Defrontei-me com minha história. Fui da Ação Popular (AP), recrutado no início de 1968, em São Paulo. Militante de base primeiro, cheguei a dirigente intermediário, o que, nas condições da clandestinidade, limitava a possibilidade de conhecer em profundidade o que ocorria com a organização. Preso em 1970, não pude viver a sua etapa final.
Duarte Brasil Lago Pacheco Pereira, que foi um dos principais dirigentes da AP enquanto existiu, teve em mãos meu livro A Última Clandestina em Paris. Num reencontro com ele em São Paulo depois de quase cinquenta anos que não nos víamos, alertou-me sobre a importância do livro de Reginaldo Benedito Dias, Histórias da AP: estudos sobre as disputas pelos sentidos da história da Ação Popular, da Editora Prismas. Duarte Pereira considera o livro de Dias a melhor tentativa de recuperar a trajetória dessa singular, influente organização revolucionária.
Professor de História da Universidade Estadual de Maringá, pós-doutor em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Dias, em seu livro, mergulha em busca das origens de AP, seu desenvolvimento, crescimento, dinamismo, penetração nas massas, suas diversas etapas, para chegar a um fim quase melancólico, abarcando uma existência entre o início dos anos 1960 ao alvorecer dos anos 1980.
Nasce de esquerda, mas uma espécie particular de esquerda para uma época em que o predomínio político era dos comunistas, do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Surge como consequência da radicalização da juventude católica, especialmente de jovens oriundos da Juventude Universitária Católica (JUC), não obstante seu nascimento incorporasse setores mais amplos de uma esquerda independente. Duarte Pereira considera que ela nasce não da JUC, mas da crise da JUC. Os laços com uma Igreja radicalizada são, no entanto, inegáveis.
Seu congresso de fundação, em Salvador, data de fevereiro de 1963, mas a história remonta a 1961, quando acontece a conquista da UNE por militantes do movimento que redundaria na AP. Seu “Documento Base”, tirado no congresso, revelava que a AP era a expressão de uma geração que traduzia em ação revolucionária as opções feitas como resposta ao desafio da realidade brasileira. Pretendia-se um movimento alternativo ao PCB.
A riqueza do livro decorre muito da leitura feita pelo autor das memórias políticas de Herbert de Souza, o Betinho; de Haroldo Lima e Aldo Arantes; de Ricardo Azevedo, e do próprio Duarte Pereira, que com suas diversas interpretações fornece um painel rico, diverso, sobre as histórias da AP. Betinho, Haroldo, Aldo e Duarte são figuras essenciais na origem da AP, e Azevedo cobre uma outra fase, a da tentativa de reorganização depois da incorporação da maioria pelo PCdoB. O leitor pode até reclamar de não encontrar uma palavra final sobre a AP, mas, ao contrário, esse parece ser o mérito do livro – deixar em aberto essa história, porque de fato ela assim se encontra.
Não é simples interpretar uma organização nascida da radicalização cristã, católica, com base social pequeno-burguesa, à procura de um caminho próprio para a revolução brasileira, permeável a várias influências filosóficas antes de chegar ao marxismo, passar rapidamente pelo estruturalismo althusseriano, defender a revolução socialista nessa primeira fase, flertar, e só flertar, com o foquismo, para ao final desembocar no maoísmo e suas consequências e, na sequência, ver a maioria ser incorporada pelo PCdoB, também maoísta, a minoria pretender dar continuidade à sua existência e morrer quando surge o PT, com os militantes restantes contribuindo para o início do novo partido.
Teve presença política significativa tanto antes do golpe, desde que chegou ao poder na UNE, quanto depois. Por uma década ao menos, dominou o movimento estudantil. Com inegável presença nas camadas médias, na intelectualidade de modo geral, aproximou-se também das classes trabalhadoras em alguns estados, embora secundariamente. Como todas as organizações revolucionárias, de qualquer matiz, foi duramente perseguida pela ditadura, culminando em 1973, já na fase em que a minoria pretendia garantir sua reorganização, por enfrentar uma operação que matou seus principais dirigentes. Teve o mesmo destino de tantas outras iniciativas de esquerda do pós-ditadura: esmagada pelo autoritarismo a ferro e a fogo, desapareceu. Poderia não ter ocorrido isso não fosse o golpe.
Leitura de Betinho: a AP poderia ter se tornado um partido de massas, assim como o Brasil poderia ter vivido um período de democracia popular, com reformas estruturais e ampla participação do povo – se o golpe não tivesse ocorrido. A leitura dele é particularmente ácida com relação à política de integração à produção, mecanismo utilizado pela AP para vincular-se às classes trabalhadoras e reeducar seus militantes pequeno-burgueses, iniciativa de óbvia inspiração chinesa, de modo especial fundada na Revolução Cultural. É uma reflexão a posteriori, óbvio – ele próprio integrou-se à produção, foi maoísta também. Considera absolutamente equivocada a ideia de transformar um partido de corte essencialmente pequeno-burguês em partido proletário pelo caminho de integrar os militantes em áreas operárias e camponesas.
Nas memórias de Haroldo Lima e Aldo Arantes, na fase final, parece que a AP estava fadada à incorporação ao PCdoB, quase que um destino inelutável. Os dois tiveram papel essencial tanto na fase inicial da AP quanto no processo de definição em favor do PCdoB, e serão guindados à direção do novo partido logo que chegam. Houve uma luta interna duríssima, com muitos anátemas e sectarismos, e afinal prevaleceu a orientação da maioria constituída na Direção Nacional composta por Haroldo Lima, Aldo Arantes, Renato Rabelo e Duarte Pereira, favorável à posição de considerar o PCdoB como o verdadeiro partido do proletariado, noção fundamental para a movimentação que levou grande parte da AP à incorporação.
A minoria, representada por Jair Ferreira de Sá e Paulo Wright, seria esmagada, à maneira estalinista: os dois foram afastados de seus cargos, e depois expulsos. Jogo bruto, e a luta interna da AP não foi diferente da de outras organizações. Essa minoria defendia a revolução imediatamente socialista, contrária, portanto, à tese da revolução em duas etapas, como defendido pela maioria e pelo próprio PCdoB, óbvia herança do PCB, curiosamente. E propunha a luta para a criação do partido de tipo inteiramente novo, próprio da etapa vivida pelo marxismo-maoísmo, e não a incorporação ao PCdoB. Em abril de 1973, ocorre a incorporação ao PCdoB.
Duarte Lago Pacheco viverá uma situação paradoxal: uma das principais lideranças da incorporação ao PCdoB, vai colocar-se contra quando da decisão por discordar dos últimos movimentos da maioria, a que pertencia. Não se pretende esgotar a rica contribuição dele à constituição da AP, nem o papel desempenhado por ele na incorporação da AP pelo PCdoB, coisa que o livro faz de modo denso. Apenas resumir as divergências que o levaram a não seguir seus companheiros de maioria. Considerava que essa incorporação devia se dar sob condições, não de modo incondicional, e acrítica.
Dois aspectos o incomodavam de modo especial. O primeiro, o do papel histórico de Stalin, cuja contribuição à construção do socialismo e à derrota do nazismo reconhece, sem, no entanto, deixar de acentuar as críticas aos crimes cometidos por ele, e isso o PCdoB não admitia. E a outra questão a requerer mais discussão seria a do caráter da sociedade brasileira, para ele uma sociedade nitidamente capitalista, e não semicolonial e semifeudal, como o PCdoB pretendia.
Defendia que a unificação deveria se dar depois de um congresso da AP que debatesse essas questões, se alcançasse unidade em torno delas, para só então incorporar-se ao novo partido. Não concordava, por outro lado, com a revisão unilateral das posições da AP, como se a ela pertencessem todos os erros e ao PCdoB todos os méritos. Não teve chance de aprovar nada disso, e não acompanhou os companheiros no ingresso no novo partido.
Ricardo Azevedo foi dirigente da fase em que a AP tenta prosseguir depois da incorporação da maioria pelo PCdoB. No processo de luta interna, depois de passar preso entre 1969 e 1970, aproxima-se da corrente que considerava o Brasil um país capitalista e propugnava a revolução socialista. Sai do Brasil e na volta participa do processo de reconstrução da AP, tornando-se um de seus dirigentes nacionais. Ele e vários companheiros aproximaram-se do movimento favorável à criação do PT, e em outubro de 1979 o Comitê Central da AP aderiu oficialmente à ideia, preservando, ainda, a organização, com a compreensão de que o PT não era o partido voltado aos seus objetivos estratégicos. A rigor, a partir desse momento a AP deixa de existir. Muito há que caminhar para um balanço da experiência histórica da AP. É inegável, no entanto, a contribuição do livro de Reginaldo Dias, a abrir portas para tantas outras investigações.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros