Não parece haver muitas dúvidas estarmos vivendo uma crise hegemônica no país, e se quiséssemos fixar uma data para sua deflagração aberta não seria difícil cravar 2013, quando teve início a luta para a derrubada da presidenta Dilma Rousseff, e isso se dava quando as condições começavam a ficar propícias. Tanto pela conjuntura econômica quanto pela insatisfação da juventude, que não havia sentido de perto, não vivera os efeitos da era Lula, com todos seus benefícios, e reclamava mais e mais direitos. As classes dominantes souberam cavalgar as manifestações daquele ano, sobretudo a mídia, virar o jogo e seguir adiante criando o caldo de cultura que iria desembocar no golpe de 2016.
As classes dominantes não cessaram seus ataques bem articulados, a mídia sempre ocupando lugar de destaque nas atividades golpistas, e logo após a eleição da presidenta em 2014, o golpe, Temer no governo, o apoio a Bolsonaro, os escrúpulos largados de lado, como diria o ministro Jarbas Passarinho quando da assinatura do AI-5, e a eleição de um presidente intimamente vinculado ao pensamento e à ação da extrema-direita, coisa nunca escondida. Resta analisar, a quente, o que acontece na conjuntura pós-eleitoral, já decorridos mais de três meses, e se é possível ainda falar em crise de hegemonia. Creio que sim. O país não encontrou um ator que possa construir consensos, como vem sendo largamente demonstrado.
Uma sucessão de escândalos atinge o coração do governo, envolvendo diretamente a Presidência da República e toda sua família, sucessão esmaecida em decorrência da óbvia conivência da imprensa dita hegemônica, que não vai fundo atrás das raízes do fenômeno dos milicianos, por exemplo. Difícil que um personagem como o atual presidente possa construir consensos, empolgar a sociedade brasileira, não obstante tenha sido eleito. O fato de ter recebido votos de 57 milhões de pessoas não lhe confere a possibilidade de construir hegemonia.
Há evidência de uma personalidade errática, com ministros fragilíssimos em alguns postos-chave, e que não procura conciliar a Nação, acolher posições divergentes das suas, e assim tentar fazer com que sua ideologia se afirme. Difícil também por ser uma ideologia de extrema-direita, cuja possibilidade de unir o país é sempre remota.
Há um esforço em caracterizar o governo em feudos. Há o vinculado a valores. Ministros a ecoar ideias pré-iluministas seriam diretamente vinculados ao presidente, entusiasta delas. Um outro, o econômico, onde estaria localizado o coração do projeto neoliberal, cujo arranque se dá agora com a reforma da Previdência, que sangra os pobres mais e mais, o que já vinha ocorrendo com Temer. O punitivo, que aponta um endurecimento capaz de aumentar em muito a lotação dos já precários presídios brasileiros e que consagra uma legislação excepcional, avessa até mesmo à Constituição, querendo acabar com a presunção de inocência, prática que já vem sendo executada. E a guarda espartana, que são os militares, a ocupar postos-chave e a dar sustentação ao projeto. Às vezes, tem-se a impressão de que Bolsonaro não governa, que o governo nesse início segue sendo tocado por cada um dos feudos, sem unidade, salvo a ideia de que há um inimigo, os pobres, que deve ser combatido a ferro e a fogo.
É uma situação nova. Não se trata propriamente de uma ditadura, pois o governo nasceu de uma eleição. Mas ele se cerca de medidas fortes para criminalizar os movimentos sociais, o que já fora feito sob Temer, para além das medidas que se seguirão. Há já uma legislação claramente de exceção. Os generais que acompanharam o capitão no processo eleitoral, percebendo a inevitabilidade de sua eleição, conhecendo-o como conheciam, trataram de cercá-lo de todos os lados. Compartilhavam fundamentalmente de suas ideias, não obstante não acompanhassem os exageros que pudessem comprometer o essencial do projeto, especialmente o econômico, o cerne do projeto neoliberal, do qual não abrem mão. Sabiam com que personalidade lidavam e que só eles podiam controlá-la. Teriam, tinham consciência disso, de lidar com os seus destemperos, com sua natureza errática.
E fez-se uma espécie de bonapartismo. Os generais lidam com os ziguezagues do presidente, a quem conheciam muito bem, com suas explosões, suas opiniões desconcertantes. Na maioria das vezes preferem se calar, mas são uma retaguarda essencial para evitar que o governo saia dos trilhos quanto a aspectos essenciais. Já não foram poucos os vários movimentos dos generais, particularmente do vice-presidente Mourão, que aqui e acolá repõem as coisas no lugar, com algum bom senso.
Repor as coisas no lugar do ângulo do grande projeto de entrega do país às multinacionais, de garantir a exploração da força de trabalho segundo as rigorosas normas do neoliberalismo, de assegurar a primazia ao capital financeiro. Brigar com os chineses, com os árabes, invadir a Venezuela, tudo isso foi devidamente refutado pelos generais, especialmente por Mourão, parcialmente que seja. Mantêm fidelidade aos EUA, mas não exageram, como quer o presidente eleito. Até porque isso prejudicaria os negócios. Não são poucos os generais em postos-chave, oito no primeiro escalão, mais de uma centena em toda a administração. Nem a ditadura militar gostava de exibir tantos no topo do governo.
No imbróglio Bebianno, foi revelada uma reunião às quartas-feiras com os generais, espécie de controle e filtro do governo, como se viu. O “conselho da República” são os oficiais-militares. Revelado agora de modo claro. Não é propriamente o presidente que governa. Melhor, governa, mexe com o que tem de mexer de acordo com a determinação “vinda de cima”, que capitão não manda em general, a não ser que o capitão fosse de outra estirpe.
Isso, esse domínio militar, essa ascendência, é uma clara evidência de que a crise de hegemonia persiste. E isso não pode ser entendido como nenhum golpe – nasce de um acordo entre o presidente eleito e os generais, certamente. Com os problemas que ele tem, devem ter pensado os militares: nós o conhecemos bem, apesar de tudo é dos nossos, e não irá nos desobedecer. Como não tem desobedecido, e nem se incomoda de ser desmentido em público.
Quanto mais as trapalhadas dos filhos e dele próprio o fragilizam, mais e mais cresce a força dos generais. Eles têm se constituído, de um lado, numa espécie de “retaguarda da sensatez”, por incrível que pareça – que não contraria em nada o essencial do projeto. O episódio da Venezuela é uma evidência disso. Mourão descartou aventurar-se numa cruzada bélica, não obstante o presidente e os filhos bradassem a favor disso, e apesar das exigências de Trump. Melhor enfrentar o front interno, assegurar a reforma da Previdência, o Código Moro, tanta coisa, do que envolver-se numa luta como aquela, para a qual o Exército brasileiro está longe de estar preparado, sobretudo diante das forças armadas venezuelanas, treinadas de modo sistemático face ao cerco constante de que é vítima, sob o estímulo dos EUA.
O Exército brasileiro – a maior força entre as três armas – foi galvanizado por forças conservadoras desde sempre. Houve momentos de insubmissão, como o Tenentismo, mas que não conseguiram transformar-se em força hegemônica. Ganhou intensidade a vinculação com o imperialismo norte-americano, não obstante uma pequena parte tenha se colocado a favor de teses nacionalistas. Houve situações, como a da posse de Juscelino, em que o marechal Lott garantiu a continuidade do Estado de direito manu militari. Havia alguns militares nacionalistas no decorrer da ditadura, embora fossem eles, também, torturadores. A hegemonia, no entanto, ao longo da história, foi rigorosamente conservadora e sempre subordinada ao pensamento americano, e a ditadura militar de 1964 se implantou sob as graças dos EUA. De modo surdo, as três armas, o Exército, sobretudo, se articularam no período de Lula e Dilma e resolveram cavalgar a candidatura Bolsonaro, e estamos diante do quadro atual, de tutela militar.
Volto: a “retaguarda da sensatez”, no entanto, não esconde o lado “tropa de choque” do Exército, a força predominante presente no governo. Segue como força conservadora convicta e relativamente coesa. A presença militar é um espectro a rondar o país, um recado permanente à sociedade. A mão de ferro faz questão de se apresentar, mostrar as garras, dizer que as armas podem ser usadas se a conjuntura exigir, se a democracia quiser extrapolar os limites que o Exército estabeleceu para o funcionamento da democracia – é difícil até usar o termo democracia numa situação como essa.
Essa retaguarda pretende ser, sobretudo, uma ameaça à esquerda, aos movimentos sociais, à sociedade civil. Que ninguém se engane quanto a isso. A luta político-social não deve demorar a colocar-se em cena, e os militares sabem disso. Estão a postos, prontos para agir – é duro dizer, mas verdadeiro. Estão a postos, e já agindo.
Há poucos dias, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, que obedece fielmente as ordens militares, autorizou o uso da Força Nacional de Segurança na Praça dos Três Poderes e na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, estipulando o prazo de 33 dias a partir de 17 de abril. Foi determinação do general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional. O próprio general explicou a medida – “desencorajar violência em atos”. O emprego da força, na explicação dele, seria de caráter preventivo, em função da previsão de manifestações na Esplanada dos Ministérios. Jogo pesado, jogo bruto, característico de regimes de força. O gatilho dessa medida foi o anúncio da realização do Acampamento Terra Livre, marcha de indígenas de diversas regiões do Brasil, que ocorre há quinze anos em abril. A liberdade de manifestação foi pro espaço com a tropa de choque nas ruas.
Ingenuidade não cabe aqui. Os generais ficam calados quando os escândalos acontecem, inclusive os que envolvem o presidente e sua família. Falam só o mínimo necessário. Quem sabe até esfreguem as mãos de alegria. Melhor tê-lo fraco, no canto do ringue, como tem ficado em muitos momentos. Só que eles sabem: um presidente enfraquecido pode suscitar, e vai suscitar, reações populares. Um governo a aplicar medidas tão cruéis contra a população provoca descontentamento e movimentos contrários. E o governo evidencia à luz do dia a tutela, a força militar, disposta a ameaçar quantos se disponham a tais reações.
Não estou entre os que consideram haver uma espécie de combinação entre militares, Olavo de Carvalho, Bolsonaro e seus filhos, uma espécie de teatro do caos, como se tudo caminhasse bem no governo com essa “estratégia”. Há contradições entre eles, reais, mas não capazes de inviabilizá-los, ao menos ainda. O presidente experimenta a pior avaliação num período de três meses, se considerarmos os três últimos presidentes. O centro de tudo, para o atual governo, são as medidas de escorcha, boa parte já realizadas sob Temer, e que tem agora a reforma da Previdência como a joia da coroa para o capital.
Importante, portanto, conhecer esse quadro.
Essa crise de hegemonia.
A existência de um governo sob tutela militar.
A luta não será fácil.
Há um longo caminho pela frente.
De acumulação de forças.
De construção de uma nova hegemonia.
De conquista de corações e mentes.
De volta ao povo.
De recuperação da democracia.
A extrema-direita ganhou a eleição, montou um governo com suas características.
Nós vamos ter que unir todos os que tenham compromisso com as liberdades democráticas, todos, unir toda a esquerda, mas não só ela, e fazer a luta para ultrapassar esse deserto de tutela militar a garantir essa monumental retirada de direitos.
A vida não para.
A luta continua!
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros