No Brasil, a submissão da lógica pública à privada no julgamento de governos e governantes é bastante acentuada, especialmente no discurso da classe média
No Brasil, a submissão da lógica pública à privada no julgamento de governos e governantes é bastante acentuada, especialmente no discurso da classe média
Não causa estranheza que, em nenhum momento desde que se denunciou o chamado “mensalão”, menos ainda durante o “julgamento” (que mais parece um linchamento de um partido e alguns de seus dirigentes), a grande mídia, os partidos de direita e demais setores economicamente hegemônicos no país tenham se pronunciado a favor de mudanças no sistema político-eleitoral
No século 17, na abertura de seu Tratado Político, o filósofo Baruch de Espinosa alertava: “Um Estado cuja salvação depende da lealdade de algumas pessoas e cujos negócios, para serem bem dirigidos, exigem que aqueles que o conduzem queiram agir lealmente, não terá qualquer estabilidade. Para poder subsistir será necessário ordenar as coisas de tal modo que os que administram o Estado, quer sejam guiados pela Razão ou movidos por uma paixão, não possam ser levados a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral” (I, §6).
Espinosa se contrapunha aos antigos teóricos que buscavam circunscrever a atividade política a uma esfera ideal de “homens virtuosos”, isto é, de homens moralmente superiores que, invariavelmente guiados pela Razão, seriam sempre capazes de agir conforme o interesse popular: “(...) aqueles que, por isso, se persuadem ser possível levar a multidão, ou os homens ocupados com os negócios públicos, a viver segundo os preceitos da Razão, sonham com a idade de ouro dos poetas, isto é, comprazem-se na ficção” (I, §5).
Ao pôr a política nesses termos, Espinosa abandonava a ideia de concebê-la como uma esfera apartada da dinâmica própria da vida humana e a devolvia ao domínio dos homens reais, tais como eles realmente são: homens de qualidades e defeitos, movidos por interesses e paixões, enfim, como qualquer um de nós. Não se tratava mais, portanto, de procurar o “governante ideal”, virtuoso e infalível, porque este não existe. Um Estado cujo equilíbrio e desenvolvimento dependessem da racionalidade ou das virtudes pessoais de seus dirigentes, na defesa de Espinosa, estaria fadado a ruir. Por isso, para que um Estado pudesse prosperar e garantir segurança e bem-estar a seus cidadãos, não importavam as motivações interiores dos administradores, mas sim que suas instituições os coagissem a agir a favor do interesse geral. Em outras palavras, o que Espinosa nos ensina é que a ética da vida privada não pode sequestrar a moralidade pública, expressa concretamente nas instituições que organizam a vida social. É essa moralidade pública que, traduzida nas qualidades intrínsecas de um Estado ou de uma instituição, devem obrigar o dirigente a cumprir seu papel público e democrático, independentemente de suas inclinações interiores.
No entanto, a perspectiva “pós-moderna”, ideologia típica do capitalismo neoliberal e de seus defensores, submeteria a política, assim como quaisquer outros domínios da vida social, à lógica consumista da “sociedade do espetáculo”. A política substantiva tornou-se “indústria política”, orientada pelo marketing. A palavra de ordem dessa pseudopolítica é vender a imagem de um político, ao mesmo tempo em que o cidadão, o eleitor, foi reduzido a um cliente que, diante de uma gama mais ou menos variada de opções, deve indicar sua preferência orientado por critérios exclusivamente pessoais, tal como procede ao comprar qualquer produto num supermercado. A consequência dessa dupla privatização (do político e do cidadão) é a privatização da própria esfera pública. Esta deixa de ser encarada e avaliada através de critérios específicos de uma ética pública e passa a ser mensurada pelas virtudes ou vícios, qualidades e defeitos pessoais de seus dirigentes.
No Brasil, essa submissão da lógica pública à lógica privada no julgamento de governos e governantes (logo, do próprio entendimento da política) é bastante acentuada, especialmente no discurso tendencialmente conservador da classe média. As reações ao assim chamado “escândalo do mensalão” são, nesse sentido, bastante exemplares. Desde o momento das denúncias de Roberto Jefferson, em 2005, até o julgamento em curso, essa perspectiva privatizante da avaliação da coisa pública tornou-se flagrante. Elegeram-se três ou quatro personagens de destaque, um partido, e a eles foram imputados, mesmo na ausência de provas, a pecha de “corruptos”. Criou-se, na sequência, uma falsa dicotomia entre um “velho-PT”, anterior ao poder, que seria o “guardião da ética”, e um “novo-PT”, que uma vez no governo teria abandonado suas antigas virtudes em nome de um pragmatismo imoral, um “vale tudo pelo poder”. Nas entrelinhas, o que se queria afirmar era: o “bom” PT é o PT que não governa.
Mas nem antes o PT era um partido de anjos, nem depois virou um partido de demônios. Contudo, muitos tentaram (com maior, menor ou nenhum sucesso, isso não vem ao caso aqui) vender a ideia de que os malfeitos atribuídos ao PT eram obra e graça exclusiva de um suposto desvio de caráter de seus militantes, especialmente de seus dirigentes, sem qualquer relação com o modelo político vigente. Desse modo, seria possível contrapor à “raça petista moralmente deficiente”, políticos “do bem”, aptos a administrar os interesses públicos de maneira íntegra, porque providos “de caráter”. Ora, o que se fazia, assim, era exatamente tentar vender aquela falsa ideia de que há governantes ideais, infalíveis e moralmente superiores. Como se a política pudesse não ser feita por pessoas de carne e osso, passíveis de erros e acertos. Buscava-se, assim, confundir, naquele sentido antidemocrático que Espinosa condenara, as virtudes ou os defeitos de um Estado com as virtudes ou defeitos pessoais de seus dirigentes. Visava-se, com isso, reforçar a percepção típica da política pós-moderna de que a avaliação do público dá-se pela régua do privado, tornando aquele dependente deste. A consequência mais grave da disseminação desse entendimento é a diluição da política substantiva na ética privada, a redução da democracia a uma competição personalista pela simpatia dos eleitores.
Naturalmente, isso não foi (nem é) feito sem interesses escusos por trás. Por isso, é preciso perguntar: a quem interessa essa privatização da política? Quem ganha com sua submissão à lógica do espetáculo, na qual quem pode vender melhor sua imagem como “homem de bem” torna-se potencial favorito a vencer eleições, administrar o Estado e a vida pública? A resposta não é difícil: justamente àqueles que, derrotados nas urnas, mas com mais recursos econômicos, e amparados por aparatos ideológicos para operar no “mercado político” e impor sua vontade, visam conservar à força seu poder através da dissolução paulatina da esfera pública. No limite, sacrificando a própria democracia.
Nesse sentido, não deve causar estranheza que, em nenhum momento desde que se denunciou o “mensalão”, menos ainda agora durante o “julgamento” (que mais parece um linchamento de um partido e de alguns de seus dirigentes), a grande mídia, os partidos de direita e demais setores economicamente hegemônicos no país tenham se pronunciado a favor de mudanças no sistema político-eleitoral brasileiro. Mudanças que, independentemente de afeições pessoais de A, B ou C, criassem um arcabouço institucional, hoje praticamente inexistente, cujos mecanismos impedissem (e não, como atualmente, favorecessem) os dirigentes “a agir de forma desleal ou contrária ao interesse geral”. Em vez disso, preferiu-se, pelos interesses nada republicanos destacados acima, particularizar as acusações de corrupção e, mesmo sem provas materiais, depositar o “mal” na conta de um partido – como se, aliás, qualquer desvio de conduta atribuído a um de seus militantes, mesmo que se tratando de qualquer um de seus dirigentes, pudesse macular a totalidade do partido e, mais ainda, desacreditar sua política.
No entanto, independentemente dos desdobramentos do caso do “mensalão”, é preciso chamar a atenção para o seguinte: um exame honesto de nosso sistema político deixa claro que os vícios da política nacional, a corrupção que permeia o tecido administrativo do Estado e sufoca os interesses populares em nome de interesses pessoais, são, primeiro, defeitos de nosso próprio sistema institucional. O misto entre presidencialismo e parlamentarismo criado pela Constituição de 1988, que pode fazer um presidente refém dos interesses particulares do Congresso; o financiamento privado das campanhas, que invariavelmente cobra contrapartidas dos favorecidos quando eleitos, independentemente do fato de tais contrapartidas ferirem o interesse público; a volatilidade da grande maioria dos partidos políticos, verdadeiras “legendas de aluguel”, desprovidas de programas político-ideológicos com mínima consistência, que existem apenas para barganhar cargos e orçamento no aparelho estatal; o personalismo decorrente desse modelo eleitoral e daquela concepção de política privatizante; tudo se entrelaça (não por acaso, diga-se de passagem) para favorecer a disseminação de práticas ilegais que estão longe de ser monopólio de um partido ou de algum governante – historicamente fazem parte do próprio modus operandi do Estado brasileiro – e contra o qual, com todas as dificuldades, é sempre bom lembrar, os governos Lula e Dilma foram os mais incisivos.
Assim, diante desse cenário, temos duas opções. Ou encaramos o problema de fundo e encampamos a luta por uma reforma política capaz de renovar (ou recriar) nossas instituições democráticas e permitir uma nova relação entre Estado e sociedade civil, inclusive no âmbito da máquina administrativa. Uma reforma política que se oriente no sentido de favorecer a ampliação do espaço e da lógica pública, em detrimento da lógica privada ainda hoje dominante, e crie mecanismos eficazes contra qualquer forma de sequestro privatizante da coisa pública. Ou ficaremos (nós, da esquerda, que almejamos outra política, outro Estado, outra sociedade) sempre assombrados pelos fantasmas dos vícios intrínsecos à política e ao Estado brasileiro. Por conseguinte, à mercê do discurso moralizante hegemônico (até aqui, felizmente, sem grandes impactos eleitorais em nível nacional), típico da classe média e de seus representantes preferenciais. Com efeito, não serão os partidos da direita, que se locupletam de tais vícios, ao mesmo tempo em que, desavergonhadamente acobertados pela grande mídia, podem se apresentar ao “mercado de eleitores” como “paladinos da ética”, que assumirão essa bandeira. É nossa tarefa, nossa responsabilidade, de todos os militantes de esquerda, do PT, dos movimentos sociais progressistas, “desprivatizar” radicalmente a política em todos os sentidos, e trazê-la finalmente para o domínio democrático do público.
Vinícius dos Santos é bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutorando em Filosofia pela UFSCar, bolsista da Fapesp