O volume I de Zé Dirceu – Memórias, referente ao período que vai do nascimento, 1946, até sua cassação pelo plenário da Câmara de Deputados, em 2005, contém 35 capítulos de texto, três anexos, dois cadernos de fotografias e um índice onomástico, tudo isto distribuído em 495 páginas.
Vale a pena comprar essas Memórias e gastar no mínimo um dia para sua leitura em marcha batida?
Sim, vale a pena para quem tem interesse na história e na política nacional, para quem idolatra Dirceu como “comandante” ou simplesmente valoriza sua conduta enquanto vítima precoce do golpismo, mas também vale a pena para os que criticam duramente as posições adotadas pelo protagonista da autobiografia.
Aliás, uma das qualidades do livro é, também, um de seus “defeitos”: ler as Memórias é como ouvir Dirceu falando.
Graças a isso, somos colocados em contato mais direto, sem as mediações e maquiagens usuais em obras desse tipo, com as limitações, contradições e tiques do autor, tanto pessoais quanto políticos.
Há passagens de absoluta breguice (“decidi partir de carona, após ver uma estrela cadente riscando o céu estrelado”), outras de comovente sinceridade (“a gravidade de nosso erro não tinha limite. A defesa do parlamentarismo era um desastre”), sem falar da recorrente exaltação da mineiridade e da maneira, digamos, singular como são apresentadas determinadas relações pessoais, especialmente as afetivas.
Até mesmo as falhas de revisão editorial e histórica contribuem para atos falhos muito reveladores.
Por exemplo: Wladimir Pomar, que foi coordenador-geral da campanha de Lula em 1989, objeto de muitas passagens do livro, não tem seu nome citado em nenhum momento; absolutamente nada é dito sobre a crise decorrente da composição da Comissão Executiva Nacional do PT em 1995, nem sobre o afastamento de Cândido Vaccarezza da Secretaria Geral Nacional do PT; Heloísa Helena, Babá e Luciana Genro – expulsos em 2003 – são em certa passagem tratados como se ainda fossem integrantes do PT em 2005; Sílvio Pereira, outro secretário-geral do PT, aparece apenas na página 432, lembrado apenas como alguém que “se desfiliara após a divulgação sobre a compra de um carro da GDK engenharia”.
Uma revisão atenta evitaria essas e muitas outras lacunas e imprecisões. Mas, como sabem os especialistas em memória oral, certos esquecimentos são tão importantes quanto certas lembranças.
Outra qualidade do livro é sua declarada intenção de “escrever para o futuro, para as próximas gerações”, apresentando o ponto de vista de alguém cuja “luta continua”. O defeito, neste caso, é interessantíssimo: nas Memórias inexiste uma reflexão sistemática sobre a estratégia de luta pelo socialismo no Brasil.
Em diversas passagens o autor tangencia o tema, mas nunca o enfrenta como se esperaria de alguém de sua importância e qualificação.
Talvez esse defeito seja sanado no segundo volume das Memórias. Neste primeiro volume, essa lacuna fica particularmente clara em quatro passagens: no tratamento dado à luta armada contra a ditadura militar, na discussão sobre a adesão ao Partido dos Trabalhadores, nas críticas à esquerda petista, no balanço do que foi o governo Lula.
Sobre a luta armada, afirma-se que “nada mais normal na história do Brasil do que recorrer às armas para resolver conflitos políticos e sociais”, que “nada mais brasileiro que erguer o braço armado contra a tirania”. Afirma-se, portanto, que “não foi sem sentido histórico e sem memória que elegemos a resistência armada. Foi sem sentido temporal e sem a compreensão dos erros de 1935 e dos acertos de 1961”. E que a “hora mais adequada seria março-abril de 1964”. Como para cada argumento o autor apresenta um senão, o saldo final é que a luta armada contra a tirania é justificada como um “imperativo” moral.
Certamente lutar é um imperativo, mas como a intenção de quem luta é vencer, a adoção da luta armada nos anos 1960 foi baseada em um cálculo estratégico, que envolvia discussões de fundo sobre os caminhos da revolução brasileira. Dirceu participou desses debates. Mas eles não comparecem de forma organizada em suas Memórias.
O mesmo vale para a adesão ao Partido dos Trabalhadores. Ele informa: “Após longos debates, deliberamos priorizar a construção do PT e, mais importante, optamos por nos dissolver como corrente política. Não existiria mais ex-ALN-Molipo no PT. Não era simples essa resolução, pois perdurava o compromisso com o passado, mas o presente se impôs. A própria experiência e a autocrítica de todos – imersos na luta popular – levaram ao rio que se formava, o PT”.
O que foi tratado nesses “longos debates”? Os que viveram a época ou leram a literatura a respeito sabem ou pelo menos intuem. Mas por qual motivo Dirceu, que relata com certo sabor e muito detalhe tantas outras polêmicas e passagens menos relevantes e dramáticas, não dá àqueles debates sobre a adesão ao PT o devido destaque?
Uma hipótese é que, tanto no caso da opção pela luta armada quanto no caso da autocrítica da luta armada e da adesão ao PT, Dirceu foi arrastado pela correnteza do rio. Ou seja, ele aderiu e operou, com entrega e dedicação, a opção estratégica majoritária em cada época. Essa hipótese ajuda a explicar o peso relativo que os temas táticos e estratégicos ocupam em suas lembranças. Ajuda a compreender, também, o que é dito por Dirceu, nas Memórias, sobre o governo Lula e acerca das posições da esquerda petista.
Depois de tudo que ocorreu nos governos Lula e Dilma, como negar que havia algo de correto nas críticas feitas à estratégia adotada pelo “campo majoritário” do partido a partir de 1995? Dirceu mesmo verbaliza como suas algumas das críticas feitas a partir da chamada esquerda do PT. Mas, curiosamente, não poupa críticas àquela esquerda, que ademais é tratada como se fosse uma coisa só e como se defendesse, entre 1993 e 2005, as mesmas posições dos partidos dentro do partido dos anos 1980.
O mais importante, entretanto, é que em nenhum momento as críticas de Dirceu assumem a forma de uma autocrítica sistemática acerca da estratégia. É como se a política adotada estivesse certa até ela dar errado, e quando isso acontece se inventariam a posteriori os erros, adota-se outra tática e a luta continua.
Nisso reside, certamente, a grande qualidade do autor das Memórias: a disposição de lutar. Se o fez da maneira certa e com a estratégia acertada, a história julgará.
Valter Pomar é professor de Relações Internacionais na UFABC. Foi dirigente nacional do PT entre 1997 e 2013