Internacional

Não existe solução possível enquanto os governos de Israel mantiverem a implantação de assentamentos na Palestina

Quando se discute o conflito no Oriente Médio, algumas premissas têm que ser estabelecidas:

1. Não vale invocar anti-semitismo, ou preconceito antijudaico, para evitar enfrentar qualquer crítica mais ou menos severa a decisões e atitudes de eventuais governos de Israel. Ninguém, salvo o próprio povo de Israel, pode responder pelo fato de a estrela de Davi, bem simbólico maior da religião judaica, ser também o símbolo mais evidente do Estado de Israel – um Estado que, embora institucionalmente democrático, é deliberadamente não-laico e, o que é inimaginável, mantém legislação que legaliza a tortura a suspeitos de atos atentató­rios à defesa nacional. Por conta disso, são tanques e blindados com estrelas de Davi nas bandeiras presas às suas antenas de rádio que, em “caça aos terroristas”, passam por cima de civis desarmados dentro de suas próprias casas nas cidades e vilas do território ocupado da Palestina.

2. Não estamos analisando um confronto entre dois Estados parelhos em possibilidades materiais e bélicas. Estamos, sim, diante da investida de uma das maiores máquinas militares do mundo – helicópteros Apache de última geração, caças F-16, tanques e buldozers poderosíssimos, além de reconhecida posse de armamento nuclear – contra populações civis de um território descontínuo, ocupado por uma centena de postos de controle militares (os chamados check points israelenses entre as vilas e cidades palestinas, e não somente na fronteira que separa os dois territórios nacionais).

3. É falacioso tratar, em pé-de-igualdade, como atualmente é feito por intermédio dos principais meios de comunicação mundiais – a CNN americana, com destaque – a ocupação militar israelense e os atos suicidas palestinos em cidades de Israel. Não são irmãos gêmeos, contemporâneos, de uma mesma realidade trágica. Não. A ocupação militar israelense é a geradora do caldo de cultura em que se criam os terroristas fundamentalistas, ou os jovens universitários desesperados com o absoluto desencanto existencial, em função da destruição de suas possibilidades de vida profissional e de lazer, com um mínimo de liberdade e dignidade. E cito autor israelense para reforçar meu ponto de vista, Ran Há Cohen, no Jewish Peace News, com endereço eletrônico conhecido: [email protected]. O que diz ele no seu ensaio sobre Terrorismo vs. Ocupação, no qual responde a leitores que o criticam por “não escrever sobre terrorismo palestino contra Israel”? (...) “O terrorismo é o termo mais popular na cobertura da mídia no Oriente Médio, e as pessoas ainda querem que eu fale sobre isso também. Por que isso? Creio que é porque essas pessoas não querem que eu fale sobre um outro termo: ocupação. Notem com que raridade esse termo é usado quando o assunto em pauta é o conflito israelo-palestino. De fato, quando se ouve alguém dizer ‘terrorismo’ insistentemente, fique certo que ela não usará o termo ‘ocupação’”.

4. Não existe solução possível, capaz de gerar uma convivência fraterna e solidária entre os dois povos que têm tudo para construir as mais avançadas sociedades democráticas da região, enquanto se mantiver, por parte dos sucessivos governos de Israel – e aí incluindo os trabalhistas que antecederam ou sucederam os fundamentalistas Shamir, Netanyahu e Sharon –, a política de implantação de assentamentos artificiais de judeus ortodoxos em terras confiscadas ao Estado ou a particulares palestinos.

Acertados nessas preliminares, vamos aos fatos que pudemos viver, por conta da delegação da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados.

Encontro com Shimon Peres

No dia seguinte à chegada a Jerusalém, a delegação de parlamentares brasileiros já tinha um encontro com o ministro das Relações Exteriores de Israel – Shimon Peres, personagem referencial dos social-democratas imensamente incomodados pela convivência com o governo Sharon, fundamentalista de direita.

Com experiência das agendas apertadas que o parlamentar vive em Brasília, sempre em dificuldades para receber delegações estrangeiras que visitam nosso Congresso, a disponibilidade de Peres, no bojo da crise do cerco a Arafat, do início das investidas contra Jenin e Belém, não deixou de causar uma certa perplexidade. Será que o Brasil tem tanta expressão internacional, ou Peres, afastado do Comitê de operações mais restrito do governo, não tinha tanto o que fazer? Para mim, prevaleceu a segunda leitura, embora Peres não deixasse passar, pelas palavras ditas, nenhuma sensação de isolamento político. Mas a voz tênue com que tenta nos convencer que concorda com a definição das linhas de ação do governo, como se delas tivesse participado ativamente, denuncia a insegurança.

"-Como o senhor, na condição de Prêmio Nobel da Paz, explica sua participação numa coalizão governamental em que o primeiro-ministro é criticado – à exceção, é claro, dos Estados Unidos e seus mais fiéis carregadores de bagagem – por quase todos os governos do mundo, principalmente os da União Européia, pela ocupação violenta de territórios palestinos?

Não sinto nenhum desconforto. Não estamos atacando populações civis. Estamos apenas caçando terroristas.

Mas como o senhor reagiria se o Partido Trabalhista inglês apoiasse um governo conservador inglês que decidisse pela invasão da Irlanda, para ‘caçar terroristas’ do IRA?"

É aí, enfim, que Peres externa suas debilidades políticas, seus “desconfortos” ocultos...

 "-É claro que existem algumas diferenças com a maioria governamental. Sou a favor do reconhecimento da Cisjordânia como território palestino, mas não absolvo Arafat pela derrota nas negociações de Camp David, que permitiriam tal solução...”

Não há por que traçar de Peres uma imagem positiva, por princípio, indelével. Prêmio Nobel da Paz, seus movimentos têm ampla exposição mediática. Mas quem o conhece na intimidade não o pinta da mesma forma, como deixa transparecer a carta aberta enviada por seu amigo de 24 anos, e assessor por quatro, Gideon Levy, publicada no Haa’aretz, principal jornal israelense, em 24 de janeiro deste ano, sob o título “Diga a verdade Shimon”:

(...) “Em 1989,quando você era ministro da Economia no governo Shamir e a primeira Intifada estava em fúria, utilizei estas páginas para escrever ‘Uma carta a um ex-patrão’. Naquela época, eu lhe disse que ‘pela primeira vez em sua vida, nada lhe restava a perder – exceto a perspectiva de sumir no ar rarefeito’. Isso foi depois que você guardou silêncio face à conduta das IDFs – Forças de Defesa Israelenses – com relação à Intifada, face à continuação da ocupação e à recusa obstinada de Israel em reconhecer a OLP como representante dos palestinos. Naquela ocasião, eu acreditava que você pensava de modo diferente de Yitzhak Shamir e Yitzhak Rabin (conhecido à época como ‘quebra-ossos’), mas que você não tinha apenas coragem suficiente para se manifestar.

Onze anos mais tarde, em 2000, escrevi-lhe uma outra carta aberta. Isso foi depois de Oslo e do assassinato de Rabin, e depois que você tinha perdido outra eleição – dessa vez, para o cargo de presidente. Na época, eu disse: ‘Muitos israelenses o vêem agora como uma pessoa diferente. Para eles, você representa a esperança de alguma coisa diferentee’. E, agora, quando lhe escrevo outra vez, tenho de lhe dizer: ‘você já não representa a esperança de nada’”.

Pela continuidade da parceria com Sharon, Peres não tem, definitivamente, como contestar a justiça da indignação de Gideon Levy.

Encontro com Sari Nosseibek

Antes de tudo, quem é Sari Nosseibek?

Os brasileiros o conhecem por uma longa entrevista às páginas amarelas de Veja. É um professor de universidade em Jerusalém; uma referência entre os mais moderados do movimento de libertação palestino. Considera radical o comportamento dos dirigentes de seu governo, no qual ocupa o cargo de ministro para os Assuntos de Jerusalém, insinuando suas responsabilidades em não impedir a participação de jovens desarmados nos confrontos de rua ao longo das intifadas. E o encontro com ele, realizado no mesmo dia em que havíamos conversado com Peres, viria a propósito. Porque ninguém melhor do que Nosseibek para reforçar os argumentos de Peres quanto à classificação de Arafat como responsável pelo fracasso de Camp David.

Mas não foi o que sucedeu.

Nosseibek, o mesmo que fala de radicalismo pelo desprezo das lideranças palestinas ao espírito de negociação, não estendia essa avaliação, certamente, às discussões em Camp David, quando faz tais críticas. Sobre o acordo apadrinhado por Clinton, ele não tergiversa: “Fosse eu o negociador, e teria tomado a mesma decisão. Também teria denunciado as propostas israelenses, por estarem muito abaixo do mínimo exigido para que fossem aceitas pelo nosso povo”.

E Nosseibek não se referia ao essencial. Quando Peres, na sua conversa da manhã, se lamentava de Arafat por não haver compreendido que ao não aceitar tudo o que lhe havia sido ofertado pelo governo Barak, em Camp David, simplesmente omitiu o essencial, para além do bem abaixo do mínimo na oferta de devolução de territórios ocupados. O governo trabalhista de Barak-Peres, em nenhum momento, interrompeu o que hoje se constitui no mais grave empecilho para uma solução justa para os palestinos – a instalação forçada dos assentamentos artificiais que Israel implanta, por exigência do setor judaico fundamentalista, o mais ortodoxo, em áreas confiscadas ao Estado e a particulares palestinos.

São tais assentamentos que, implantados aqui e acolá, tornam quase impossível o estabelecimento de uma linha de fronteiras, no momento em que houver condições concretas para a suspensão do conflito. Eles correspondem a uma espécie de contraponto dantesco ao êxodo que, desde 1948 – ano do nascimento do Estado de Israel, a partir de uma resolução da ONU –, foi imposto a milhões de palestinos, com suas casas, colheitas e comércios completamente arrasados.

Da mesma forma que o retorno desses palestinos não é mais exigido no conceito de “paz justa” que se passou a utilizar nas discussões para busca de solução para a guerra, o problema gerado pela pulverização de assentamentos terá que ser solucionado a partir de seus desmontes ou, o que parece mais lógico, de transferência para as populações palestinas, até como compensação pela não restituição das terras e reconstrução de habitações destruídas dos refugiados já instalados em outros países.

Como reage o povo palestino?

Aqui Ariel Sharon, velho militante da concepção do “Grande Israel” – que nos assustou com uma entrevista no já citado Haa’aretz, em que questionava a legitimidade da Jordânia como país – invade a Esplanada das Mesquitas, cercado de guarda-costas, em ato francamente provocativo, e dá o pontapé inicial na série de intifadas que vieram justificar a radicalidade da repressão militar atual.

Naquela manifestação, Sharon se cacifava junto à direita judaica, ao prenunciar o governo agressivo e ostensivamente discriminatório em relação aos palestinos, que terminou implementando. Abriu espaço para a irracionalidade que se alastrou em ambos os lados, ao colocar a disputa nos termos que interessavam aos fundamentalistas. Do lado palestino, à medida que jovens, mulheres e crianças se viam atiçados às manifestações de rua, onde pedras e estilingues eram respondidos com fogo de artilharia dos tanques, ou de eficientes metralhadoras dos inexperientes reservistas da infantaria israelense, as perdas de vidas começaram a entrar no cotidiano. A morte se banalizava, o que facilitou o crescimento dos que, do lado palestino, têm formulação doutrinária tão fundamentalista quanto a de Sharon e seus fanáticos, pelo lado judaico. Consolidaram-se os dois pólos de uma mesma visão reacionária do mundo, fundada numa visão exclusivamente religiosa de que a vida material conta pouco. O Hamas recebia de presente as condições subjetivas para a criação dos jovens suicidas. Sharon os gerou, e deles necessita para a implantação da sua lógica exterminadora de todo o povo palestino, objetivo maior de sua concepção de Estado judaico – “uma terra sem povo, para um povo sem terra”.

E em alguns exemplos concretos que vivenciamos isso fica evidente. Tanto o da brutalidade dos partidários de Sharon, quanto o da coragem e solidariedade de árabes e judeus progressistas em defesa do povo palestino. Vamos cuidar de cada um, por partes.

Ramallah

Cidade que abrigava o QG de Yasser Arafat, centro governamental da Autoridade Nacional Palestina. Foi teatro de combates violentos, que destruíram bens materiais, mas não chegaram a desfigurar totalmente seu aspecto urbano extremamente simpático. Pelo menos em sua região central, onde pudemos transitar. Em ruas arborizadas, com prédios de meia altura, o contraste entre o céu azul e as paredes amarelas das pedras de Jerusalém – que caracterizam as construções locais – era reforçado pelo sol brilhante e forte, mas bastante agradável.

Ocupada, foi transformada, mais que em gueto, num verdadeiro campo de concentração. No dia em que a visitamos, parecia uma cidade fantasma. Casas com janelas fechadas, ou varandas encobertas por cortinas, eram as celas dessa verdadeira penitenciária. No centro dos prédios mais altos confiscados pelas forças de ocupação, a bandeira de Israel definindo o ponto de concentração de franco atiradores que dali controlavam o rigor do toque de recolher, capaz de se estender por até 60 horas, nunca durando menos de dois dias para cada interrupção de poucas horas, quando os que ainda tinham algum dinheiro po­diam se revitalizar nos que ainda tinham alguma mercadoria para vender.

Os militares israelenses não hostilizam a coluna de pacifistas estrangeiros que se desloca armada de bandeiras brancas, numa das mãos, e passaporte estrangeiro, na outra. Apenas controlam a distância.

O objetivo é alcançar o QG de Arafat, na ocasião vivendo uma situação de alimentação e higiene absolutamente dramática. Era o que nos informava, por telefone, Mário Lill, então participante do escudo humano de voluntários acampados no prédio, para garantir a segurança de Yasser Arafat, humilhado e ameaçado pelos tanques estacionados a poucas dezenas de metros do seu gabinete.

Dali não passamos. Soldados extremamente jovens, e extremamente tensos, transmitindo mais insegurança e descontrole do que propriamente ordem unida, não nos permitiam o abuso de tentar passar a barreira. Um deles poderia atirar, sob o pretexto de que um de nós poderia ser um homem-bomba – verdadeira fixação paranóica que lhes parece ter sido injetada.

Mesmo nessas condições adversas, algumas mulheres palestinas se aventuravam, nas portas das casas, a transmitir mensagens pelos microfones e câmeras das equipes de TV que nos acompanhavam, todos paramentados em capacetes protetores e coletes à prova de balas. E do que diziam aos borbotões, vinha a tradução de algum de nossos parceiros letrado em árabe. Arafat, mergulhado em crises de liderança antes das intifadas, passava a simbolizar a liderança unificadora de todo o povo palestino, desde que não cedesse aos invasores. Não deveria entregar os militantes palestinos que o acompanhavam na área cercada, e que os israelenses queriam capturar a qualquer preço. Se entregasse, a liderança entraria em crise novamente. Os acordos que posteriormente veio a aceitar, nesse sentido, estão na raiz do recrudescimento do movimento oposicionista à sua liderança. Ou seja; longe do espírito de rendição, aquela ocupação gerava evidente indignação e ódio aos ocupantes.

Check points

Mal recuperados dos momentos traumáticos de Ramallah, novo símbolo da violência nos afronta: a necessidade de transpor um dos pontos de controle que, nas estradas e saídas das cidades palestinas, submetem os seus habitantes a humilhações permanentes. Uma superguarita, com um muro de concreto serve de filtro que torna longuíssima e difícil a ida para o trabalho ou escola na cidade vizinha. Um filtro conduzido pelos reservistas quase meninos, tão aterrorizadores quanto aterrorizados, separando maridos de mulheres e de filhos aos gritos de “um de cada vez”. Mais uma fonte de ódios e recalques cada vez mais dificilmente superáveis.

De retorno ao hotel, a consulta ao mapa da Palestina, no prosaico guia turístico de espetáculos semanais que continua a ser teimosamente impresso com indiscutível qualidade editorial, espanta ver aquela centena de pontos azuis sobre o fundo amarelo dos limites territoriais palestinos. São os check points. Tão odiados quanto os assentamentos artificiais de judeus ortodoxos ao lado dos centros urbanos da Palestina. São os símbolos visíveis, junto com a bandeira nacional onde pontifica a estrela de Davi, da opressão do Exército de ocupação israelense. Enquanto tais símbolos não saírem do território palestino, consolidam-se as condições para que não se encerre o ciclo de desesperados em seus ataques suicidas contra as cidades de Israel.

Jenin

Foram 50, 100 ou 500 mortos, em Jenin? O que aconteceu com grande parte da população civil desarmada, dentro de suas casas, por conta da marcha batida dos tanques e buldozers, quebrando paredes, derrubando portas, passando por cima dos móveis das salas e quartos, sem verificar, antes, se havia ali um velho, uma criança ou alguma mulher em estado de pânico?

Nunca vai se saber, porque o governo Ariel Sharon tem poderes insuperáveis. Seu governo, sob suspeita de responsabilidade em inúmeras denúncias de massacre sobre as populações civis, inexplicavelmente tem o direito de barrar a comissão investigativa de alto nível que a ONU já havia nomeado. Inexplicavelmente, não. Diferentemente de Milosevic, Sharon é da entourage do governo Bush – o autor da máxima do “quem está comigo é do bem; quem está contra é do mal”. Faz parte dos que têm direito a bombardear o que bem lhe aprouver, sob o pretexto de “eliminar os focos de terrorismo”. Mesmo que, para isso, exerça um terrorismo mais intenso ainda – mais ou menos na lógica que permitiria ao torturado poder agir como torturador de seu algoz, por direito de vingança.

Essa leniência em relação aos abusos de Sharon é inqualificável. Sem tentar estabelecer qualquer paralelo, o que levou Milosevic às barras do Tribunal Internacional não era menos do que o já apurado sobre Sharon. E se dúvida houvesse, o relatório da Human Rights Watch, organização não-governamental americana que diferentemente da delegação da ONU teve permissão para entrar em Jenin, liquidaria com ela.

Não houve massacre, é a conclusão do que relatam, por diferença de cifras entre o que se denunciava e o que se comprovou. Mas houve, indiscutivelmente, crimes de guerra – no mínimo, assassinato de civis inocentes e utilização de escudos humanos palestinos para proteção dos bravos guerreiros de Israel. O governo Sharon não contestou a conclusão, e ainda tentou festejar pelo fato de a HRW, consentida por ele, não ter podido comprovar o massacre.

Aliás, só teria dúvida sobre o que se cometeu de brutal e irracional sobre a população civil de Jenin, quem não tivesse se dado ao trabalho de ver as fotos após a abertura da cidade aos órgãos de imprensa e à Cruz Vermelha, até então interditados no acompanhamento dos combates e no resgate de feridos. Se em Ramallah, primeiro ensaio, houve quem guardasse cadáveres dentro de casa por impossibilidade de buscar socorro em horas de toque de recolher, não é mentalmente saudável imaginar o que deve ter ocorrido em Jenin.

Não vimos, mas pudemos ter o sentimento do que ali ocorrera, quando participamos – em linha de frente, como vários parlamentares estrangeiros – da marcha em que milhares de pessoas, caminhando por oito quilômetros até as portas da cidade, forçavam a passagem para 30 caminhões com víveres, remédios e água para os habitantes da cidade absolutamente isolada. A reação dos tanquistas e infantes israelenses, em Jenin, não era distinta da dos que cercavam o QG de Arafat em Ramallah. Gritos e impropérios, antecipando ameaças de represália imediata, caso não houvesse recuo.

E aí pudemos viver os momentos mais emocionantes da solidariedade internacional. No confronto com a barreira armada até os dentes, pacifistas das mais diversas partes do mundo comprovavam o espetáculo humanista comovente, propiciado pelos jovens que, estrela de Davi, pacífica e solidária nas mochilas, gritavam em hebraico e em árabe os slogans, de mobilização solidária ao povo palestino encerrado em Jenin e contra os tanques encimados por estrelas de Davi, de guerra, que lhes impediam a passagem.

Os militares israelenses cederam. Parcialmente, mas cederam, diante da conclusão lógica – diante das câmeras de televisão que acompanhavam a imensa manifestação, não poderiam cometer a loucura de disparar. Proibiram a passagem dos militantes a pé, mas autorizaram a entrada dos caminhões.

Onde está a saída?

Existe, ou não, possibilidade de solução pacífica para o conflito entre Israel e Palestina? De pronto, a resposta não pode ser otimista.Os fatos consumados, o redesenho das linhas de separação fronteiriça, os extensos períodos de ocupação militar israelense, com todos os abusos daí conseqüentes sobre as populações civis, nos levam a ter muita dificuldade de ver as partes, por moto próprio, sentadas numa mesa de negociações.

Mais difícil ainda, porque o governo Sharon conta com o apoio, para o que der e vier, das elites políticas norte-americanas. No contexto atual, isto se agrava. Não só pelo 11 de setembro e seus desdobramentos irracionais, como pela própria linha doutrinária que orienta as decisões do governo Bush (para as quais, aliás, o 11 de setembro foi de extrema utilidade), de absoluto desprezo aos movimentos que não venham no estrito interesse dos grupos econômicos mais reacionários, que lhe garantem a cobertura total, e sempre simpática, das grandes agências informativas.

E pior. Porque no mundo de hoje, liquidado o campo do, digamos, “socialismo real” – se assim se podia caracterizar o regime soviético –, desapareceram os contrapontos ao estabelecimento da hegemonia do grande império ianque. Desapareceu o equilíbrio relativo na Assembléia Geral e no Conselho de Segurança da ONU. A própria Otan – independentemente de ser instituição com ampla maioria de potências européias – se transformou numa espécie de apêndice do Departamento de Defesa americano. Principalmente pelo papel subalterno, de porta-voz dos interesses da Casa Branca, que ali é desempenhado pelo representante do governo britânico de Tony Blair, hoje no cargo de secretário-geral.

A saída tem, então, que ser encontrada por outro caminho. E este certamente passa pela União Européia, atualmente os principais parceiros econômicos de Israel e de onde saem as mais concretas manifestações oficiais de indignação contra o governo Sharon. Inclusive com ameaças de sanções econômicas radicais.

É a União Européia, mais o conjunto de governos árabes, crescentemente pressionados por seus povos, que pode impor aos EUA o recuo no apoio incondicional a qualquer abuso de Sharon. É daí que pode sair o caminho alternativo, traçado pela proposta recente da Liga Árabe e aceito pelos palestinos:

• reconhecimento das fronteiras de 1967;

• retirada das tropas israelenses para os limites dessas fronteiras;

• envio de uma Força Internacional de Paz que garanta o estabelecimento de um equilíbrio mínimo no tabuleiro de dispositivos militares par a concretização, aí sim, de uma solução definitiva, que jogue as lembranças dos atentados suicidas, pelo lado palestino, e dos tanques e buldozers israelenses sobre populações civis objetivamente desprotegidas, para o cenário de um passado que ninguém quererá mais ver de retorno.

 

Milton Temer é deputado federal pelo PT-RJ. Juntamente com os deputados Hélio Costa (PMDB-MG) e Antonio Carlos Pannunzio (PSDB-SP), esteve em Israel e nos territórios ocupados da Palestina, em missão de solidariedade da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara dos Deputados.