcionalidade, muitas vezes se compõe não dos melhores quadros, mas daqueles que a tendência seleciona e, às vezes, não são os mais capacitados. Essa não poderia ser uma consideração da tendência, deveria ser do partido. Só poderia ser consideração da tendência se fôssemos uma federação de micropartidos. Esse é um problema complexo, não tenho uma fórmula para resolvê-lo, mas me sinto na obrigação intelectual e política de pôr o dedo nessa ferida.

Você não acha que o PT marcha para ser uma federação de micropartidos ou de grupos de interesses?
Há uma forte propensão a isso. Mas, se assim for, o PT corre grave risco e não estará à altura dos acontecimentos. Por outro lado, hoje temos um partido mais homogêneo do ponto de vista político, há uma convergência muito maior, que talvez seja um elemento que nos ajude um pouco a destendencializar. Meu temor é que as tendências se transformem exclusivamente num instrumento de acesso ao poder partidário, e isso, quando o partido está no governo, é grave, porque começa a haver uma promiscuidade entre a função partidária e a governamental.

Também se produzem no PT algumas questões muito difíceis de resolver sem uma reforma política. Os mandatos, por exemplo. Hoje, os mandatos dos parlamentares, para não falar dos detentores de cargos executivos, têm uma força superior, em muitos casos, às próprias estruturas formais, aos diretórios. Eles dispõem de uma estrutura financeira muito poderosa e de canais privilegiados de intervenção. Não estou criticando que o deputado tenha o seu boletim ou que faça reuniões de mandato. Mas isso se choca com as estruturas formais; e, a partir daí, se estabelecem redes. O sujeito é candidato a deputado federal e se articula com cinco ou seis candidatos a estadual, que por sua vez se articulam com cinqüenta vereadores − e essa articulação não é só de idéias, é de Kombis, de papel, de faixas, de militantes.
Eu não tenho uma visão idílica do PT, não vamos regressar às características que tínhamos em 1980, ou quando disputamos a primeira eleição, em 1982, quando tínhamos em cada diretório dezenas de pessoas trabalhando gratuitamente. A política mudou, há níveis de profissionalização que têm de funcionar. Mas quando ouço falar dos orçamentos das campanhas de vereadores, deputados estaduais e federais fico estarrecido. Nesse particular, a reforma política vai ajudar muito mais ao PT. Eu tive informação de que, na última eleição, havia gente que mandava tirar faixa de um candidato para pôr faixa de outro – os dois do PT! Isso não pode acontecer. Claro que muitas vezes se trata de iniciativa dos cabos eleitorais. Mas a simples idéia de que no PT possa haver cabo eleitoral semelhante aos dos outros cria uma dinâmica que, independentemente da nossa vontade, nos leva para a outra margem.

Com a perspectiva de uma reforma política no próximo ano, o principal desafio do III Congresso do PT está no campo organizativo e ético?
Não, o principal desafio está em nos pormos de acordo sobre o Brasil que queremos. Pode até não ser fácil, mas estou otimista. Um dos méritos que o PT teve foi quando rompemos com a idéia de ser um partido de oposição e nos definimos como um partido para ganhar as eleições e governar o país. Em 2002, resolvemos um problema fundamental com a Carta ao Povo Brasileiro. Havia uma preocupação de que as pressões que a direita fazia naquele momento viessem a inviabilizar nossa candidatura. Aquela foi uma ação preventiva muito positiva, mas não fomos capazes de retomar a elaboração que se fez um pouco na campanha de 1994, menos na de 1998 − enfim, uma preocupação mais estratégica com o Brasil e sua inserção no mundo.

Nesta campanha eleitoral criou-se de novo um movimento nessa direção que, talvez, tenha muito mais consistência pelo fato de que não estamos mais pensando essa questão abstratamente, mas a partir de uma experiência de governo. Temos um realismo maior para saber quais são os limites, e isso não significa se conformar ou se dobrar frente a eles, mas significa ter estratégias inteligentes para vencê-los. É evidente que a questão organizativa não pode ser abandonada e, se pensarmos adequadamente essas duas questões, vamos resolver um dos problemas fundamentais que todo partido enfrenta, que é ter um bom grupo dirigente.

Ricardo de Azevedo é coordenador editorial de Teoria e Debate.