Cultura

Está de novo na moda fumar charutos. E também falar sobre eles. Respeito quem gosta. Mas ainda não me acostumei com a mania.
Para mim, o cheiro de charutos está associado a tardes intermináveis de domingo, quando meu pai, que gostava de corridas de cavalo, me levava ao Jóquei Clube. Almoçávamos lá, e até aí tudo bem, mas a hora de ir embora não chegava nunca. Vinha um páreo, depois outro e mais outro, e entre cada páreo um vazio enorme, o vazio da mesa depois de tirados os pratos, o vazio daquele gramado todo à minha frente, vazio onde soprava um vento frio incapaz de dissipar o cheiro – sim, o cheiro dos charutos, que os turfistas, banqueiros, empresários, profissionais liberais, achavam por bem acender para completar aquela tarde de opulência e tédio.

A caricatura está sempre mais perto da verdade do que se imagina. Só numa velha caricatura da república de Weimar, só numa peça de Brecht, num cartum da antiga imprensa nanica, seria possível imaginar um banqueiro de cartola, fumando charuto, montado em cima de um operário como se fosse um cavalo, para mostrar, a quem não sabe, o que é uma boa opressão de classe. Gente usando cartola eu não peguei mas banqueiros de charuto sim, vi de fato, e se não estavam cavalgando operários pelo menos havia uns nortistas franzinos cavalgando os puros-sangues na raia para eles verem; curiosa inversão, em que o cavalo tinha pedigree e o jóquei não, o cavalo tinha nome de rei e o jóquei se chamava Raimundo; mas essa inversão talvez fosse uma forma de reinventar, numa cabriola simbólica, a idéia do banqueiro nas costas do operário, coisa difícil de realizar literalmente.

Seja como for, antigamente o charuto era sinal inequívoco de opressão de classe. Só o grande industrial, o megainvestidor, fumava charutos.
Veio depois a Revolução Cubana, O charuto se transformou, subitamente, em coisa de esquerda. Se Fidel Castro pode, eu posso. Era um símbolo da vitória, assim como o toco que se equilibrava entre os dedos de Churchill depois da Segunda Guerra. Prazer e ócio, coisas obviamente ligadas ao charuto, transformavam-se em atributos do poder revolucionário. Mais uma inversão, portanto: o líder revolucionário que fumasse charuto – claro que fumava, era cubano, mas não importa isso, importa o símbolo da coisa – tornava-se algo como opressor, o banqueiro do banqueiro, o burguês do burguês.

Mas eu ainda não me acostumei com a nova transformação por que vai passando o charuto. Se Fidel Castro, ditadura do proletariado, socialismo real são coisas desacreditadas hoje em dia, por outro lado não estamos de volta à velha moda pré-revolucionária; o charuto, que havia sido simbolicamente expropriado das mãos da alta burguesia financeira, não retornou simplesmente a quem de direito. Atende a outra faixa de mercado. Hoje, o charuto corresponde ao intelectual de classe média alta, que é politicamente correto o suficiente para não fumar cigarros, mas que se vê no direito de acender um belo charuto.

Esse intelectual tende a ser tucano, mas acima de tudo é um intelectual crítico: aprecia o charuto. Fez algum tipo de viagem para Cuba, para ser jurado num festival qualquer; lá aprendeu algo do assunto. E fuma o charuto como se isso fosse uma restrição ao governo Fernando Henrique.

Entre baforadas, pontifica sobre a Queda do Muro. Mas se você perguntar se ele é de direita, ele vai protestar. É de esquerda, claro. Mas, diz ele, a esquerda nunca foi “contra o prazer”. E entre os prazeres há o do charuto; um prazer refinado, de especialista. Uma concessão ideológica, que admite a leitura de revistas sobre o tema, muita conversa sobre as virtudes e os defeitos de um Doble Corona, de Panatella etc.

Outro caminho para o charuto é o de quem, ao contrário, não será nunca um tucano, mas pensará como um bom e velho “dinossauro” da esquerda. Mas também aí ocorreu uma transformação. Claro que nosso amigo mudou de vida, não pode mais viver comendo o PF do boteco, nem morar em quitinete. Mas ele continua de esquerda! Afinal, o Che também fumava charutos.

Agora, nosso personagem se sente burguês e maldito; maldito porque se aburguesou e maldito porque continua o mesmo “esquizofrênico” de antes; é exigente enquanto consumidor e ao mesmo tempo solidário com as massas. O charuto é uma nostalgia da revolução latino-americana, processo do qual, felizmente, os tempos o eximiram de participar.

Claro, claro... meu amigo... não somos tão radicais assim... percebo os prazeres de um bom charuto e de um terno bem cortado... não há uma frase de Brecht a esse respeito? Ah, o bem-estar de um charuto! A utopia de um charuto! Dizem que um Cohiba ou um Monte Cristo são inigualáveis depois de um belo jantar. Ao final de um banquete. No pós-licor. Em resumo, é isso: o charuto, hoje, é o símbolo do pós-qualquer coisa em que vivemos.

Marcelo Coelho é jornalista