Devo-lhe mais do que a ninguém tudo o que possa ter feito como jornalista que ele (Perseu) aprovasse.
Devo-lhe mais do que a ninguém tudo o que possa ter feito como jornalista que ele (Perseu) aprovasse.
"Sobrou-lhe dinheiro para comprar alguns presentes; mas não para comprar tudo o que teve vontade de comprar. Sobrou-lhe um pouco de tempo para ir até a cidade; mas não a tempo de voltar para jantar com a família. Sobrou-lhe paciência para esperar um táxi sentado na vitrina de uma loja rica do Centro; mas não de esperar horas debaixo da chuva na fila do ônibus que não aparece porque o motorista está em greve. Sobrou-lhe ânimo para esperar sentado, mas não para ficar de pé, impávido, como se logo dali a pouco pudesse estar a salvo em casa. Sobrou-lhe esperança para acreditar que no próximo ano tudo irá melhor e talvez o Natal que vem seja menos atribulado e menos caro; mas não lhe sobrou esperança para acreditar que daqui a alguns dias a cidade estará organizada, limpa, com transportes e água. Debaixo da chuva, no aperto das lojas, sem ônibus nem lotação, sem bonde nem táxi, com dinheiro contado, com os pés doloridos, mesmo assim ele tem de cumprir a obrigação que seu afeto lhe impõe na noite que precede o Natal: até o último minuto, antes da meia-noite, fazer qualquer sacrifício para levar alguns presentes para as crianças e para a família."
Perseu Abramo escreveu essa legenda para uma foto que faria publicar na última página de O Estado de S.Paulo no 25 de dezembro de 1959. Deu-lhe o título Até o último minuto. Ao terminar, tirou a lauda da Olivetti que manejava com só os indicadores e, às vezes, com o auxílio dos dedos médios, e deu-me para que a lesse. Minha reação - a mesma que experimento 36 anos depois, ao rever o texto na coleção do jornal, passadas duas semanas da morte de Perseu - foi de encantamento e admiração.
Chefe de reportagem, ele ensinava o bê-á-bá do ofício a jovens como Alexandre Gambirasio, Carlos Azevedo, Fernando Jordão, Vlado Herzog e eu, entre outros focas para os quais Perseu ajudava a abrir as portas do jornal. Devo-lhe mais do que a ninguém tudo o que possa ter feito como jornalista que ele aprovasse. Lembro-me do seu talento e de sua inteligência, de seu empenho profissional e, de sua afetividade, da paciência com que ouvia os subordinados, da delicadeza com todos, da capacidade de fazer ironia com o trabalho, consigo mesmo e até com suas convicções.
Lembro-me de outro texto seu, a abertura da principal matéria da histórica edição especial da inauguração de Brasília, a 21 de abril de 1960, em que citava o poema prece natalícia a Brasília, de Guilherme de Almeida. Começava assim: "Nasceu glorioso o primeiro dia de Brasília, a nova Capital do Brasil, 'meta das metas, a torre de comando, o porto de destino, o portal do sertão, a clareira na selva, a clarinada no ermo...'. Os primeiros raios de um sol que sucedeu a ligeira chuva banharam seis mil quilômetros de superfície no planalto central e a mais nova das cidades latinas. Ao nascer do dia, o presidente Kubitschek hasteou a bandeira nacional, no imenso quadrilátero que se chama praça dos Três Poderes."
A edição de Brasília - planejada, produzida e editada sob o seu incansável comando - foi uma extraordinária proeza, pelas precariedades das condições de trabalho. Cláudio Abramo, então secretário do jornal e tio de Perseu, contava que em dado momento este lhe passou um telegrama: "Pifou o telex, pifou o telefone, pifou não sei o que mais, mandem um revólver." A edição, como o nascimento de Brasília, é um emblema de um Brasil que nos parecia possível e não foi. Depois vieram os fuzis de 1964. Mas Perseu continuou, até o último minuto.
Luiz Weis é jornalista autônomo e consultor em comunicação. Está na profissão há 37 anos.