Para o economista Ricardo Abramovay, é urgente que a sociedade debata os significados e os objetivos do crescimento econômico
Para o economista Ricardo Abramovay, é urgente que a sociedade debata os significados e os objetivos do crescimento econômico
Mais do que repensar as bases tecnológicas da economia contemporânea, é preciso repactuar a forma como as sociedades contemporâneas usam as bases energéticas, materiais e bióticas das quais depende sua reprodução. Segundo Ricardo Abramovay, essa repactuação passa por um debate social que apenas se inicia, e para o qual talvez a Rio+20 possa dar uma contribuição sobre os significados e os objetivos do crescimento econômico
Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, concedeu esta entrevista à Teoria e Debate em um intervalo na agenda carregada de palestras, exposições e conferências, a poucos dias da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20. Aqui como em seu livro Muito Além da Economia Verde, o economista explica por que mais importante que a governança da economia verde, eixo da Rio+20, é a governança dos processos que contribuirão para a reduzir a desigualdade e aumentar as possibilidades do desenvolvimento sustentável.
Diante do atual modelo econômico que é um verdadeiro pacto de suicídio global, na definição de Ban-Ki Moon, Abramovay é otimista com a possibilidade de avanços no debate socioambiental envolvendo governos, empresas e movimentos.
Qual sua avaliação sobre o cenário em que ocorre a Rio+20, com a proposta de tratar a economia verde e governança do desenvolvimento sustentável?
A Rio+20 ocorre em um momento de declínio dos sistemas internacionais de governança do desenvolvimento sustentável de forma generalizada. Isso se exprime por alguns fatos. Primeiro, pela incapacidade de as conferências climáticas chegarem a alguma conclusão de efeito prático. Depois de dezessete conferências climáticas, a economia global continua aumentando a emissão de gases de efeito estufa e os progressos, tímidos mas reais, que houve durante os primeiros anos da década passada foram revertidos durante a recuperação da crise econômica. Em 2000, os cientistas reunidos no Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas afirmaram que era preciso ter como horizonte a redução de 2% das emissões para cada unidade de valor (dólar, euro etc.) lançada na economia mundial. Se houvesse continuidade, seria suficiente para se chegar a 2050 elevando a temperatura em apenas 2 graus, e com perspectiva de estabilizar neles.
No entanto, de 2000 a 2008, a redução foi de 0,7%, muito menos do que seria preciso por unidade de valor. Além disso, a economia cresceu, o que aumenta a pressão sobre os recursos. Em 2008, a redução já não deveria ser de 2%, mas de 3,4%. Houve a crise, a emissão diminuiu muito. Só que a partir de 2010, em vez de manter patamar, a economia se recuperou aumentando a emissão em termos absolutos. Cada dólar foi produzido com mais emissões. Isso fez com que a Price Waterhouse, uma das maiores consultorias globais, caracterizasse a retomada da crise de 2008-2009 como dirty recovery, retomada suja.
E quem foi o responsável por essa sujeira? A Índia e a China, de um lado, e os Estados Unidos, do outro. Os dois verões americanos foram muito quentes, então as pessoas usaram mais ar-condicionado, solicitando o sistema elétrico. Ou seja, há mais gases de efeito estufa, em parte, para satisfazer necessidades de países em desenvolvimento como China e Índia, mas em grande parte para os carrões americanos que continuam sendo produzidos, as SUVs, os light trucks americanos etc.
Menciono isso para mostrar a distância entre as negociações internacionais e o que acontece no funcionamento real da vida econômica. Há certa impermeabilidade da vida econômica para as reais necessidades de gestão do ecossistema. Se voltarmos à questão da biodiversidade, apesar da criação de parques, reservas e áreas protegidas em alguns países em desenvolvimento – particularmente no Brasil, mas um pouco na Indonésia também –, de maneira geral a erosão da biodiversidade não foi em nada atenuada. A constatação é que o ritmo de extinção de espécies continua tão acelerado como antes da Convenção da Biodiversidade, do Protocolo de Nagoya etc.
E como isso influencia a Rio+20?
A Rio+20 ocorre em um momento em que os Estados Unidos não podem dar atenção a esse tema em função da sua situação eleitoral, além do que, nos últimos anos, o governo Obama acentuou a opção norte-americana de segurança energética baseada no fortalecimento da matriz fóssil de sua base produtiva. As piores formas de energia fóssil são as areias asfálticas do Canadá, que é o xisto betuminoso, ineficiente e altamente emissor. E agora, por meio da Shell, perfuram e buscam poços de petróleo no Alasca. Aliás, o relatório das Nações Unidas, Global Environment Outlook, mostra que os Estados Unidos estão em retrocesso com relação ao tema das mudanças climáticas.
Do ponto de vista de governança global, a Rio+20 ocorre em um momento extremamente delicado de perda de prestígio e de ineficiência dos mecanismos existentes e de ausência de alternativas para gerir a pressão que a economia exerce sobre os ecossistemas de maneira minimamente racional.
O que abrange essa governança global?
Governança não é engenharia administrativa, supõe que haja forças sociais, uma coalizão social capaz de se contrapor à coalizão social dominante. Essa última, apesar de toda a informação existente a respeito dos impactos da vida econômica sobre os ecossistemas, no plano da economia mundial fortalece as piores práticas na relação entre sociedade e natureza, entre economia e ecossistema. É formada por pelo menos três segmentos fundamentais: a indústria automobilística, que se fosse um país seria a sexta economia do mundo; a indústria petrolífera, que recebe subsídios seis vezes maiores que os destinados à energia de fósseis; e a indústria agroalimentar, que faz o uso mais predatório dos recursos existentes e é responsável pelas mais graves doenças contemporâneas, aquelas relativas à obesidade.
Esses três setores constituem uma espécie de força no sentido de perenizar a maneira como se usam os recursos, as políticas macroeconômicas voltadas a esses recursos e os comportamentos dos atores privados e públicos, diante desses recursos. No conjunto, um fantástico obstáculo à transição para aquilo que precisamos, uma economia de baixo carbono, com uso racional dos recursos, voltada para as necessidades das pessoas etc. Aí vem a economia verde.
Qual o significado de economia verde? Há certa resistência de muitos ambientalistas à economia verde.
Essa resistência é compreensível, mas há um certo sectarismo também. Como é um termo relativamente novo, as definições são as mais variadas. Por exemplo, para José Eli da Veiga, a definição inicial de economia verde é melhoria do bem-estar, redução das desigualdades, sem aumento da pegada ecológica. É uma boa síntese.
Fundamentalmente, engloba três dimensões. A primeira é o processo de transição das energias fósseis para as renováveis. Não é possível conceber que a economia deixe de ser marrom para ser verde se continuar dependente de petróleo, carvão e gás. Então, intuitivamente, é a mudança na base energética da economia contemporânea. Por mais que as energias renováveis estejam se desenvolvendo, ainda é pouco e o peso das fósseis é tão dominante que, mesmo que esse crescimento seja imenso, o século 21 ainda será dos combustíveis fósseis.
As mais promissoras são a solar, a eólica, a geotérmica e os biocombustíveis modernos, não esterco, lenha e carvão, com o que se cozinha no interior da Índia e da China. Isso é energia renovável, mas é a coisa mais atrasada que existe, provoca doença. O que há de energia renovável moderna é menos de 1% da matriz energética mundial. E o pior é que cada vez mais se investe no que já existe na economia para amortizar o que se investiu, em postos de gasolina, gasodutos, oleodutos, poços de petróleo etc. Mais tempo se persistirá no que está sendo feito, e isso dificulta a emergência das novas formas de energia.
Então, já que ainda teremos de contar com fontes fósseis, a segunda dimensão é a ecoeficiência – melhorar o uso dos materiais, da energia, dos recursos bióticos nos quais a economia, a oferta de bens e serviços se apoiam.
E a terceira dimensão é a transição da economia da destruição da natureza para a economia do conhecimento da natureza. Hoje os principais biomas do mundo, sobretudo nos países tropicais, são usados sob a lógica da destruição, a Floresta Amazônica, a caatinga, o cerrado, as savanas africanas... Isso se exprime no fato de que a Amazônia é hidroeletricidade, commodities agrícolas, commodities de minerais. É preciso transitar disso para uma economia de utilização sustentável dos produtos e dos serviços da floresta em pé. Usar os recursos com maior eficiência é a ideia central da economia verde.
Então, por que essa ideia desperta oposição?
Acho que por duas razões. Primeiro porque sinaliza uma solução: é possível que o avanço científico e o progresso tecnológico sejam capazes de contrabalançar os impactos negativos que o funcionamento da economia tem sobre os ecossistemas. Essa capacidade é verdadeira em parte. Por exemplo, em 2012, cada dólar na economia mundial foi produzido com base em emissões de gases de efeito estufa 21% menores que em 1992. Trata-se de um avanço. A eficiência no uso dos materiais foi maior, só que as emissões aumentaram globalmente 39% e o uso de materiais, 41%. A economia mundial cresceu tanto que contrabalançou o ganho de eficiência.
O problema da economia verde não é o esforço de produzir com maior eficiência – não fosse isso nossa situação estaria muito pior –, mas sim a crença de que esse esforço substitui a urgente necessidade de a sociedade pensar o significado, o propósito, o alcance e os objetivos do crescimento econômico. Por mais que as mudanças técnicas possibilitem menor uso de energia e de materiais, menores emissões, os números mostram como é ilusório imaginar que o progresso técnico será capaz de contrabalançar os impactos do crescimento econômico acelerado sobre os ecossistemas. O grande paradoxo que procuro discutir no livro Muito Além da Economia Verde está nessa equação. Estamos muito aquém da economia verde. Nossa economia é muito mais suja do que poderia ser. Basta sair na rua e ver a poluição, a sujeira dos rios etc.
É preciso muito mais do que repensar as bases tecnológicas da economia contemporânea. É preciso repactuar a própria maneira como as sociedades usam as bases energéticas, materiais e bióticas das quais depende sua reprodução. E isso passa por um debate social que apenas se inicia, e para o qual talvez a Rio+20 possa dar uma contribuição sobre os significados e os objetivos do próprio crescimento econômico.
Pela primeira vez temos questões que serão cruciais não apenas para um círculo minoritário de alternativos, mas para importantes segmentos do meanstream tanto do pensamento econômico como das empresas. Crescer para que e para quem? Para que se está produzindo tanto carro, tanta comida?
Essa questão se colocou para sociedade há trinta anos, quando, por exemplo, no Brasil o IPI do cigarro correspondia à maior parte da arrecadação. Hoje ninguém diria que devemos continuar produzindo cigarro porque promove tanta arrecadação que vale a pena. Então, por que raciocinar desse modo com relação a carros?
A economia verde não é irrelevante. É um equívoco subestimar a importância da inovação tecnológica nas mudanças pelas quais teremos de passar. Mas tem de ser acompanhada de limites.
No Brasil, o sistema de inovação ainda é do século 20, voltado para a produtividade do capital e do trabalho. Precisamos de um sistema de inovação voltado para a sustentabilidade – reduzir o uso de materiais, de energia, de recursos bióticos, fundamentalmente. Mas precisamos de limites, porque a inovação por si só não promove a compatibilidade entre o sistema econômico e a capacidade de os ecossistemas continuarem nos prestando serviços.
E como fazer isso?
Ninguém sabe. O que sabemos fazer tem um parâmetro muito claro e relativamente simples, o Produto Interno Bruto. O crescimento do PIB se exprime também do ponto de vista das decisões privadas, na sua lucratividade. São desconhecidos ou pouco conhecidos, porém, os parâmetros para uma lógica alternativa em que o sistema econômico se paute pela oferta de bens e serviços que correspondam a ganhos reais de bem-estar para as pessoas, dentro dos limites dos ecossistemas.
Começa a haver um esforço para que sejam revelados os custos ocultos da maior parte do que o sistema econômico oferece à sociedade, mas ainda é segmentado. Houve um momento em que as pessoas exaltavam o veículo individual movido a etanol pelo fato de ser menos emissor de gás de efeito estufa que os a gasolina. Só que era ineficiente, uma forma destrutiva e inútil de tentar garantir mobilidade. Como medir o que cada carro novo na rua está reduzindo de bem-estar pela destruição do tecido urbano? As empresas ainda não têm instrumentos para comparar o valor intangível dos investimentos que podem fazer em reais utilidades socioambientalmente construtivas, mesmo que em alguns casos façam. Sobretudo se têm de comparar esses investimentos com aqueles que geram recursos de caixa que vão beneficiar os acionistas imediatamente.
Mas há diagnósticos de que o sistema econômico mundial já ultrapassa algumas barreiras ecossistêmicas...
Os sinais da exaustão dos ecossistemas diante da expansão do sistema econômico já estão se exprimindo nos preços. Por exemplo, o século 20 se caracterizou por um declínio durável dos preços das commodities agrícolas e minerais. E os primeiros anos do século 21 se caracterizam pela alta e imensa volatilidade dos preços dessas commodities, muitas vezes decorrente do fato de que a exploração desses recursos está cada vez mais cara.
Há quem diga que a Idade da Pedra não acabou por falta de pedra e a idade do petróleo não vai acabar por falta de petróleo. Mas, se fisicamente não está acabando, o custo de sua exploração, não podemos esquecer, é cada vez mais alto.
Como é que você vê o Brasil no contexto da Rio+20?
O Brasil tem dois trunfos importantes. Na Amazônia, o desmatamento caiu de 24 mil km2 em 2004 para menos de 7 mil km2, atualmente. Ainda é um escândalo, em pleno século 21, que se desmate tanto, mas a redução é muito forte e foi resultado de uma política governamental, de repressão. O segundo trunfo é sua matriz energética muito mais limpa que a de qualquer outro país de sua importância.
Mas o Brasil tem problemas muito sérios, tem sua vida econômica profundamente vinculada à exportação de produtos agrícolas e minerais, ou seja, de recursos ecossistêmicos básicos. A América Latina e a África são os dois continentes cuja biocapacidade ainda supera a pegada ecológica. Nesses lugares, o conjunto de recursos é superior ao que a humanidade extrai, e exatamente por isso as forças destrutivas se instalam e oferecem ao sistema econômico mundial as bases materiais da sua expansão. Isso é o que recente documento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) chamou de reprimarização da economia. Os setores primários ganham maior importância que a economia da informação, do conhecimento, que caracteriza a economia moderna.
Uma das expressões dessa reprimarização é a desindustrialização. E, quando se trata de combatê-la, a atitude do governo brasileiro não poderia estar mais distante de qualquer coisa que se assemelhe a economia verde. Entre as medidas, nenhuma tem relação alguma com economia verde.
Quando a indústria automobilística americana passou o chapéu na Casa Branca, na crise de 2008, houve uma contrapartida de aumento de eficiência dos motores, que deveria ser de 5% ao ano, entre 2008 e 2020, que é considerável.
No caso do Brasil há estímulos sem contrapartidas...
Sem nenhuma contrapartida. Houve a reunião dos 25 líderes industriais com a presidenta Dilma, e o único momento em que se falou em meio ambiente foi quando um dos dirigentes reclamou da lentidão do licenciamento ambiental.
O Brasil tem condições de exercer papel de liderança no sentido de incorporar exigências socioambientais aos critérios que regem o comércio mundial, mas se adapta ao grupo do qual faz parte, o G-77, com mais de 130 países. Deveria batalhar para que o comércio de produtos primários tenha de passar por certificação socioambiental. Qualquer vestígio de poluição, e não apenas o trabalho infantil, o trabalho escravo, deve sofrer punição severa.
Às vezes dá a impressão que voltamos para o tempo em que o Ministério do Meio Ambiente foi criado, que se referia basicamente a florestas e ofertas de energia para suprir a crise do petróleo, mas não à maneira como a economia industrial funcionava. Há progressos. O Brasil é, por exemplo, recordista mundial de reciclagem de alumínio, recicla muito papel. Mas o planejamento econômico brasileiro não é norteado por um uso mais eficiente dos seus recursos ecossistêmicos.
O que significa repensar a economia diante desses desafios políticos e ambientais?
A ideia de que a economia é um sistema autônomo, diante do qual a principal preocupação é fazê-lo girar, porque traz efeitos positivos, mas também tantos males, desperta em um variado conjunto de forças sociais a necessidade de repensar não só como se produz, como se distribui a renda, mas para que e para quem se produz.
Acho que há novidades políticas que abrem alguma brecha diante dessa situação. A primeira é o fato de que está cada vez mais evidente que o uso dos recursos que pertencem às empresas, que os consumidores compram etc., não pode ser considerado questão privada, mas passa cada vez mais a ser uma questão pública.
Nos anos 1970, as ações do Greenpeace eram voltadas para baleia, urso polar; nos anos 1980 e 1990, contra governos e organismos multilaterais; nos anos 2000, as mais impactantes foram voltadas diretamente para empresas.
A novidade é que organizações da sociedade civil passam a ter maior incidência sobre a maneira como são usados os recursos considerados privados. As empresas, os grupos empresariais respondem a uma exigência social de prestação de contas que é igualmente inédita. Quando pensamos no mundo das mercadorias como Marx o conheceu, dentro da fábrica havia um rígido planejamento e uma placa escrita “proibida a entrada salvo para negócios”. Só quem entendia daquilo podia entrar. Hoje não é assim, e cada vez mais as bases materiais, energéticas e os procedimentos das empresas têm de se submeter à exposição pública. Há empresas de consultoria especializadas em gestão de stakeholders. Uma grande mineradora ou siderúrgica que polui rios tem uma assessoria para lidar com a população atingida. Isso é um imenso avanço no modo como os mercados e a vida empresarial se organizam. Claro que predomina de maneira avassaladora ainda o greenwashing, a propaganda enganosa.
O novo é a participação da sociedade civil, a exigência de transparência, de mecanismos de transparência, a transformação das próprias organizações da sociedade civil no sentido de compreender o universo empresarial. Hoje as empresas podem ser consideradas parte dos atores sociais que estão nesse universo de transformações sujeitas a pressões.
Outro elemento importante, a que dedico o quarto capítulo do livro, é o fato de que a sociedade da informação em rede trouxe à tona um conjunto de dispositivos que permitiram que a cooperação social ganhasse uma escala absolutamente inédita mesmo no âmbito de sociedades capitalistas, com a produção de bens e, sobretudo, de serviços dentro de uma lógica que não é mercantil. O Wikipédia, por exemplo, é o sétimo site mais consultado da internet, e totalmente gratuito.
Então, acho que existem dois verdadeiros movimentos sociais exercendo pressão sobre a organização da vida econômica contemporânea que oferecem as bases a partir das quais podemos pensar mudanças de fôlego para o que temos de enfrentar.
Fala-se em mudança de matriz energética, mas existe 1,4 bilhão de pessoas sem energia elétrica no mundo. Fala-se em diminuir o consumo, mas ainda temos mais 2 bilhões de pessoas abaixo da linha de pobreza. Como lidar com essa contradição?
Esse é o tema mais importante da Rio+20. O objetivo fundamental do desenvolvimento sustentável é conseguir em um período muito curto tirar esses bilhões de pessoas da miséria absoluta, atender as sem energia elétrica, 2,5 bilhões sem acesso a saneamento básico, 800 milhões sem água potável, 1 bilhão que passam fome, e ainda há crianças que não vão a escolas por uma série de razões.
É preciso voltar meios, técnicas, dinheiro, inteligência etc. para erradicar a miséria absoluta do mundo, pois os recursos materiais existem. É claro que, se isso for feito, se reduzirá a desigualdade, porque melhora a situação dos que estão na base da pirâmide. Mas é totalmente ilusória a perspectiva de reduzir as desigualdades apenas elevando o padrão de vida dos que se encontram na base da pirâmide sem tocar no padrão de vida dos que se encontram no topo dela.
O combate à pobreza, como está apresentada pelo Rascunho Zero e pelo documento brasileiro apresentado à Rio+20, é bastante justo. Hoje, metade dos gases de efeito estufa são emitidos por 500 milhões de pessoas, de uma população de 7 bilhões. Se não tocar no que fazem essas pessoas, as contas não vão fechar. Uso um exemplo no livro que deixa essa ideia bem clara: a humanidade extrai da terra 60 bilhões de toneladas de quatro materiais, biomassa, combustíveis fósseis, materiais de construção e minérios, anualmente, dados de 2005. Se continuar nesse ritmo, o total anual extraído chegará a 80 bilhões em 2020 e a 100 bilhões em 2030. Cada um de nós que pesa entre 70 e 90 quilos consome, em média, 9 toneladas desses materiais por ano. Só que tem um detalhe: um indiano consome 4 toneladas e um americano, 25. Imaginar que a luta contra a desigualdade consiste em fazer com que o indiano passe a consumir 25 é completamente ilusório, porque não tem material para isso. Achim Steiner expõe essas informações no prefácio do documento do Pnuma e diz que em 2050 a humanidade terá de consumir, em média, 6 toneladas de materiais. Para o indiano que consome 4, haverá aumento de 50%, e para o canadense, o americano, que consome 25, a solução será economia verde, progresso técnico, melhor uso de materiais. Será preciso ter limites.
E que limites e como estabelecê-los? Quais serão as punições para quem ultrapassá-los?
Essas questões estão sendo colocadas de maneira cada vez mais aberta, mas os mecanismos pelos quais vamos conseguir equacioná-las ainda não estão claros. E um dos indícios mais expressivos disso é o fracasso das sucessivas conferências climáticas. Há conhecimento consolidado, consenso, mas uma parte muito significativa do sistema econômico mundial continua oferecendo e usando bens de maneira destrutiva para a espécie humana, para vida social.
Há mecanismos de autojustificação, do tipo “vamos fazer captação de carbono, vamos conseguir compensar isso de alguma forma”, e tem o simples e puro cinismo que caracteriza em grande parte a atitude de vários segmentos industriais, principalmente das indústrias automobilística, petrolífera e agroalimentar. As três mais fortes têm uma atitude muito irresponsável.
Não lhe parece que pelo menos no Brasil, as forças progressistas, que estiveram sempre à frente dos movimentos, estão pouco preparadas para o debate ambiental?
Estão pouco preparadas para o debate social, de maneira geral, para o debate a respeito de mudanças socioambientais, mas não só no Brasil. Na Europa há um drama vivido pela esquerda que não foi equacionado. A ideia-chave que norteou o pensamento de esquerda, mesmo depois que se renunciou à luta armada e ficou nítido que a transformação passava pelo fortalecimento das organizações democráticas, a democracia como valor universal, era estatizar os grandes monopólios – que era o programa da União Popular, na França, em 1981. Assim teríamos nas mãos do Estado a capacidade de investimento público e, no fundo, a capacidade de produzir a maior parte do excedente social, que deixaria de se destinar ao lucro e passaria a responder a reais finalidades sociais. No governo Mitterrand, desde o nascimento de Marx, de certa forma, foi a última tentativa que se viu nessa direção, e nunca mais se falou nesse assunto. Nem o Comandante Marcos, nem o MST... Não há nenhuma força com expressão que preconize que o meio de enfrentar a crise contemporânea é nacionalizar, estatizar os meios de produção e troca.
Só que não foram tiradas as consequências disso. Como colocar a vida econômica da sociedade a serviço das necessidades sociais? Não me parece que a esquerda tem enfrentado de maneira rigorosa, do ponto de vista intelectual, o desafio que temos: como a economia pode se voltar para a satisfação das reais necessidades sociais com respeito aos limites ecossistêmicos no âmbito de uma organização social em que haverá empresas e em que mercados exercem um papel decisivo?
Dizer isso não é se render ao neoliberalismo. É obvio que o Estado tem papel central e temos organizações de economia solidária, organizações de softwares livres que entram no setor privado. Mas o discurso abstratamente anticapitalista tem cada vez menos conteúdo porque não responde às nossas necessidades. De duas uma: ou esse discurso deixa claro que o objetivo consiste em suprimir da vida social organização empresarial e substituí-la por organizações associativas ou estatais, ou o caminho é imprimir à vida econômica de uma sociedade, em que empresas e mercados têm papel essencial, os objetivos civilizatórios, que marcam as forças políticas de esquerda desde meados de século 19. Esses objetivos têm de ser alcançados com base em coalizões e meios completamente diferentes daqueles que foram originalmente pensados. Não é mais a classe operária que vai tomar o poder.
Rose Spina é editora de Teoria e Debate