No século 21, as brasileiras ainda debatem as possibilidades de participarem de fato em todos os espaços da política
No século 21, as brasileiras ainda debatem as possibilidades de participarem de fato em todos os espaços da política
No Brasil somente foi possível ter mulheres candidatas ou aptas a votar em 1933. No século 21, as brasileiras ainda debatem as possibilidades de participarem de fato em todos os espaços da política
A mulher é por natureza um sujeito político. Sua forma peculiar de enxergar a realidade, de interagir com seu meio e de inquietar-se diante das injustiças e desigualdades a instiga a buscar permanentemente o aprimoramento das relações a seu redor, ainda que, em algum momento, não se reconheça como tal. A história revela que, mesmo nos períodos de intensa discriminação social, seu senso de justiça e seu desejo de participar sempre estiveram manifestos, embora geralmente reprimidos por comportamentos característicos de uma cultura patriarcalista. Essa cultura, por tempos, inibiu e puniu (prática que ainda se reproduz de maneira mais ou menos recorrente e explícita) quem ousou romper seus valores. Mesmo assim, sempre houve mulheres dispostas a não se intimidar e a lutar pelo direito de exercer sua natureza participativa e revolucionária.
No campo da participação política, a reivindicação inicialmente mais marcante foi pelo direito ao voto, em uma demonstração clara de sua compreensão de que é pelo exercício do direito de escolha que os caminhos da sociedade vão sendo traçados. Em um breve retrospecto, de acordo com os registros da história recente, a luta pelo direito ao voto teve início em meados do século 19, com o engajamento de mulheres norte-americanas pelo fim da escravatura nos Estados Unidos1. Mas foram as mulheres da Nova Zelândia as primeiras no mundo a conquistar esse direito, em 1893 – uma conquista histórica que tinha tudo para ser contabilizada nos registros da história brasileira.
Em 1890, quando estava sendo elaborada a primeira Constituição da República do país, o direito da mulher ao voto era defendido pelo médico e intelectual baiano César Zama. Rejeitada, a proposta retornou para discussão em 1º de janeiro de 1891, quando Saldanha Marinho obteve a assinatura de 31 constituintes em emenda de sua autoria ao projeto de Constituição, assegurando a elas o referido direito. A emenda não foi aprovada, e o Brasil perdeu seu lugar na história para a Nova Zelândia. Ainda segundo os registros, após a rejeição da emenda, o então constituinte César Zama fez o seguinte pronunciamento: “Bastará que qualquer país importante da Europa confira-lhes direitos políticos e nós o imitaremos. Temos o nosso fraco pela imitação”.
O tempo passou, as tentativas persistiram no Congresso Nacional, as militantes feministas se organizaram cada vez mais e o então governador do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, deu ao Brasil o exemplo ao alterar a legislação eleitoral no estado e estender o voto às mulheres. E foi no município de Lajes (RN), em 1928, que se elegeu a primeira prefeita no Brasil. Alzira Teixeira Soriano, do Partido Republicano, tomou posse em 1º de janeiro de 1929. Perdeu seu mandato com a Revolução de 1930, por discordar do governo de Getúlio Vargas. Dois anos mais tarde, Getúlio promulgou o novo Código Eleitoral, garantindo, enfim, o direito ao voto às mulheres. No ano seguinte, em 3 de maio de 1933, a mulher votou pela primeira vez, em âmbito nacional, na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte, elegendo aí a paulista Carlota Pereira de Queirós, primeira deputada brasileira.
De lá para cá muitas mudanças ocorreram. Foram eleitas vereadoras, prefeitas, deputadas, senadoras e, agora, em 2011, temos a primeira presidenta do Brasil e, na Câmara Federal, a primeira mulher a ocupar uma vaga na mesa diretora.
Em 1928, tomou posse a primeira prefeita eleita no país, Alzira Teixeira Soriano. No Rio Grande do Norte, a partir da mudança eleitoral patrocinada pelo governador Juvenal Lamartine, a cidade de Lajes escolhe uma mulher para administrar o município |Foto: www. memoriaemovimentossociais.com.br/Acervo CNDM
A legislação eleitoral também sofreu várias alterações. Primeiro, a cota que obrigava os partidos a reservar no mínimo 20% (1995) de suas vagas para candidatas, passando para 25% (1997), até chegar à determinação de preenchimento (e não mais reserva) do mínimo de 30% e máximo de 70% para candidaturas de cada sexo. Além disso, instituiu-se a obrigatoriedade de destinação de, no mínimo, 10% do tempo na propaganda partidária gratuita em horário de rádio e televisão e de, no mínimo, 5% dos recursos do fundo partidário para a criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres (2009). Tais mudanças resultaram da mobilização das mulheres, que, embora compreendam mais de 50% da população brasileira, ainda têm representatividade numérica pouco significativa nos espaços políticos de poder e decisão.
A essas alterações, houve quem chamasse de reforma política. Contudo, o que se viu até agora foram mudanças pontuais específicas na legislação eleitoral. Reforma política é o que de fato o Brasil precisa; é o que é necessário para que o país avance rumo à consolidação da democracia. Com esse intuito, incube à sociedade, e de modo particular às mulheres, aproveitar que o tema está pautado e enfrentar o embate para que o Congresso Nacional promova uma verdadeira reforma no sistema político brasileiro.
Por que o engajamento das mulheres no debate da reforma política? Porque esse é o momento ideal para obterem as condições necessárias para efetivamente disputar e ocupar espaços de poder, de forma a refletir neles o papel que exercem socialmente. É por meio do engajamento nesse debate que poderão garantir as condições legais para forçar a abertura de espaço para participação nos partidos; assegurar que as disputas partidárias ocorram em condições de igualdade com os homens; e fazer com que os partidos invistam em sua formação política, no estímulo para que atuem e ocupem espaços em todas as suas instâncias e, consequentemente, nos demais poderes constituídos do Estado. É nessa reforma que poderão, em especial, fazer com que sejam reconhecidas e se reconheçam como protagonistas de uma nova história, de um modo diferenciado de fazer política, de pensar e valorizar o público como patrimônio coletivo, como instrumento de promoção da igualdade social.
Considerando essas e outras razões para que a reforma política ocorra e do modo mais participativo, abrangente e democrático possível, a Secretaria Nacional de Mulheres do Partido dos Trabalhadores (SNMPT) ratifica as deliberações do 3º Congresso Nacional do PT (2007) acerca do tema, fazendo delas sua pauta, com uma única ressalva – a lista preordenada precisa ser, também, paritária e com alternância entre gêneros. Ainda em seu 3º Congresso, o PT aprovou a tese de que a reforma deveria ser feita por uma Constituinte exclusiva, livre, soberana e democrática, mas, ao que tudo indica, ninguém em atividade vai querer delegar tamanho poder.
Vale ressaltar que, visando à preservação do princípio democrático do direito ao voto, entre outras garantias, a lista preordenada deve ser conjugada com o sistema proporcional, único que assegura que cada eleitor corresponda a um voto e mantém, ao longo do tempo, a pluralidade partidária. O voto em lista preordenada é necessário para acabar ou pelo menos reduzir a competição e o personalismo interno nos partidos, além de permitir que os eleitores façam suas escolhas com base nos princípios e ideais partidários, e não na pessoa do candidato ou da candidata. Mas, para que esse mecanismo seja realmente democrático, como dito anteriormente, deve-se assegurar que seja paritário e com alternância entre gêneros, possibilitando que mulheres e homens tenham oportunidades iguais para se eleger.
Também está entre os pontos considerados indispensáveis, nessa reforma, a obrigação de convocação de plebiscitos para grandes questões de alcance nacional. A soberania popular se manifesta por meio de instrumentos como o plebiscito e o referendo. É certo que, quanto maior a participação do povo nos processos de decisão, melhor a democracia. Nesse sentido, a reforma política deve reforçar o princípio constitucional da soberania popular e garantir o direito do povo de debater e opinar sobre questões que podem afetar significativamente o destino da Nação, cabendo-lhe a decisão final. E as mulheres, a exemplo do que ocorre em qualquer pleito eleitoral, representam grande força política e enorme poder de influência em um processo de plebiscito ou referendo. Conscientes disso, poderão se apropriar desse instrumento democrático a fim de assegurar as mudanças que conduzirão a uma sociedade com igualdade de direitos e oportunidades.
O voto em lista preordenada é necessário para reduzir a competição e o personalismo interno nos partidos, além de permitir que os eleitores façam a escolha com base nos princípios partidários
É inadiável resgatar a importância do partido político enquanto organização que defende concepções e ideias sociais. Torna-se fundamental, assim, defender a fidelidade partidária, como meio de sobrepor o partido à pessoa, intimidando a troca de legendas, que em geral ocorre em função de interesses particulares do eleito. O mandato deve pertencer à legenda, e não ao candidato. A reforma política deve, portanto, dar um tratamento criterioso ao tema, ratificando o entendimento de que a vontade popular manifestada por meio do voto deve ser respeitada. A troca de partido deve significar perda de mandato, devendo a vaga ociosa ser preenchida pelo/a suplente da mesma legenda.
Para concluir, o financiamento público exclusivo das campanhas eleitorais é uma das proposições mais significativas e, provavelmente, uma das que mais incidirão diretamente sobre a candidatura feminina. As campanhas no Brasil, financiadas com recursos privados, privilegiam o acesso ao poder de representantes dos interesses dos grandes grupos econômicos e, consequentemente, a defesa desses interesses em detrimento dos da maioria. O financiamento com dinheiro público vai tornar a disputa mais equilibrada, mais transparente e mais barata, além de fazer com que o recurso alcance, também, as candidatas. Para que isso de fato ocorra, porém, é necessário que a lei preveja penalidades para quem burlar as regras.
Pontuadas algumas considerações sobre a reforma política, vale destacar ainda que há duas formas básicas e distintas de fazê-la. Uma reforma em sentido amplo, que significaria repensar as práticas políticas no âmbito dos poderes, dos partidos políticos e da própria sociedade organizada. Essa seria a reforma ideal, que levaria, ainda que num decurso maior de tempo, à reflexão, ao exercício efetivo da democracia, à busca constante do aprendizado coletivo, do aprimoramento das relações na vida em sociedade. E uma reforma restrita, que, por certo, é a que está em discussão. Restrita ao sistema eleitoral e, quando muito, político-partidário.
Ainda assim, é fundamental que ocorra. É essencial que a sociedade se disponha a ir para o debate, a entender a dimensão do que está em discussão. E é imprescindível que as mulheres assumam sua natureza política e revolucionária e ajam como sujeito nesse processo que resultará, ou não, na construção de instrumentos capazes de promover a igualdade de oportunidades entre mulheres e homens, o que lhe dará condições reais para a disputa de espaços de poder e decisão na política. É presente nesses espaços deliberativos que as mulheres vão se apropriar de ferramentas indispensáveis à promoção da transformação da sociedade – que se permitirá, cada vez mais, romper com toda forma de preconceito.
Laisy Moriére é secretária Nacional de Mulheres do PT