O fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho renova oportunidades de politização classista por parte de instituições que devem representá-las
O fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho renova oportunidades de politização classista por parte de instituições que devem representá-las
A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte
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A metamorfose pela qual passa a atual estrutura social brasileira está a exigir o desenvolvimento de interpretações mais profundas e abrangentes, capazes de ir além da abordagem superficial e muitas vezes tendenciosa a respeito da existência de uma nova classe média. Pode-se até estranhar a inclinação de certas visões teóricas recentes que buscam estabelecer para determinado estrato da sociedade – agrupado quase exclusivamente pelo nível de rendimento e consumo – o foco das atenções sobre o movimento geral da estrutura social do país.
Mas a causa de maior constrangimento termina sendo o viés político expresso por monopólios sociais pelos meios de comunicação e seus “oráculos” midiáticos. Ou seja, a manipulação do consciente populacional em torno dos desejos mercantis e, por que não dizer, propagandistas do consumismo e da negação da estrutura de classe em que o capitalismo termina por moldar a sociedade. Também pode ser agregada, nesse mesmo contexto, a opção política rasteira com que certos intelectuais engajados à lógica mercantil se associam à retórica de classes de rendimento desprovida de qualquer sentido estrutural e com tradução fundamentalmente no caráter propagandista a respeito dos imperativos do mercado. Em síntese, observa-se que o arbitrário tratamento estatístico de dados da realidade pode levar a reorientações de políticas públicas, quando não do próprio reposicionamento partidário.
Análises mais detalhadas sobre o recente movimento geral na estrutura social brasileira estão ainda por ser realizadas. E é essa perspectiva que o presente artigo persegue, procurando lançar algumas luzes sobre a mobilidade existente na base da pirâmide social brasileira no início do século 21. Isso porque se parte da hipótese central a respeito da inconsistência das atuais definições e identificações sobre a existência de uma nova classe média no país.
Resumidamente, entende-se que não se trata da emergência de uma nova classe social e, muito menos, de uma classe média específica1. O que há, de fato, é uma incessante orientação alienante orquestrada para o sequestro do debate sobre a natureza e dinâmica das mudanças econômicas e sociais recentes, incapaz de permitir a politização classista do fenômeno de transformação da estrutura social e sua comparação com outros períodos dinâmicos do Brasil. O mesmo parece se repetir em outras dimensões geográficas do globo, sobretudo na periferia do capitalismo, conforme o interesse de instituições multilaterais como o Banco Mundial, entre outras, em difundir os êxitos da globalização neoliberal. Sobre isso, aliás, começa a surgir mais recentemente uma leitura crítica à superficialidade exposta no tratamento do tema da classe média2.
No Brasil, na melhor tradição teórica progressista, encontram-se dois excelentes estudos interpretativos dos fenômenos relacionados às grandes transformações da sociedade brasileira, bem como abrangem a politização gerada pelos movimentos de ascensão social durante a década de 1970. Naquela época, o Brasil conviveu com forte ritmo de expansão econômica influenciado fundamentalmente pelo dinamismo do setor industrial, que foi o responsável também pela geração de grande parte das ocupações, sobretudo de maior remuneração (período identificado por alguns como sendo o “milagre econômico” brasileiro). Concomitantemente, assistiu-se também à mobilidade de vários segmentos sociais, sobretudo daqueles provenientes do meio rural, enquanto subproduto da modernização conservadora e selvagem do campo.
No livro interessante de João M. C. de Mello e Fernando Novais3, por exemplo, compreende-se o impacto geral do movimento de alteração das estruturas produtivas sobre o conjunto da sociedade brasileira. Também se pode constatar como a força do modo de produção capitalista intercalado com o autoritarismo levou à conformação de singulares anomalias de exclusão social no país.
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Naquele mesmo contexto, outro importante livro, de Eder Sader4, complementa a interpretação a respeito da singularidade observada no auge da economia industrial combinada com mobilidade social, por meio de uma preciosa análise sobre a formação de um novo sujeito social coletivo, responsável pelo protagonismo da luta pela redemocratização e por uma nova forma de fazer política no Brasil. A partir do entendimento sobre o difícil cotidiano das classes populares na década de 1970 numa grande metrópole como São Paulo, apresenta as condições de organização social e renovação do sentido da política. Problemas específicos encontrados nos locais de trabalho ou de moradia eram transformados em plataforma do movimento social reivindicativo, capaz de motivar conflitos e lutas de empoderamento de novos agentes sociais.
Na virada para o século 21, o Brasil conviveu com significativas transformações na estrutura social. Nos quinze anos que se seguiram ao estabelecimento do Plano Real (1994), responsável pelas bases da estabilização monetária, podem ser identificadas, por exemplo, duas tendências diametralmente opostas em relação ao comportamento das rendas do trabalho e da propriedade no Brasil, segundo informações oficiais do IBGE. Assim, por nove anos seguidos, houve a trajetória de queda na participação salarial na renda nacional, acompanhada simultaneamente pela expansão das rendas da propriedade, ou seja, lucros, juros, renda da terra e aluguéis. Entre 1995 e 2004, por exemplo, a renda do trabalho perdeu 9% do seu peso relativo na renda nacional, enquanto a da propriedade cresceu 12,3%.
Uma segunda trajetória ocorreu a partir de 2004. Até 2010, por exemplo, acumularam-se seis anos seguidos de crescimento da participação dos salários na renda nacional, ao passo que o peso relativo da propriedade decaía sucessivamente. Entre 2004 e 2010, o peso dos salários subiu 10,3% e o da renda da propriedade decresceu 12,8%. Com isso, a repartição da renda nacional de 2010 entre rendas do trabalho e da propriedade voltou a ser praticamente o observado em 1995, início da estabilização monetária.
Essa significativa alteração na relação entre rendas do trabalho e da propriedade durante a primeira década de 2000 encontra-se diretamente influenciada pelo impacto na estrutura produtiva provocado pelo retorno do crescimento econômico, após quase duas décadas de regressão neoliberal. O fortalecimento do mercado de trabalho resultou fundamentalmente na expansão do setor de serviços, o que significou a difusão de nove em cada grupo de dez novas ocupações com remuneração de até 1,5 salário mínimo mensal. Adicionado às políticas de apoio às rendas na base da pirâmide social brasileira, como elevação do valor real do salário mínimo e massificação da transferência de renda, houve o fortalecimento das classes populares assentadas no trabalho.
De maneira geral, esse movimento de expansão dos empregos de baixa remuneração se mostrou compatível com a absorção de enorme excedente de força de trabalho gerado anteriormente pelo neoliberalismo. Dada a intensidade desse movimento, a condição de país com oferta ilimitada de mão de obra começa a ser questionada, pois já há sinais de escassez relativa de força de trabalho qualificada, o que somente chegou a ser conhecido pelos trabalhadores brasileiros na primeira metade da década de 1970.
Mesmo com o contido nível educacional e limitada experiência profissional, as novas ocupações de serviços absorvedoras de enormes massas humanas resgatadas da condição de pobreza permitem ascensão social inegável, embora distante de qualquer configuração que não a de classe trabalhadora. Seja pelo nível de rendimento, seja pelo tipo de ocupação, seja pelo perfil e por atributos pessoais, o grosso da população emergente não se encaixa em critérios sérios e objetivos que possam ser identificados decentemente com a classe média. São associados, sim, às características gerais das classes populares, que por elevar o rendimento ampliam imediatamente o padrão de consumo. Não há, nesse sentido, nenhuma novidade, pois se trata de um fenômeno comum, uma vez que trabalhador não poupa, gasta tudo o que ganha.
Em grande medida, o segmento das classes populares em emergência apresenta-se despolitizado, individualista e aparentemente racional, conforme busca estabelecer a sociabilidade capitalista. A ausência percebida do movimento social em geral, identificado pelas instituições tradicionais como associação de moradores de bairros, partidos políticos, entidades estudantis e sindicais, reforça o caráter predominantemente mercadológico que intelectuais engajados e mídia comprometida com o pensamento neoliberal fazem crer. Desejam, assim, além de fortalecer o conformismo sobre a natureza e dinâmica das mudanças econômicas e sociais do país, domesticar e alienar as possibilidades de, pela política, aprofundar as transformações das estruturas do capitalismo brasileiro do início do século 21.
Diferentemente dessa perspectiva, considera-se que o avanço das ocupações na base da pirâmide social brasileira, a partir do recebimento do salário de base, impõe condições de trabalho e vida melhores para significativa parcela da população que vivia anteriormente na condição de pobreza. Por serem segmentos que pertencem às classes trabalhadoras, constituem oportunidades renovadas de politização classista por parte das instituições que devem representá-las. Esse é o papel que se espera das associações de bairros, sindicatos e partidos políticos compromissados com a classe trabalhadora.
Marcio Pochmann é professor licenciado do Instituto de Economia e do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Universidade Estadual de Campinas, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
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