Guardadas as proporções, o resultado das eleições no México (o segundo maior país da América Latina) em 1º de julho de 2018 pode se assemelhar ao impacto da eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva no Brasil em 2002. Embora o pleito mexicano tenha ocorrido numa conjuntura de crise mundial e na contramão da ascensão conservadora no continente, o partido Movimento de Regeneração Nacional (Morena) do novo presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, também conhecido como AMLO, deverá obter a maioria no Senado e na Câmara de Deputados, além do apoio de alguns dos novos governadores e prefeitos igualmente eleitos no dia 1o, o que lhe dará uma governabilidade que o presidente Lula somente conseguiu durante seus dois mandatos por meio de alianças políticas ao centro e à direita.
O mérito da esquerda mexicana ao alcançar o governo nacional, agora por intermédio do Morena e de AMLO, foi a persistência em enfrentar um sistema arraigado no país desde o fim da Revolução Mexicana na década de 1920 e que se deteriorou a ponto de provocar várias fraudes nas eleições presidenciais das últimas décadas para manter a hegemonia política da direita e do neoliberalismo, somado à corrupção institucional, insegurança da população e violência política absolutamente desmesuradas. López Obrador era o único candidato que podia e que soube dialogar com a população quanto à necessidade de enfrentar esses três problemas centrais, pois a responsabilidade pela sua exacerbação cabia aos partidos de origem dos outros dois candidatos principais, o Partido da Ação Nacional (PAN) e o Partido da Revolução Institucional (PRI), respectivamente Ricardo Anaya e José Antonio Meade, este último também apoiado pelo atual e desgastado presidente Enrique Peña Nieto, do PRI.
O México possui uma estrutura econômica, social e política muito particular na América Latina, originária dos desdobramentos da Revolução Mexicana iniciada em 1910 e cujos efeitos de uma importante disputa de classes somente se consolidaram ao longo das décadas de 1920 e 1930, particularmente durante o governo do general Lázaro Cárdenas (1934-1940). Ele promoveu o desenvolvimento nacional por meio da estatização do petróleo e implementação de políticas industriais, bem como da institucionalização da reforma agrária e do controle do Estado sobre as organizações sociais, sindicatos e organizações camponesas incluídas, por meio do PRI que, por sua vez, dirigia o governo. O corporativismo que conhecemos da Argentina de Perón, ou do Brasil de Getúlio Vargas, por mais que seguisse princípios e métodos semelhantes aos do México no tocante ao controle da sociedade, nunca alcançou a profundidade deste. O único partido que tentava se opor ao PRI era o PAN, que tem origem no grande latifúndio e na Igreja Católica, pois a influência desta foi reduzida diante da Revolução e da laicidade imposta pelo PRI no governo.
Assim, o PRI governou o México ininterruptamente por mais de 70 anos num sistema de “ditadura perfeita”, pois formalmente o regime político mexicano é democrático desde o fim da Revolução, porém impedindo a qualquer preço o avanço da oposição, tanto à direita quanto à esquerda, neste período. Ao mesmo tempo em que movimentos armados de esquerda eram discretamente reprimidos durante a Guerra Fria, inclusive por meio de assassinatos e desaparições, não havia denúncias nacionais e internacionais importantes sobre violações de direitos humanos no México, e os diferentes governos mexicanos na época não aderiram ao bloqueio contra Cuba, além de o país acolher exilados de esquerda de toda a América Latina.
Entretanto, essa combinação de autocracia com nacional desenvolvimentismo e progressismo na política externa esgotou-se com a crise fiscal do final dos anos 1970 e a adoção de medidas neoliberais para conter o déficit público, que aumentaram significativamente a pobreza e a concentração de renda no país. Neste momento começaram a se destacar os questionamentos de correntes democráticas e progressistas no interior do PRI e estes, em aliança com outros pequenos partidos de esquerda no país, lançaram a candidatura dissidente de Cuauhtémoc Cárdenas, filho do ex-presidente Lázaro Cárdenas, em 1988, para enfrentar o candidato oficial do partido, Salinas de Gortari, que venceu o pleito por meio de fraude eleitoral. No ano seguinte, os grupos dissidentes fundaram o Partido da Revolução Democrática (PRD).
Desde então, o PRD tem eleito governadores, prefeitos, deputados e senadores. Governa o Distrito Federal (Cidade do México) desde a instituição de eleição direta para governador e deputados em 1997. Nessa primeira eleição para governador, o escolhido foi Cuauhtémoc Cárdenas, do PRD, e na sequência o próprio López Obrador (2000-2005). Agora foi eleita uma governadora pelo Morena, Claudia Scheinbaum.
Na eleição presidencial de 2000, houve debates no interior do PRD sobre a hipótese de apoiar o candidato do PAN, Vicente Fox, sob o argumento de que o adversário histórico a ser derrotado era o PRI, mas o partido lançou Cárdenas novamente à presidência e ele chegou em terceiro lugar com 17% dos votos. Fox foi o vitorioso com 48%, derrotando o candidato do PRI, Francisco Ochoa, por uma diferença de dois milhões de votos. A aliança eleitoral do PRD com o PAN somente ocorreu dezoito anos depois com a atual candidatura de Ricardo Anaya.
Na eleição seguinte, em 2006, o candidato do PRD foi AMLO e a fraude cometida deu a vitória à Felipe Calderón do PAN por uma diferença de aproximadamente 200.000 votos. Apesar da pressão e denúncias da manipulação das atas eleitorais, inclusive com militantes do PRD ocupando a Praça do Zócalo na capital por vários meses, a justiça mexicana manteve o resultado. Em 2012, AMLO tentou novamente, mas o PRI voltou ao governo com a eleição de Peña Nieto.
O PRD se constituiu a partir de diferentes correntes internas desde sua fundação que, pelo menos até os primeiros anos do novo século, mantiveram a unidade. A derrota de AMLO em 2006, a eleição de novas autoridades e dirigentes partidários, bem como as divergências sobre a conveniência ou não do prolongado protesto contra a fraude de 2006, começaram a provocar dissensos internos. Em 2014, diversos dirigentes deixaram o PRD, entre eles AMLO e o governador do Distrito Federal, Marcelo Ebrard, que o substituiu, e fundaram o Morena. Cárdenas também deixou o PRD, mas não ingressou nesse partido.
O desafio que está posto para a esquerda mexicana nesse momento não é pequeno, desde desmontar o legado neoliberal das reformas e privatizações até a implementação de uma política de desenvolvimento que recupere a economia do país, gere empregos, restaure a segurança pública e devolva aos mexicanos o direito de não emigrar. No entanto, a posse do novo presidente somente ocorrerá daqui a cinco meses, em 1º de dezembro, o que justifica a cautela com que López Obrador tem se pronunciado quanto à política que empreenderá, embora tenha deixado claro que o Estado será um elemento indutor do desenvolvimento e que governará para todos, mas com preferência para os mais humildes e esquecidos, em particular os povos indígenas. O que para o segundo maior país da América Latina e na atual conjuntura mundial de crise não é pouca coisa.
Duas outras questões importantes referem-se às possibilidades de construir a unidade entre Morena e PRD e se o novo governo, além de enfrentar os graves problemas que afligem o povo mexicano e o assédio de seu grande vizinho do norte, também estará disposto a contribuir para a integração latino-americana, particularmente da região centro-americana.
Kjeld Jakobsen é consultor na área de Cooperação e Relações Internacionais