A experiência da Unidade Popular, ocorrida no início dos anos 1970 no Chile, suscitou, no campo das esquerdas, inúmeras análises posteriores ao período. Os dilemas e ensinamentos sobre uma experiência tão particular e nova ainda estimula importantes reflexões para o presente. Principalmente para a atual conjuntura brasileira, que apresenta profundos retrocessos às conquistas da classe trabalhadora e distancia cada vez mais a utopia de grandes transformações. No entanto, revisitar um processo de intensas mobilizações e mudanças permite compartilhar experiências históricas que podem contribuir para as lutas políticas e sociais na atualidade.
Nos anos 1970, enquanto a maior parte da esquerda latino-americana defendia a via armada como estratégia para a revolução, inspirada principalmente na Revolução Cubana, no Chile a experiência da Unidad Popular1 foi marcada pela sua originalidade e ineditismo. A ideia de uma transição pacífica, sem o uso das armas, e se valendo dos espaços institucionais, representou um grande desafio para a esquerda chilena. De um lado, o caráter original da UP exigia um debate aprofundado sobre as formulações políticas e as concepções táticas e estratégicas a respeito dos caminhos a serem seguidos para a realização das transformações e, de outro, ações rápidas por parte do governo da UP e de seus apoiadores em um momento no qual uma zona de intensos conflitos se configurava. No calor dos acontecimentos era imprescindível examinar a fundo o processo, mas também agir e dar respostas aos desafios que a conjuntura apresentava.
Quando o socialista Salvador Allende foi eleito presidente do Chile, em 1970, diversas expectativas foram geradas na classe trabalhadora identificada com as propostas do novo governo. O projeto político proposto pelo governo da Unidade Popular, conhecido como “via chilena ao socialismo”, era caracterizado por profundas mudanças econômicas, políticas e sociais sem o rompimento com a institucionalidade. A proposta incluía dentre os eixos principais a constituição da chamada Área de Propriedade Social (APS), criada através da nacionalização de setores estratégicos da economia e a conformação de um sistema de participação popular que transferisse o poder político das mãos da classe dominante para a classe trabalhadora e para os setores progressistas da classe média. Para isso, seria fundamental a conquista dos poderes Legislativo e Executivo com o fim de eliminar os entraves às transformações defendidas pela UP. E esse foi um dos temas que permearam os debates no interior da coalizão, pois Allende não possuía maioria parlamentar.
Os minérios (cobre, ferro, nitrato) eram as principais riquezas do país, mas sua exploração estava nas mãos principalmente de empresas norte-americanas. No governo anterior, do democrata-cristão Eduardo Frei, havia uma proposta de chilenização do cobre, mas, por inúmeros motivos, não houve avanço. A nacionalização seria fundamental para diminuir a dependência ao capital estrangeiro e enfraquecer o poder das oligarquias nacionais. Nesse sentido, o primeiro ano da UP foi marcado pela ofensiva política da esquerda. Já nos primeiros meses do governo de Allende, um conjunto substancial de mudanças foi feito, como, por exemplo, a nacionalização de grandes monopólios industriais e bancários e a reforma agrária. Soma-se a isso a vitória da UP nas eleições municipais de 1971 que representou a aprovação do governo. No mesmo ano um acordo foi criado entre o governo e a Central Única de Trabajadores (CUT), que versou sobre as formas de participação de trabalhadores na APS. O acordo abriu caminho para as discussões relativas à gestão participativa nas empresas e contribuiu para o surgimento de novas formas de organização da classe trabalhadora no sistema produtivo.
O clima de avanços que marcou o primeiro ano do governo sofreu um revés nos meses seguintes, e o cenário de instabilidade se intensificou. A crise instaurada foi marcada por altos índices inflacionários, tanto em decorrência do aumento do poder aquisitivo de trabalhadores como do desabastecimento resultante do boicote ao governo. As ações de setores da direita com intuito de deslegitimar o governo foram realizadas desde os primeiros dias da UP. Entre elas: o assassinato do general Rene Schneider, cometido pelo grupo fascista Patria y Libertad com apoio norte-americano, a Marcha das Panelas Vazias, organizada por mulheres das classes mais altas em protesto ao suposto desabastecimento que a elite mesmo havia criado, ações de boicote à produção e a criação do mercado paralelo, o embargo econômico dos EUA e as ações de desvalorização dos minérios no mercado internacional, a destituição de vários ministros do governo Allende, uma greve de caminhoneiros que ganhou adesão de setores patronais, o intento de golpe conhecido como Tanquetazo, até chegar no golpe militar que derrubou o governo da UP e implantou uma brutal ditadura no país que durou quase vinte anos.
Além das ações por parte da oposição, a esquerda chilena apresentava divergências que foram se aprofundando no decorrer do processo. Na historiografia sobre o tema, as principais diferenças foram organizadas em dois polos. Um deles, denominado de polo gradualista, que defendia a necessidade de uma aliança com setores da burguesia “progressista”, sendo o governo da UP uma primeira etapa da revolução chilena que deveria apresentar-se como antioligárquica, antimperialista e antimonopolista. Este polo estava representado principalmente pelo Partido Comunista, por um setor do Partido Socialista ligado a Allende e por uma fração do Movimiento de Acción Popular Unificado (MAPU), cuja insígnia era “consolidar para avanzar”. De outro lado, o polo rupturista defendia o aprofundamento das mudanças realizadas pelo governo, com base no fortalecimento do poder popular e sem uma aliança com os setores médios da Democracia Cristã (DC). Entre eles estavam os militantes de uma ala do Partido Socialista e do MAPU, a Izquierda Cristiana (IC) e o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR), que apesar de não fazer parte da coalizão defendia um apoio crítico ao governo, estavam representados pela insígnia “avanzarsintranzar”.
As divergências foram se aprofundando com o chamado Paro de Octubre de 1972, uma greve de proprietários de caminhões absorvida por setores patronais que agravou ainda mais a crise no país. A partir do paro patronal houve um processo de intensificação da polarização entre partidários e não partidários do governo e também um aprofundamento das divergências entre representantes dos partidos e movimentos que integravam a própria UP.
Com o paro de outubro e as ações de boicote à produção, o governo junto à CUT convocou trabalhadoras e trabalhadores para atuarem contra os intentos da direita de desestabilizar o país e como forma de garantir a produção, distribuição e abastecimento da população. Vários organismos de base atuaram em defesa do governo, entre eles as juntas de abastecimiento e precios (JAPs), os comandos comunales (uma espécie de coordenadora das demandas dos trabalhadores), as juntas de vecinos. Neste período, para enfrentar o paro patronal, os trabalhadores formaram os chamados cordones industriales2, que foram ocupações de fábricas organizadas territorialmente e que tiveram o papel de manter a produção frente ao boicote realizado por empresários e pressionar o governo a avançar nas mudanças. Os cordones aglutinavam empresas nacionalizadas, aquelas que estavam em processo de nacionalização e empresas ocupadas, cujos trabalhadores exigiam a sua nacionalização tendo em vista as ações de boicote à produção pelos seus donos. O setor gradualista condenava as ocupações de fábricas para além daquelas aprovadas pelo governo alegando que a radicalização do processo minaria a possibilidade de um apoio de setores progressistas vinculados ao empresariado. Já o polo rupturista defendia as ocupações como forma de avançar nas transformações propostas e como expressão real do chamado “poder popular”. As ocupações de fábricas e a formação dos cordones transgrediram o programa político da UP, cujas demandas não coincidiram com os ritmos das mudanças propostos pelo governo. Allende, após o paro de outubro, chegou a formar um gabinete integrado também por militares como forma de buscar uma saída para a crise instaurada e foi fortemente criticado por parte da esquerda chilena.
O clima de alerta que caracterizou os meses seguintes ao paro até culminar no golpe militar de 1973 foi acompanhado por uma intensificação das mobilizações da esquerda e de seus apoiadores, mas também de intentos para destituir o governo Allende. A situação quase insustentável, agravada por uma tentativa de golpe por parte da direita e com apoio norte-americano, conhecida como Tanquetazo, fez com que os trabalhadores dos cordones enviassem uma carta ao presidente Allende alertando sobre a iminência de uma nova tentativa de golpe e a urgência em se preparar para enfrentá-lo. A carta foi enviada seis dias antes do “setembro chileno”, que instaurou uma ditadura no país e acabou com o Estado de direito, reprimindo fortemente os movimentos populares e marcando profundamente sua história. O processo durou mais de quinze anos e foi marcado pelo autoritarismo e as violações de direitos humanos que deixaram milhares de mortos e desaparecidos, cujos métodos mais brutais de tortura foram usados como forma de impedir qualquer oposição ao regime.
Os anos da ditadura chilena marcaram um período de aprofundamento das desigualdades sociais com a implantação e desenvolvimento das políticas neoliberais no país. Além disso, buscou-se desmoralizar e apagar a experiência da UP, caracterizando-a como um período de desordem, violência, marcado pelo desabastecimento, cujo papel do regime militar seria de “reconstrução da pátria”. Porém a resistência se deu de várias formas, desde mobilizações em oposição à ditadura até a formação de frentes armadas que lutaram pelo seu fim.
A experiência chilena da UP ao se valer dos marcos constitucionais para promover mudanças profundas na sociedade ampliou e aprofundou também a própria democracia, mas seus esforços foram insuficientes para impedir as ações opositoras que culminou no golpe de 1973. Seu grande desafio era realizar mudanças tão profundas e estruturais que colocavam em xeque o poder das oligarquias e os interesses do capital estrangeiro, através do sistema eleitoral e de respeito à institucionalidade.
Como apontou o historiador chileno Mario Garcés, foi no governo de Allende que o país vivenciou o maior período de mobilização social e popular e de maiores transformações nas relações de poder na sua história3. Nesse sentido, o golpe de Estado de 1973 foi a maneira de barrar a “revolução popular” que vinha se avizinhando e de impedir o avanço nas transformações que estavam sendo realizadas no país.
Já no período pós-ditadura, a transição democrática veio acompanhada dos traumas deixados pelas violações e abusos cometidos na ditadura e pelos esforços de reconciliação nacional. Como apontou Nelly Richard, os governos da transição foram marcados pelo deslocamento do foco central nas demandas por verdade e justiça, para a construção pactuada de um acordo nacional que privilegiou as narrativas apaziguadoras sobre o passado ditatorial4. De outro lado, as narrativas épicas militantes buscaram ressaltar as experiências de luta na UP e de resistência à ditadura. As memórias e as narrativas históricas sobre o período, todavia, seguem em disputa, e compreender essas disputas possibilita entender os interesses em jogo no presente. Recentemente, no país, a direita voltou ao poder, depois do último governo em 2010, com propostas que envolvem, por exemplo, o endurecimento da lei antiterror, que atinge diretamente os movimentos sociais no país (principalmente indígena e estudantil).
As análises posteriores ao processo foram feitas ao longo dos anos e incluíram coletâneas de textos, livros e artigos publicados sobre o período, com reflexões de teóricos, militantes e intelectuais. Grande parte delas foram também formuladas por pessoas que participaram da experiência da UP, portanto integram memórias individuais e coletivas sobre o processo. Os estudos apresentaram reflexões de diversos aspectos da experiência da UP e incluíram também críticas e autocríticas. Algumas delas apontaram que os debates e teorias propostos na época estavam mais centrados nas discussões estratégicas, táticas e programáticas que no modelo pelo qual lutavam. Incluíram ainda um componente fundamental da derrota da UP: as divisões internas e as divergências sobre os ritmos e os caminhos que deveria seguir a “revolução chilena”. Outras análises destacaram uma preocupação do governo da UP centrada mais na conjuntura do que nos limites do próprio projeto político. Nesse sentido, salientaram que era necessário elaborar mais profundamente debates sobre como realizar a transição ao socialismo, através de mudanças profundas na sociedade, que colocaram em cheque a produção capitalista, seguindo os marcos constitucionais.
Há uma vasta bibliografia sobre a Unidade Popular com diversas análises sobre as experiências que compuseram o período, como acima citado. Neste artigo pretendi abordar alguns dos seus aspectos principais e apontar algumas reflexões que foram feitas sobre um período no qual as classes menos favorecidas ousaram ser protagonistas de sua própria história. Os estudos incluem, além das análises e formulações teóricas, as memórias daqueles que participaram diretamente do processo. As reflexões e rememorações sobre o passado contribuem para que os acontecimentos não caiam no esquecimento, muitas vezes forçado, e possibilitam que, no presente, as pessoas possam ir formando seus próprios juízos sobre os processos históricos. É uma forma ainda de compartilhar experiências entre as gerações. Os conflitos e controvérsias que envolvem os esforços de pensar o passado permitem que aspectos daquilo que é estudado sejam reanalisados e debatidos. Nesse sentido, as memórias sobre o passado, incorporadas pela história, podem funcionar como espaços de lutas políticas no presente.
Os estudos e debates sobre o tema não estão esgotados, pelo contrário, o distanciamento no tempo pode trazer novas reflexões sobre o passado, e novas análises estão sendo produzidas, mostrando a riqueza do processo histórico que se destacou por sua originalidade. Não havia um paradigma e um modelo a ser seguido, visto que a UP apresentou novos caminhos teóricos e práticos. Entre erros e acertos, buscou construir uma sociedade menos desigual e esse é um dos mais importantes legados do período. As experiências de lutas e mobilizações enfrentadas no período contribuem fortemente para pensarmos projetos futuros que buscam uma sociedade mais justa e igualitária.
Bibliografia
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Aline Maciel é historiadora e doutoranda no programa de História Social – USP