Empregadas domésticas ainda vivenciam situações de discriminação e desigualdades de direitos trabalhistas e previdenciários
Empregadas domésticas ainda vivenciam situações de discriminação e desigualdades de direitos trabalhistas e previdenciários
A negação histórica da existência de um povo palestino, necessária para afirmar o status da terra como res nullius, como uma terra sem povo destinada ao povo a que fora prometida, mantém-se constante até hoje e é acompanhada da vilificação daqueles que estão “do outro lado”, daqueles menos civilizados, dos radicais, dos amantes da morte
O trabalho doméstico constitui uma oportunidade de ocupação para muitas mulheres ingressarem no mundo do trabalho. Possui um alto valor social, pois contribui para a organização dos espaços domiciliares e, inclusive, para a economia geral, quando as trabalhadoras domésticas cuidam desses espaços residenciais e liberam outras pessoas, principalmente mulheres, para o mercado de trabalho.
Neste artigo o trabalho doméstico é entendido de acordo com a legislação brasileira (Lei nº 5.859/72A Lei do Empregado Doméstico (nº 5.859/72), regulamentada pelo Decreto nº 71.885/73, dispõe sobre a profissão de empregado doméstico e dá outras providências.), que o define como “aquele realizado por pessoa maior de 16 anos que presta serviços de natureza contínua e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas”.
Situar essa atividade nas relações sociais do trabalho tem sido uma consequência da naturalização da divisão sexual do trabalho, que constituiu uma fonte de desigualdades1 em que os papéis sociais culturalmente são definidos entre homem e mulher – o homem responsável pelo provento da família, realizando o trabalho produtivo, e a mulher pelo cuidado dos filhos e do lar, desenvolvendo o trabalho reprodutivo. Por tal razão, o trabalho doméstico é desvalorizado e pouco regulamentado, contraindo déficit de respeito aos direitos trabalhistas e de proteção social.
As condições de vida e de trabalho das trabalhadoras domésticas no Brasil ficaram invisíveis para a sociedade durante muitos anos, o que contribuiu para a reprodução de sua vulnerabilidade social. Essa ocupação é exercida em sua maioria por mulheres: mais de 7 milhões (93% do total)3, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE), de 2009. Destas, aproximadamente, 61% são mulheres negras.
No Brasil, o trabalho doméstico tem sua origem no processo histórico da escravidão. É caracterizado pela precariedade da formalização de trabalho e pelo baixo reconhecimento social. Dados da mesma pesquisa informam que apenas 27% possuem carteira de trabalho assinada e é uma das poucas categorias em que a trabalhadora mora no local de trabalho. Revelam, assim, a baixa formalização a que está submetida a categoria e, consequentemente, a desproteção social em que se encontra no mundo do trabalho se comparada a outras.
Nesse processo é importante considerar que num país como o Brasil, cujas relações sociais são ainda influenciadas pelo passado de escravidão e racismo, os elementos culturais e históricos devem ser levados em consideração quando se tratar de trabalhadoras domésticas, grande parte delas mulheres negras que realizam seu trabalho no lar de pessoas em sua maioria não negras. Não pode ser ignorado, ainda, o fato de que na consciência coletiva brasileira essa profissão guarda relação com o passado escravista.
O trabalho doméstico naquela época cabia fundamentalmente às escravas e, após 124 anos de abolição, as mulheres negras continuam realizando-o em condições precárias e, em ocasiões, parecidas com as então existentes. Pode-se afirmar que, até os dias de hoje, o trabalho doméstico tem se realizado em um contexto de sofrimentos, de sonhos, de conquistas e de muitas lutas.
É fato afirmar que ser negra e mulher na sociedade brasileira é ser objeto da tríplice discriminação de raça, gênero e classe, uma vez que os processos de discriminação advindos do racismo e do sexismo as coloca numa posição de opressão. É preciso, então, ter sempre em mente seus efeitos no tratamento dado a essa categoria.
Esse contexto opressivo constitui o pano de fundo do processo de organização das trabalhadoras domésticas, iniciado na década de 1930, quando foi criada a primeira organização voltada para os interesses dessa categoria, denominada Associação de Trabalhadores Domésticos no Brasil. A principal protagonista desse momento político foi Laudelina de Campos Mello2, uma mulher negra que exerceu desde os 7 anos de idade a atividade de empregada doméstica e mais tarde iniciou a militância junto às organizações de mulheres negras em defesa dos direitos da categoria.
A partir desse passo, intensificou-se a constituição de outras organizações sindicais e sociais de trabalhadoras domésticas em diferentes estados, focadas na procura de melhores condições trabalhistas. Ressalta-se aqui a Associação Profissional Beneficente das Trabalhadoras Domésticas de Campinas (1960), o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas da Região Metropolitana de Recife (1960), o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas de Nova Iguaçu (1988), o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Maranhão (1989), o Sindicato das Trabalhadoras Domésticas do Município do Rio de Janeiro (1996), o Conselho Nacional das Trabalhadoras Domésticas (1985), entre outros.
A criação de organizações levou à unidade da categoria, num processo ascendente que resultou na formação da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (1997), conhecida como Fenatrad, entidade que vem orientando a luta, com um número significativo de sindicatos.
Por entender que a luta das trabalhadoras não se dá isolada dos demais movimentos, a Fenatrad é filiada à Central Única dos Trabalhadores, à Confederação Latino-Americana e do Caribe de Trabalhadoras Domésticas (ConlactrahoO 1º Encontro de Trabalhadoras no Serviço Doméstico (3/88), em Bogotá, na Colômbia, criou a Confederación Latinoamericana y del Caribe de Trabajadoras del Hogar e o Dia Internacional do Serviço Doméstico. No Brasil a data é 27 de abril.) e à Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviços (Contracs).
Essa organização realizou diferentes congressos e eventos, espaços de discussão e reflexão onde se aprimoraram a defesa de teses sobre a ampliação dos direitos trabalhistas e previdenciários e a valorização da profissão, dando assim visibilidade a suas lutas. A categoria realizou a 10ª edição do Congresso Nacional de Trabalhadoras Domésticas em 2011, em Recife.
O processo organizativo das trabalhadoras domésticas sempre esteve sob a influência do contexto histórico do país. Assim, na criação da Constituinte – momento em que os diferentes segmentos, setores sociais e forças políticas antagônicas se articularam e se organizaram para participar da elaboração da Carta Magna –, facilitou o fortalecimento das trabalhadoras domésticas.
A categoria pautou suas principais demandas, que foram discutidas e estruturadas no interior do 5º Congresso Nacional das Trabalhadoras Domésticas, ocorrido em Olinda-PE, em 1985. A principal reivindicação era a garantia de direitos trabalhistas e previdenciários iguais aos das demais categorias de trabalhadores.
A capacidade de mobilização e articulação das trabalhadoras domésticas junto aos movimentos de mulheres, sindicais e organizações não governamentais, e até mesmo no Movimento Pró-Constituinte, resultou na aprovação dos direitos expressos no Artigo 7º, bem como sua integração à Previdência Social, da Constituição Federal de 1988:
Outro aspecto relevante que a Constituição trouxe para as trabalhadoras domésticas foi o direito de se organizarem em sindicato, e não mais em associações, o que imprimiu um caráter mais de classe sindical2 .
Entretanto, esses avanços não foram suficientes para a categoria, pois a ausência de outros direitos garantidos aos demais trabalhadores(as), como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), jornada de trabalho regulamentada, seguro-desemprego, salário-família, entre outros, faz com que vivencie situações de discriminação e desigualdades até o presente momento.
Por esse motivo, a luta pela exclusão do parágrafo único do Artigo 7º da Carta, cuja redação dificulta o acesso da categoria a alguns direitos trabalhistas, é recorrente no interior do movimento das trabalhadoras e de outros atores políticos envolvidos com essa causa.
Foi percorrendo esses caminhos (dos anos 1930 aos dias atuais) que a organização das trabalhadoras domésticas, por meio da Fenatrad, chegou em 2003 reivindicando ao Poder Executivo a ampliação de direitos trabalhistas e previdenciários e também políticas públicas voltadas para as necessidades do grupo, tais como a elevação de escolaridade, a qualificação profissional, a construção de moradias, entre outras.
A atual fase de lutas da categoria ocorre na nova conjuntura político-social criada no Brasil a partir do governo Lula, em 2003, que possibilitou o fortalecimento dos movimentos sociais e as negociações entre entidades representantes da sociedade civil e os órgãos do Poder Executivo, para a construção de políticas públicas que garantam a proteção social de determinados setores em situação de vulnerabilidade. Facilitou-se ainda a participação popular no processo de elaboração, monitoramento, avaliação e controle social dessas políticas.
Nesse contexto, a Fenatrad incrementou sua atuação em vários órgãos governamentais, visando ao estabelecimento de negociações que conduzam à criação de políticas públicas para a categoria, que, como dito acima, não tem acesso a vários direitos trabalhistas importantes, reconhecidos pela Carta Magna de 1988.
A Fenatrad, mostrando seu amadurecimento como movimento social, conseguiu construir importantes alianças com atores governamentais, entidades da sociedade civil e, inclusive, com órgãos internacionais reconhecidos como parceiros da categoria na mesa de negociações com o governo federal. Entre estes, a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), o Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher (Unifem), atualmente denominado ONU-Mulheres, em cujos interesses específicos pode-se encaixar as demandas das trabalhadoras domésticas.
Dessa forma, algumas leis foram estabelecidas nesse período com o propósito de ampliar os direitos trabalhistas da categoria, como a nº 11.324/2006, que trata do descanso remunerado em feriados; trinta dias corridos de férias; estabilidade no emprego em razão da gravidez; a proibição de desconto por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia. Da mesma maneira, o Decreto nº 6.481/2008, referente às piores formas de trabalho infantil, atendendo ao dispositivo da Convenção nº 138 da OIT, insere o trabalho infantil doméstico nessa lista.
Anteriormente, o FGTS e o seguro-desemprego (2001) haviam se tornado um direito facultativo para as trabalhadoras, sem caráter obrigatório. Essas conquistas, do ponto de vista da categoria, têm um significado importante e constituem um momento histórico ímpar, mas precisam avançar mais.
Um aliado importante para a causa das trabalhadoras domésticas veio, com grande força, da área internacional. A OIT tem um compromisso com o tema há mais de seis décadas, quando aprovou as primeiras resoluções sobre as condições de emprego do trabalho doméstico. O resultado desse processo foi a adoção de dois instrumentos normativos internacionais na 100ª Conferência Internacional do Trabalho, a Convenção sobre Trabalho Decente3 (OIT, 2009) para as Trabalhadoras e os Trabalhadores Domésticos (nº 189/2011) e a Recomendação nº 201/2011.
De acordo com a OIT, num reconhecimento da contribuição significativa do trabalho doméstico para a economia global, esses instrumentos expressam a necessidade de promover uma proteção mais efetiva dos direitos das(os) trabalhadoras(es) domésticas(os) em todo o mundo.
Para isso, será necessário que os Estados membros ratifiquem a Convenção e, consequentemente, adaptem suas legislações internas ao aprovado no âmbito internacional. O governo brasileiro, sendo um país membro da OIT, vem se empenhando na ratificação dessa Convenção e, para isso, constituiu uma Comissão Tripartite, por meio da Portaria nº 102/2012, no âmbito do MTE. Certamente, implicará na adequação da nossa legislação aos novos tempos de direitos ampliados.
Igualmente, o Congresso Nacional vem enveredando esforços no sentido de aprovar leis que ampliem os direitos das trabalhadoras, como a instalação de uma comissão especial, no âmbito da Câmara dos Deputados, para análise da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 478-A de 2010, que trata da revogação do parágrafo único do Artigo 7º da Constituição de 1988. A aprovação dessa PEC permitirá estender às trabalhadoras domésticas o conjunto de direitos laborais de que as demais categorias de trabalhadores usufruem.
Esse é o ponto máximo da reivindicação da categoria. E a correlação de forças (governo x trabalhadores x empregadores) presentes nos trabalhos da comissão aponta para um resultado positivo em favor da ampliação desses direitos para as trabalhadoras domésticas, podendo culminar assim num breve processo de obtenção de políticas de proteção social, trabalhista e previdenciária.
Cristina de Fátima Guimarães é assistente social, especialista em Gestão de Políticas Públicas de Proteção e Desenvolvimento Social pela Escola Nacional de Administração Pública (Enap)
Referências
BERNARDINO-COSTA, Joaze. “Sindicatos das Trabalhadoras Domésticas no Brasil: Teorias da Descolonização e Saberes Subalternos.” Brasília, 2007.
GONZALEZ, Lélia. “A mulher negra na sociedade brasileira.” In: LUZ, Madel (Org.). O Lugar da Mulher: Estudos sobre a Condição Feminina na Sociedade Atual. Rio de Janeiro: Graal, 1982b, p. 87-104.
OIT. Organização Internacional do Trabalho. Notas informativas sobre a discussão do trabalho doméstico nas Conferências Internacionais do Trabalho de 2010 e 2011.