Nacional

Ao todo, 19 milhões de pessoas terão acesso facilitado à arma de fogo, caminhoneiros, jornalistas, políticos com mandato eletivo, guarda de trânsito e até conselheiros tutelares

Bolsonaro deu fim a dezesseis anos de política de desarmamento que salvou milhares de vidas de brancos, negros, homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, civis e policiais. Foto: Marcos Corrês/PR

O que podemos esperar de um governo que durante sua campanha política não apresentou nenhuma proposta para a nação senão unicamente a liberação das armas?

Basta que verifiquemos em uma breve análise quais foram as duas ações principais na primeira semana da aurora do novo governo: o aumento às avessas do salário mínimo e a liberação do uso das armas.

Mas o que cargas d’água é o salário mínimo e por que estamos falando primeiramente da importância do valor mínimo pago ao trabalhador e não das milhares de armas que poderão estar em circulação?

O salário mínimo é o valor mínimo pago ao trabalhador, que a princípio deveria sanar suas necessidades básicas. Foi promulgado em decreto pelo presidente Getúlio Vargas em 19361, contudo 169 países fazem uso do salário mínimo para o cálculo salarial do trabalhador, tendo sido criado na Nova Zelândia em 18942, ou seja, não é uma invenção comunista ou uma jabuticaba brasileira.

O salário mínimo está garantido na Constituição Federal:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV - salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim.

O aumento dado ao salário mínimo na primeira ação desse governo foi contra todos os cálculos em diversas instâncias. No Congresso Nacional, o mínimo deveria ser de R$ 1.000,06 (mil reais e seis centavos)3. Segundo nota técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o salário mínimo em razão do contido na Lei no 13.152 de 29 de julho de 2015, Política de Valorização do Salário Mínimo, promulgada pela presidenta Dilma Rousseff, deveria ter atingido o patamar de R$ 1.000,00 (mil reais)4.

O salário mínimo sancionado pelo governo foi de R$ 998,00 – contra lei estipulada em 2015 e contra o proposto pelo Congresso Nacional.
Ademais, o presidente Jair Bolsonaro interrompeu uma política de aumento real do salário mínimo de 25 anos, ou seja, em vez de manter o reajuste pela inflação medida pelo INPC, mais variação do PIB, determinou que o salário mínimo seja corrigido apenas pela inflação5.

Em contrapartida, o referido presidente emitiu decretos facilitando o porte e a posse de armas de fogo a civis, inclusive armas de uso exclusivo das Forças Armadas. Além de emitir decretos facilitando o porte e a posse, abriu precedentes para que crianças possam praticar tiro esportivo e também a liberação da caça.

Em detrimento de uma política social, pois o salário mínimo é uma política social, o presidente Bolsonaro declinou sua política para uma corrida armamentista em um país onde os índices de violência são alarmantes, como se na Constituição Federal o brasileiro tivesse direito a portar uma arma tal qual é a constituição americana.

Ao todo, 19 milhões de pessoas terão acesso facilitado à arma de fogo, caminhoneiros, jornalistas, políticos com mandato eletivo, guarda de trânsito e até conselheiros tutelares6.

Notícia do portal do jornal El País, em seu título, dá o tom do clima que está pairando na nação, “Absoluto desastre”; e relata, ainda, que a decisão do presidente fere de morte o Estatuto do Desarmamento.

O mandatário Jair Bolsonaro e sua equipe de governo deram fim a dezesseis anos de política de desarmamento que salvou milhares de vidas de brancos, negros, vermelhos, amarelos, homens, mulheres, crianças, ricos, pobres, civis e policiais.

Posse

No dia 15 de janeiro o então presidente Jair Bolsonaro assinou o decreto que facilitou a posse de arma de fogo no país. Dessa forma, hoje o cidadão que quer ter a posse de uma arma basta informar no seu requerimento que mora em uma cidade cujo estado detém índice de homicídios maior do que 10 por 100 mil habitantes, ou seja, todo o país7. Após deverá preencher uma série de requisitos legais como curso de tiro, exame médico e psicológico, além de, claro, comprar uma arma de fogo.

Fonte: jornal O Estado de S. Paulo

Porte

No dia 8 de maio, Jair Bolsonaro assinou o decreto que facilitou o porte de armas no Brasil para diversos profissionais. O direito de porte é a autorização para que a pessoa possa transportar sua arma fora da sua casa8.

Terão o porte facilitado o instrutor de tiro ou armeiro credenciado pela Polícia Federal, colecionador ou caçador com Certificado de Registro de Arma de Fogo expedido pelo Comando do Exército, agente público, inclusive aposentado, da área de segurança pública, da Agência Brasileira de Inteligência, da administração penitenciária, do sistema socioeducativo, desde que lotado nas unidades de internação, que exerça atividade com poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente, ou que pertença aos órgãos policiais das assembleias legislativas dos estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal, detentor de mandato eletivo nos poderes Executivo e Legislativo da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, quando no exercício do mandato, advogado, oficial de justiça, dono de estabelecimento que comercialize armas de fogo ou de escolas de tiro ou dirigente de clubes de tiro, residente em área rural, profissional da imprensa que atue na cobertura policial, conselheiro tutelar, agente de trânsito, motoristas de empresas e transportadores autônomos de cargas e funcionários de empresas de segurança privada e de transporte de valores.

Arsenal

O texto também especifica que são armas de calibre restrito pelas Forças Armadas, pistola 9 mm, e Polícia Civil e Militar, pistola .40, bem como a .357 Magnum.

A munição ora liberada para uso, que era de apenas 50, passa de 1 mil para armas de uso “restrito” e 5 mil para armas de uso regular. Armas que nem mesmo a própria Guarda Civil Metropolitana tem autorização para utilizar estarão à disposição do cidadão9.

Além disso, a atualização do mercado da importação de armas estará em vigor a partir de sessenta10 dias após a promulgação do decreto, aquecendo ainda mais o aumento do número de armas em circulação no país.

Antes do decreto, as armas liberadas detinham o poder de impacto de 407 joules; agora, o cidadão pode adquirir armas de até 1.620 joules11. Armas como a temida .357 Magnum da forja Smith & Wesson estarão liberadas para a importação do público dentro de sessenta dias.

Reprodução: Portal G1

 

Crítica dos especialistas

Apesar de ter o apoio da bancada da bala, das empresas armamentistas e dos seus apoiadores mais fanáticos, a ação do presidente recebeu pesadas críticas por parte de especialistas, profissionais de segurança pública em diversas instâncias governamentais, bem como pedido de explicações por parte do Supremo Tribunal Federal (STF).

O Instituto Sou da Paz publicou uma nota no dia 7 de maio em que contesta veemente a decreto publicado por Jair Bolsonaro, que apenas beneficia um pequeno número de indivíduos12. E ainda afirma: “Insistir em medidas que facilitam a compra e a circulação em vias públicas de armas e em medidas que sobrecarregam as instituições públicas em prol do benefício de um pequeno grupo só vai piorar o grave cenário da segurança pública enfrentado pela população brasileira”. Esse grupo ao qual o instituto se refere são os colecionadores, caçadores e atiradores que foi muito beneficiado pelo decreto expedido.

O Fórum Nacional de Segurança Pública se manifestou dizendo que “a medida é claramente uma tentativa de driblar o Estatuto do Desarmamento, que está em vigor no país desde 2003, e ignora estudos e evidências que demonstram a ineficiência de se armar civis para tentar coibir a violência em todos os níveis”.

O STF, através da ministra Rosa Weber, determinou que o presidente tem cinco dias para dar explicações acerca do decreto13. O coronel da Polícia Militar do Espírito Santo, Nylton Rodrigues Filho, hoje secretário de Defesa Social da cidade de Serra, declarou que o novo decreto do governo Bolsonaro que facilita o porte de armas para profissionais de diversas áreas, como caminhoneiros, advogados e políticos, pode aumentar o número de homicídios em Serra; o secretário afirmou ainda que mais armas nas ruas só tende a aumentar mais a violência14.

O Congresso e o Senado já fizeram os seus estudos técnicos a respeito do decreto, e as avaliações são extremamente negativas15.
Lembrando que o Congresso Nacional, em razão das excrecências existentes no decreto que permitia servidores imporem sigilo às informações públicas, suspendeu a norma editada à época, valendo-se dos apontamentos técnicos das casas legislativas.

Análise de inteligência

O governo, ao se valer da extrapolação dos seus poderes, deixou claro à nação brasileira que não se importará de fato com os programas sociais, haja vista que uma das principais políticas sociais, a do salário mínimo, que poderia por força de uma “canetada” ter o seu aumento real aferido, foi prontamente descartada.

O presidente Bolsonaro, que por vezes está com a cabeça nos EUA, deve achar realmente que a população brasileira formará milícias, haja vista que o país do faroeste conta com 165 organizações paramilitares16; tal cenário aqui no país só fomentaria ainda mais a violência.
Além do aumento dos índices de violência que já foi devidamente analisado em artigo publicado anteriormente em Teoria e Debate, “Pátria armada: a incompetência da segurança pública”, temos agora o perigo de armas nas mãos de menores de idade, o aumento do estoque de munições sem os devidos cuidados, o aumento da circulação de armas de fogo no país, bem como armas de maior poder de letalidade e, por conta da liberação de importação de armas, a fomentação do mercado negro, que agora terá um novo público além do crime organizado: o cidadão comum.

Conclusão

Só resta ao Congresso Nacional e à sociedade organizada brecar a sanha miliciana do atual mandatário, pois o cenário desenhado não terá mocinho nem bandido, terá apenas vilões e vítimas.

Abdael Ambruster é membro do Grupo Policiais Antifascismo, pós-graduado em Segurança Pública e Direitos Humanos, agente de segurança penitenciário, ex-diretor de Inteligência de um órgão governamental.