Mundo do Trabalho

A partir do texto da Constituição Federal de 1988, a organização sindical dos funcionários públicos ingressa em um novo período. Para o Partido dos Trabalhadores, que agora exerce cargos no Poder Executivo administrando prefeituras municipais, e que sempre esteve na linha de frente dos movimentos reivindicativos do funcionalismo público, este novo período traz desafios. Trata-se de conciliar a administração pública com a liberdade sindical de seus trabalhadores. Quais são as perspectivas?

"Eu atravesso as coisas - e no meio da travessia não vejo! - só estava era entretido na idéia dos lugares de saída e de chegada. Assaz o senhor sabe: a gente quer passar um rio a nado, e passa; mas vai dar na outra banda e num ponto muito mais embaixo, bem diverso do em que primeiro se pensou." (Riobaldo Tatarana)
In Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa

 

Na nova situação em que se encontra, de reconhecimento constitucional, o sindicalismo de funcionários públicos conserva algumas de suas antigas ambigüidades ao lado de outras recém-adquiridas. Durante muitos anos de não reconhecimento legal e de existência de fato, as entidades (de caráter sindical) do funcionalismo enfrentaram barreiras colocadas até mesmo por alguns reorganizadores da luta intersindical (na Unidade Sindical, na Conclat, na pró-CUT, na CUT, na CGT) que resistiram ao convívio com os "sindicatos" marginais à estrutura vigente, "sindicatos" que se organizavam à sua própria maneira e que não podiam contar com o apoio financeiro proporcionado pelo imposto sindical. A Constituição de 1988 e as resoluções aprovadas no III Congresso da CUT (set./88) revelam ter havido alterações substanciais apesar de possibilitarem o surgimento de outros problemas ao movimento sindical do funcionalismo. O melhor equacionamento desses problemas ampliará a contribuição das organizações de servidores públicos para a unidade sindical de toda a classe trabalhadora e para a construção de bases de apoio a um programa de transformações sociais.

A Constituição diz textualmente: "E garantido ao servidor público civil o direito à livre associação sindical". Logo em seguida, porém, está expresso: "É vedada a vinculação ou equiparação de vencimento, para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público o que significa que o salário de uma categoria não pode estar vinculado ao de outra, mas que também pode permitir a interpretação de que estão proibidas vinculações de reajustes salariais a índices, o que tende a negar a luta sindical. A criação do sindicato, segundo a Constituição, independe de autorização, ficando, entretanto, "vedada a criação de mais de um sindicato na mesma base territorial, que não poderá ser inferior à do município". Redação engenhosa: ao mesmo tempo que sugere unidade, incentiva o fracionamento da organização sindical por municípios. O texto deixa sem resposta, porém, à espera de lei, o problema da existência anterior de mais de uma organização na mesma base territorial, como é o caso do CPP (Centro do Professorado Paulista) e da Apeoesp (Associação dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo). De acordo com o texto constitucional, cabe ao sindicato (um só) "a defesa dos interesses da categoria", "a assembléia geral fixará a contribuição da categoria" (não só dos sócios) e "é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações". Considerando-se o texto aprovado, ficam colocadas as questões às quais o movimento sindical deve responder imediatamente, para não se ver na dependência de medidas de emergência como no caso da lei de greve:

1. quais os critérios para definição de determinada entidade como sindicato único?;

2. qual entidade, portanto, definirá a contribuição e arrecadará o imposto sindical (se é que vai arrecadar) da categoria?;

3. já que não há restrições para o registro, qual entidade terá o privilégio de obter o reconhecimento do seu registro para efeitos legais?

O II Concut em suas resoluções referentes à estrutura e ao enquadramento sindical estabeleceu que "o enquadramento será feito por ramo de atividade econômica (setor agropecuário, setor industrial e de serviços) tanto no setor privado como no setor público..." e "ramo de atividades de serviços públicos - serão enquadrados como trabalhadores funcionários públicos todos os assalariados municipais, estaduais e federais".

O enquadramento por "ramo de atividade" e não por "categoria" supõe avanços nos sentido da organização de "trabalhadores em Educação" em vez de professores, supervisares, funcionários administrativos etc. bem como a unificação de bancários e secundários num só sindicato etc. Pode-se dizer que essa resolução significa a ampliação do conceito de categoria (o que ainda vai demandar muita discussão e muitas experiências), mas mantêm o mesmo princípio: a organização sindical se dá por categoria e a unidade intercategoria é de tipo federativa.

Respaldada nessa resolução do Concut, circula no movimento a proposta de criação do sindicato único do funcionalismo - do "ramo de atividades de serviços públicos". No entanto, o texto "Subsídio para discussão – organização sindical do funcionalismo público" elaborado pela Secretaria de Política Sindical da CUT, também respaldado na mesma resolução, sugere "para a discussão a seguinte organização sindical por ramos: a. Educação; a.l. "1º e 2º Graus - CNTE; a.2. Universitário – unificação / ANDES-Fasubra; a.3. Departamento Nacional dos Trabalhadores em Educação - congregando todas as entidades. b. Saúde e Previdência; b.1. Saúde; b.2. Previdência. c. Agricultura e Meio Ambiente. d. Justiça e Fazenda". No mesmo texto, a Secretaria de Política Sindical propõe ainda "organização sindical por níveis de contratação", uma vez que, "com a definição da organização sindical por ramos, ficariam fora da proposta, até agora, funcionários do Legislativo (municipal, estadual e federal), demais secretarias (Transporte, Interior etc.) ...".

Como foi dito anteriormente, a lei que dá o direito à livre organização sindical é a mesma que tenta impedir a concretização do direito. O texto aprovado no III Congresso da CUT também permite uma leitura que, favorecendo a militância que tem pressa em ser direção geral e em ter propostas globalizantes, que quer ser direção de base de categorias a cujos quadros não pertence, levaria da mesma forma, ao contrário daquilo a que se propõe: à não organização sindical do funcionalismo. A leitura mais qualificada feita pela Secretaria de Política Sindical, porém, evidencia o respeito à complexidade da trama que vem sendo tecida pelo movimento e que nenhuma proposta, por mais bem-intencionada que seja, pode desconsiderar: há organizações nacionais razoavelmente bem estruturadas como a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e a ANDES (Associação Nacional dos Docentes no Ensino Superior), com suas respectivas afiliadas por Estado ou por universidade (mesmo várias por Estado), para as quais não há projeto de unificação em discussão, apesar de serem ambas do mesmo setor Educação. Simultaneamente há municípios em que havendo rede municipal de ensino, tem sido mais eficiente, para os professores, encaminharem suas reivindicações através do sindicato dos funcionários municipais e não através da entidade estadual como acontece em outros municípios. Apesar disso, e por isso mesmo - não se pode dizer que a liberdade de organização sindical tenha sido nociva para os professores. Apesar da pouca idade, a ANDES está entre as mais representativas e respeitadas organizações sindicais do país, o que não impediu, antes favoreceu, o crescimento da Fasubra (Federação das Associações de Servidores das Universidades Brasileiras). A CNTE, antes CPB (Confederação de Professores do Brasil), é entidade única, não existindo para isso nenhuma compulsoriedade, apesar das acirradas disputas que vêm marcando seus congressos nos últimos oito anos, a que têm comparecido milhares de delegados eleitos em todas as unidades da Federação. No Estado de São Paulo, a AFUSE (Associação dos Funcionários da Secretaria da Educação), uma das entidades que mais cresceram nos últimos anos, desenvolveu-se via subsedes e regionais da Apeoesp, que tem conseguido cerca de dez mil sócios por ano, encaminhando lutas conjuntas também com o CPP.

O reconhecimento integral do sindicalismo de funcionários públicos pelo conjunto do movimento sindical supõe a apropriação dessa experiência já vivida, que vem superando o aparentemente insolúvel debate liberdade/pluralismo/unidade/ unicidade sindical. Supõe, também, o reconhecimento de que o imposto sindical não é condição para a existência de um movimento sindical forte e estruturado (sugiro o recolhimento, para que não fique em outras mãos a posterior devolução aos contribuintes), e de, que a organização de todos os trabalhadores na Central Única passa pela organização de todos, nas entidades de base que não são substituídas pela organização geral. O fortalecimento da organização intersindical supõe o fortalecimento simultâneo das instâncias de base da entidade sindical. Não há congresso representativo sem a interferência da comissão de fábrica, sem as reuniões por local de trabalho ou de representantes regionais etc.

Também a esse respeito é muito importante o acúmulo conquistado pelas experiências de lutas unificadas do funcionalismo em São Paulo. Caracterizado, especialmente pelo dinamismo do movimento de professores de 1º e 2º graus, por participações muito numerosas, desenvolve-se no funcionalismo, entre uma parcela de militantes que defendem o sindicato único, a mistificação de que a Assembléia Geral do Funcionalismo (de todas as categorias) garantiria a unificação, sendo instância superior para todos, sobrepondo-se ou mesmo prescindindo de resolução de assembléias ou outras instâncias setoriais que poderiam, quando muito, ser indicativas.

A Assembléia Geral é uma das maneiras pelas quais se realiza a democracia numa entidade sindical. Não é a única e não se realiza da mesma forma como a mais acertada em todos os casos e circunstâncias. Por exemplo, no caso dos professores de São Paulo, em 1979, uma greve geral que durou 42 dias foi deliberada numa Assembléia Geral da qual participaram cerca de quinhentas pessoas, e que hoje seria considerada não deliberativa. Pretende-se que uma Assembléia Geral seja sempre a maior possível. Quanto maior o número de presentes, mais próximas da opinião do conjunto da categoria serão as suas decisões. O maior número não apenas torna mais democrática a assembléia como promove, como veremos adiante, um avanço político na luta da categoria. No entanto, quanto maior for o número, menor será o grau de comprometimento, de militância e de consciência política do conjunto dos presentes. O inverso acontece com as outras instâncias da entidade, em que, apesar de necessariamente menor o número de participantes, maior é o grau de compromisso de cada um, maior a representatividade e a capacidade de elaboração política e de tradução dos anseios da categoria em propostas práticas. Quanto menor a reunião, mais "democrático" deverá ser o encaminhamento dos trabalhos, podendo todos apresentar suas opiniões e propostas. Quanto maior for a assembléia, menos "democráticos" serão os seus encaminhamentos específicos, uma vez que, na prática, relativamente quase ninguém terá o direito à palavra e à apresentação de propostas. Quanto maior for a assembléia, porém, por menor que tenha sido o número de oradores (e a massa não gosta de muita conversa) e por mais baixo que seja o nível de consciência política dos presentes, menos questionadas serão as suas decisões. Para isso, porém, é necessário que haja informação suficiente, alto grau de concordância entre os membros das instâncias inferiores à assembléia (diretoria, conselho e comissões, por exemplo) e forte participação organizada de base (representantes de local de trabalho, assembléias regionais etc.). E preciso também que haja lideranças representativas capazes de expressar essa concordância anterior. Portanto, da mais democrática de todas as assembléias, ou seja, aquela de que participam dezenas de milhares de pessoas, pode-se dizer que ela apenas referenda e unifica resoluções parciais que são anteriormente tomadas num longo processo de discussões e de decisões que tem que ser organizado desde o local de trabalho. E a assembléia só consegue deliberar se estiver informada de todas as etapas desse processo anterior. O contrário seria apenas uma grande confusão e a discórdia generalizada. Essa é talvez a mais importante razão por que as resoluções das organizações intersindicais (CUT, CNTE, Funcionalismo) precisam passar pelo processo decisivo de cada categoria, da reunião de base à Assembléia Geral.

Portanto, não corresponde à realidade a idéia de que uma Assembléia Geral, com milhares de participantes, tenha um poder espontâneo de decidir por si mesma. A liberdade desse tipo de Assembléia Geral é balizada pelo processo organizativo anterior. Isto porém não significa que a assembléia não possa, por si mesma, alargar horizontes, romper os parâmetros e definir novos procedimentos de organização. A massa melhores salários (afinal, miseráveis), deveria nossa militância na categoria trabalhar contra a greve por se tratar de uma "greve patronal"?

Considerando-se a situação falimentar e profundamente dependente do governo federal da quase totalidade das prefeituras, não deveriam os militantes do partido desestimular as reivindicações "breais apesar de justas"? Tal prática serviria, antes, para desmoralizar a administração e o próprio partido, além de abrir espaços para lideranças ditas não partidárias e apolíticas. Para ambos - administração e sindicato - conquistar a confiança do funcionalismo (e da população) supõe a adoção de procedimentos democráticos de negociação, dentre os quais a organização e a mobilização sindical (com greve, inclusive) são parte integrante. A negociação democrática, com abertura de informações, pode conduzir ao reconhecimento de limites e à necessidade de redirecionamento da luta; pode ampliar a participação popular nas decisões sobre orçamento, o que dará respaldo à "divisão do bolo" desta e não daquela forma; pode dar força à administração popular nos embates com o empresariado - do transporte, da construção, da limpeza pública etc. e com o governo estadual e o federal. Além disso, é claro, fortalece as organizações sindicais com ampliação da influência da militância petista. Em vez de dificultar, deve a administração favorecer a organização sindical, reconhecendo inclusive o direito ao afastamento sindical para os dirigentes, o direito de mobilização e de reunião no local de trabalho, de desconto em folha das contribuições e concedendo, por exemplo, auditório, prédio ou terreno para a instalação da sede etc. É contrário porém ao nosso interesse que a administração assuma tarefas da organização sindical, que deve manter sua independência e apartidarização. Além disso, como a situação salarial, não somente do funcionalismo, depende de lei, as negociações precisam sempre incluir o Legislativo e, obviamente, os partidos que o compõem. Continua, portanto, sendo uma grande bobagem (a não ser pelos objetivos de quem diz) falar que uma greve do funcionalismo tem objetivos políticos.

Especialmente no momento em que o PT está à frente de muitas e importantes administrações municipais é tão importante para nós considerar a complexidade dessas relações como considerar que dificilmente será bem-sucedido o movimento reivindicativo do funcionalismo que não conte com amplo apoio popular. Como o apoio popular é estratégico para ambos - governo democrático e movimento sindical do funcionalismo -, considerando-se a força evidenciada no grande número de greves no serviço público e a expressiva militância petista no setor, cabe acentuar ainda mais o caráter de luta pela melhoria do serviço prestado à população nas campanhas do funcionalismo, não necessariamente, portanto, contra, embora pressionem a administração local.

Gumercindo Milhomem é Deputado Federal do PT-SP.