Política

Ter direitos políticos ou fazer política, por um longo tempo, foi para poucos. E agora no Brasil estamos vendo a democracia se consolidar como cada vez mais popular

O palhaço Tiririca, fenômeno eleitoral de São Paulo, foi escolhido como um dos quinze melhores deputados federais da Câmara dos Deputados. A ação de seu mandato parece comprovar que o país pode e deve incluir os excluídos na vida política nacional, trazendo inclusive qualidade às propostas e debates no parlamento

Tiririca é escolhido como um dos melhores do Congresso

Tiririca é escolhido como um dos melhores do Congresso Nacional. Foto: José Cruz/ABr

No contexto do Segundo Reinado, o político mineiro Teófilo Otoni, admirador confesso do parlamentarismo inglês e do regime norte-americano, bradava a seus pares pela criação de uma república no Brasil. Defensor dos “princípios democráticos”, contra o poder pessoal e arbitrário de dom Pedro II, Otoni, todavia, pensava em uma democracia bem específica. Como ele próprio dizia, é a “democracia pacífica, a democracia da classe média, a democracia da gravata lavada, a democracia que com mesmo asco repele o despotismo das turbas e a tirania de um só”Teófilo Otoni apud Christian Lynch (Lynch, 2011, p.378).

O que diria hoje esse distinto senador (que se espelhando no exemplo republicano dos Estados Unidos criou a poucos quilômetros de Belo Horizonte a sua própria Philadelphia, o município de Teófilo Otoni) sobre a democracia brasileira, na qual um palhaço é não apenas eleito deputado federal como escolhido um dos quinze melhores da Câmara dos Deputados? Não é brincadeira: 186 jornalistas do Congresso em Foco, site especializado no Poder Legislativo nacional, já indicaram Francisco Everardo de Oliveira Silva, o Tiririca, para o prêmio, e ele pode vir a se tornar, dependendo agora da votação dos internautas, o melhor deputado do Brasil no ano de 2012.

Certamente que Otoni, bem como muitos de nossos democratas do passado (e mesmo do presente), ficaria de cabelo em pé ao ouvir a notícia, sobretudo se lembrarmos de algumas das tiradas de nosso palhaço-deputado, como seus bordões de campanha: “Sou candidato a deputado federal. E o que faz um deputado federal? Na realidade, eu não sei, mas vote em mim que eu te conto”. Ou ainda: “Pra deputado federal, Tiririca. Vote no abestado”. E o inesquecível: “Vote no Tiririca, pior que tá não fica”.

Tiririca, deputado federal mais sufragado na eleição passada (1.353.820 votos em São Paulo), contribuiu significativamente para o aumento do número de cadeiras de seu partido (o Partido da República) e está surpreendendo quem acreditava que seu mandato seria uma tragédia. Há poucos dias, por exemplo, teve sua primeira proposta aprovada em uma das Comissões da Câmara, a que garante que artistas circenses (normalmente sem residência fixa) tenham direito também à seguridade social. Vale a pena acessar seu perfil no site da Câmara e ver outros projetos de lei de sua autoria, de claro teor popular (sobretudo em favor do circo), que provavelmente não devem ficar na gaveta. Além disso, Tiririca é um dos nove deputados, no universo de 513, que compareceram a todas as 171 sessões de votação durante pouco mais de um ano e meio de mandato, estando presente também em 88% das reuniões na Comissão de Educação e Cultura, na qual é membro titular. Ironia do destino? Logo ele, que depois de conquistar semelhante vitória nas urnas teve de comprovar que não é analfabeto, copiando um parágrafo ditado de um livro qualquer de Direito e lendo duas notícias de jornal para um juiz do Tribunal Eleitoral de São Paulo.

Pois, por aqui, quem não sabe ler e escrever pode votar, mas não pode ser votado, determina a Constituição de 1988. A distinção entre “eleitor” e “elegível”, frequentemente ignorada, é, entretanto, fundamental para compreender a dinâmica de expansão das democracias no mundo. Como diz o cientista político Robert Dahl (2005), em geral, os direitos políticos foram inicialmente criados para poucos, em especial o direito de ser votado. Com o passar dos anos, em função de pressões de diversos grupos sociais (mulheres, trabalhadores, pobres etc.), as barreiras para a participação política foram gradualmente abolidas. Era preciso, como se diz por aí, “dar o anel para não perder o dedo”.

Ora, o que o mineiro Teófilo Otoni exigia no final do século 19 era precisamente que essas barreiras fossem mantidas; que a democracia fosse constituída não por “tiriricas”, mas por pessoas “qualificadas”, quer dizer, letradas e com renda suficiente para torná-las responsáveis. Se aproveito para brincar com o termo “tiririca”, é precisamente porque um de seus significados no vernáculo nacional é o de “erva daninha que invade os campos cultivados”, como o nosso palhaço que resolveu sair do picadeiro e ocupar o espaço reservado aos “donos do poder”.

Mas cabe perguntar: será o letramento uma condição necessária para a ação virtuosa e eficiente na política? Ou isso expressa apenas o temor elitista, a demofobia, de que os resultados dos pleitos democráticos contrariem os privilégios vigentes? Não é o mesmo sentimento que irrompeu à cena pública quando um operário se fez presidente por duas vezes, ambas com elevada aprovação da população? Como dizia o filósofo grego Aristóteles, para participar da política não é necessário um conhecimento “técnico”, contando muito mais a experiência prática. Por isso, a participação de todos os cidadãos torna-se importante, visto que ela traz à cena pública razões e demandas antes ignoradas, sendo todos eles, a priori, capazes de avaliar se as políticas aplicadas são boas ou não. Do mesmo modo como quem sabe realmente se um sapato calça bem é o próprio usuário, e não o sapateiro.

Mesmo a nossa Constituição Cidadã, inequivocamente caracterizada pelos avanços na expansão dos direitos democráticos, dispensou a exigência da alfabetização para os eleitores, mas não para os elegíveis. Outras nações do globo, como a vizinha Argentina, consentem em ter um representante político analfabeto. Não seria hora de repensarmos esse critério?

Sem, todavia, superestimar a figura de Tiririca, importa destacar que, como bem disse o cientista político brasileiro Wanderley Guilherme dos Santos, “a democracia assusta aqueles que sempre foram democratas quando a democracia não existia”Wanderley Guilherme dos Santos em entrevista a Juarez Guimarães (Chaui, 2006, p. 122).. Com o aumento da competição política e a incorporação de setores até então excluídos da polis, os pleitos eleitorais tendem a ser crescentemente imprevisíveis. Se até 1980 nossas eleições não contavam com mais de 40% de participação da população brasileira adulta, atualmente percebe-se que, tanto na dimensão dos que podem votar quanto dos que podem ocupar um cargo eletivo, a democracia está deixando de ser “de gravata lavada” para se tornar, felizmente, cada vez mais popular.

Marcelo Sevaybricker Moreira é graduado em Filosofia, mestre e doutorando em Ciência Política (UFMG), pesquisa a política e o pensamento brasileiros, sobretudo, em relação ao tema da democracia

Referências
CHAUI, Marilena. Leituras da Crise: Diálogos sobre o PT, a Democracia Brasileira e o Socialismo. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.

DAHL, Robert. Poliarquia: Participação e Oposição. São Paulo: Edusp, 2005.

LYNCH, Christian Edward. “Do despotismo da gentalha à democracia de gravata lavada: história do conceito de democracia no Brasil (1770-1870)”. Dados, Rio de Janeiro, vol. 54, n. 3, 2011, p. 355-390.