Internacional

A um ano das eleições gerais, o Partido do Congresso Nacional Africano (CNA) está firmemente instalado no poder na África do Sul. Seu último congresso, realizado em Bloomfontein, em dezembro de 1997, foi a oportunidade para que Mandela entregasse o bastão oficialmente para aquele que era evidentemente o sucessor escolhido, Thabo Mbeki (primeiro-ministro no atual governo). Este tornou-se presidente do CNA e, se como é previsível hoje, o partido for reeleito em 1999, ele se tornará também presidente do país. O “pai da nação”, Nelson Mandela, permanece ainda próximo do poder, acima das facções e tendências.

Em dezembro de 1996 uma nova constituição, negociada durante três anos entre o Partido do Congresso Nacional Africano e as outras formações políticas do país, principalmente o Partido Nacional (PN) – força majoritária no seio da minoria branca – foi finalmente promulgada. O processo engajou ainda o poderoso movimento sindical depois que este conseguiu impor a retirada de uma cláusula, originariamente exigida pelo patronato, que garantia o “direito” ao lock-out.

Mandela obteve igualmente o aval do empresariado. Depois de manifestarem algumas resistências, as associações patronais endossaram um projeto que garante constitucionalmente o direito à propriedade, o que exclui nacionalizações que poderiam afetar os detentores do capital e a minoria branca (13% da população), que continua depositária do essencial das riquezas do país. Essa constituição de inspiração liberal garante os direitos fundamentais e propõe a clássica divisão entre os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, concedendo, no entanto, poderes bastante amplos às províncias.

Outra importante vitória do governo refere-se ao afastamento, pelo menos até o presente momento, das ameaças de guerra civil e tumultos étnicos. Houve uma nítida diminuição da violência política que quase levou o país ao abismo no início dos anos 90. A “guerra de baixa intensidade”, concentrada sobretudo na província de Natal, a partir de 1991, foi temporariamente suspensa, o que não significa que as tensões tenham sido totalmente superadas. O movimento Inkatha, dirigido com mãos de ferro por Mangosuthu Buthelezi, foi mais ou menos obrigado a depor as armas. Ainda que suas reivindicações relativas à devolução dos poderes concentrados no Estado central não tenham sido totalmente conquistadas, o federalismo resultante da nova constituição outorga uma autonomia razoável às províncias, entre elas a de Natal, dominada pelo Inkatha. Este, por sua vez, tendeu a posições mais moderadas. Nesse meio tempo, alguns dos representantes da sua “linha dura”, sobretudo Thomas Shabalala, que dirigia uma milícia particularmente sanguinária no centro de Natal, foram expulsos da organização de Buthelezi. Frente a essa evolução, alguns dirigentes do CNA empreenderam negociações com o Inkatha, deixando a entender a possibilidade de uma fusão com o próprio CNA. No momento, porém, Buthelezi afirma que esta eventualidade não pode ser colocada na ordem-do-dia enquanto o CNA mantiver sua aliança com o Partido Comunista sul-africano e a central sindical Cosatu.

A Comissão Verdade e Justiça

Paralelamente a estes acontecimentos, o governo soube gerir habilmente o processo desencadeado pela Comissão Verdade e Justiça – presidida pelo arcebispo Desmond Tutu – cujo objetivo é de trazer à luz os crimes perpetrados durante o período do apartheid. Propondo a impunidade aos que aceitam testemunhar, a operação pretende atingir dois objetivos: de um lado, permitir às vítimas divulgar e exorcizar, minimamente, seu passado de sofrimentos e humilhações; de outro, dar aos carrascos – se confessam seus crimes – uma saída “honrosa". Até o presente momento, várias centenas de pessoas (majoritariamente originárias da polícia sul-africana) submeteram à Comissão um pedido de anistia. Algumas revelações das testemunhas chamadas a depor perante a mesma, sobretudo a do ex-policial Eugene de Kock, envolveram vários militares e políticos do antigo governo, inclusive o ex-presidente P. W. Botha. Mas, pela interferência de Mandela, estes responsáveis (entre os quais Botha) foram poupados de serem chamados a depor. A mesma atitude foi adotada em relação aos altos dirigentes do Inkhata, entre os quais Buthelezi. Estas manobras não agradaram o arcebispo Tutu – que queria prosseguir o inquérito até o fim – e amplos setores da opinião pública. Mas, a despeito das pressões, Mandela não voltou atrás: para ele, o importante é manter a qualquer preço o processo de reconciliação nacional aberto em 1994, mesmo que isto queira dizer passar a borracha sobre a história sórdida do apartheid.

Para contemporizar ainda mais, Mandela anistiou alguns dos responsáveis por matanças, como o tristemente famoso Brian Mitchell, um capitão de polícia condenado a trinta anos de prisão pelo massacre de Trust Feeds. Com isso, a direita branca está tranqüila, sobretudo porque seus porta-vozes – principalmente o ex general Constand Viljoen, diretor do Freedom Front (Frente da Liberdade) – são constantemente consultados pelo CNA, que não mede esforços para obter o apoio dos africânderes (sul-africanos brancos de origem holandesa). Para Mandela, esta reconciliação teve resultados essencialmente positivos: os “ultra” foram neutralizados, o exército e a polícia foram incorporados ao novo Estado, fato que elimina praticamente todos os riscos de desestabilização pelos aparelhos repressivos. Permanece o incontornável Partido Nacional que, forte em seus bastiões na província do Cabo, decidiu se retirar do governo de unidade nacional. Mas o PN procura, antes de tudo, se “reinventar” enquanto oposição “leal”, aglutinar os dissidentes do CNA e de outras forças políticas e assim construir uma ampla aliança de direita, que poderia agrupar, além da minoria branca, setores descontentes das populações negras. Mas este projeto só pode ser viabilizado a longo prazo.

Nessas condições, Mandela e seu sucessor, o primeiro-ministro Mbeki, se consideram satisfeitos. O processo iniciado em 1990 está praticamente concluído. Nenhuma oposição séria, nem à direita nem à esquerda, parece ameaçar, pelo menos em um futuro previsível, a hegemonia do CNA. Resta saber se o afastamento de Mandela, que goza de uma imensa legitimidade simbólica, prejudicará o partido, que terá que enfrentar desafios importantes e escolhas difíceis.

Balanço econômico menos glorioso

Esta evolução política permitiu sem nenhuma dúvida ao governo do CNA consolidar seu poder. Em contrapartida, no plano social e econômico a situação parece mais instável. Eleito com base em um programa denominado de “reconstrução e desenvolvimento”, o CNA havia prometido dar um fim às injustiças criadas pelo apartheid e melhorar o dia-a-dia da grande maioria da população. Cinco anos mais tarde, todos constatam que as realizações não estiveram à altura das promessas, principalmente no que diz respeito à habitação, que era uma das mais importantes bandeiras. Apenas algumas dezenas de milhares de moradias foram efetivamente construídas (prometia-se 200 mil por ano até 1999!), perpetuando-se uma situação em que as condições de vida da grande maioria dos habitantes das townships deixam a desejar e na qual se verifica um processo, que vem se multiplicando desde 1994, de invasão de casas por milhões de pessoas.

O problema do emprego permanece também muito grave – o índice de desemprego atinge mais de um terço da população sul-africana ativa – e mal começou a ser enfrentado, apesar do aumento dos investimentos estrangeiros (2 bilhões de dólares em 1995-96) e de uma taxa de crescimento em alta (2,5%), embora ainda aquém do aumento da população. Segundo Johan Louw, economista chefe do grupo Sanlam, um milhão de novos desempregados se somaram à massa dos sem-emprego desde 19931. Só no setor da mineração foram suprimidos 140 mil empregos. Por sua vez, o governo sul-africano estima que pelo menos foi capaz de estancar o forte declínio iniciado nos anos 802.

Frente a este quadro, o CNA mudou de rota. A nova orientação originária do programa Gear (Growth, employement and redistribution), que abandonou o programa anterior elaborado conjuntamente pelo CNA, Partido Comunista e a central sindical Cosatu no período das eleições, se enquadra inteiramente na ortodoxia neoliberal dominante. Desse ponto de vista, o papel do Estado é o de apoiar a empresa privada, portanto privatizar (o setor público sul-africano ainda é muito importante) e facilitar a inserção da África do Sul na economia internacional. Daí, a despeito das resistências sindicais, a aceitação do receituário do FMI e do Banco Mundial. Segundo Patrick Bond, economista do National Institute for Economic Policy, um think-tank ligado ao movimento sindical, esta lógica levará a economia sul-africana à desindustrialização e a especializar-se no setor de matérias primas, no qual as “vantagens comparativas” históricas da África do Sul parecem ser mais promissoras no mercado internacional.

Criticada pelos sindicatos, esta nova política econômica foi declarada “não negociável” pelo ministro das finanças Trevor Manuel, que é aclamado pelo patronato como o salvador. Entre as medidas mais polêmicas decorrentes do Gear, está a supressão das barreiras tarifárias em setores industriais como têxtil e vestuário, de maneira a que a África do Sul respeite o receituário do Gatt. Segundo os sindicatos, essas medidas provocaram o desaparecimento de várias dezenas de milhares de empregos, sobretudo na Cidade do Cabo e em Durban. Paralelamente, o governo tenta acelerar as privatizações, entre elas a da Telkom, um imenso monopólio estatal que domina o setor das comunicações.

Para Mbeki e os defensores do Gear, o governo sul-africano não tem escolha. O ministro das finanças, Trevor Manuel, afirma que a África do Sul deve estar alinhada com as políticas atualmente dominantes no mundo se quiser evitar a fuga de investimentos e a desvalorização da moeda local, o rand, que já sofreu uma queda de 20% durante 1996. O patronato está em júbilo. Segundo David Mohr, economista do Old Mutual, “o CNA por fim se distancia das visões idealistas da Cosatu. Os moderados finalmente se impuseram e o governo enfim se rende à realidade de uma economia orientada para o mercado, tornando qualquer volta atrás impossível”3.

As vozes discordantes no interior do CNA e do PC consideram que o atual governo está perpetuando as políticas implementadas pelo Partido Nacional em seus últimos anos no poder, cujos resultados foram o agravamento da polarização em uma das mais desiguais sociedades do mundo4. Apesar de o caráter racial dessa polarização já não fazer parte do jogo, é fato que a grande maioria dos pobres é negra, enquanto a minoria branca, com exceção de alguns setores marginalizados, vai bem. No entanto, entre esses dois pólos vem se desenvolvendo uma importante classe média negra, ávida por apropriar-se das vantagens e privilégios anteriormente reservados aos brancos.

Reviravolta nos alinhamentos

O setor empresarial negro está em plena fase de crescimento, tanto mais que o grande capital majoritariamente branco está prestes a apoiar o que está em vias de emergir como uma nova burguesia negra. Em 1996, o grande conglomerado Anglo American (que sozinho detém mais de 50% das minas e da indústria) cedia uma parte de seus ativos a um consórcio industrial e financeiro (National Empowerment Consortium), dirigido nada mais nada menos que pelo antigo secretário-geral do CNA, Cyril Rahmaphosa. É de se notar que, em 1948, na época da conquista do poder por um Partido Nacional então representativo das camadas populares e médias africânderes, o Anglo havia procedido a uma operação semelhante apoiando um conglomerado dirigido por africânderes, assegurando-se assim a cooperação do novo poder político. No entanto, a situação atual não é igual. As classes médias e profissionais negras, que constituem uma pequena minoria no interior da maioria africana, ainda não estão em condições de se impor. Afinal, há não muito tempo o CNA pregava a “socialização da riqueza nacional”. Ainda hoje, o movimento de Mandela se inscreve em uma “aliança” oficial e institucional que engloba o Partido Comunista e a Cosatu.

Essa aliança, no entanto, está hoje em questão. As decisões que dizem respeito às grandes escolhas do governo são tomadas a portas fechadas, em um nível restrito que exclui até mesmo a maioria dos deputados do CNA. Segundo seus representantes no Parlamento, “já não existe democracia na organização e as decisões são tomadas por consultores que trabalham diretamente para o presidente”5. Estas críticas foram retomadas durante o último congresso, mas sem que medidas concretas tenham sido adotadas para mudar esta situação.

Na base, as estruturas locais da organização estão amplamente marginalizadas, o que faz com que muitos afirmem que há agora “dois CNA, o do governo e o dos afiliados”. Esta constatação bastante dura é feita particularmente pelos que são ao mesmo tempo militantes nas organizações sindicais e no Partido Comunista6.

“Africanismo” e populismo

No entanto, a oposição de esquerda ainda não se constitui em grave perigo para o CNA. Entre as razões que explicam essa situação (além do enfraquecimento dos movimentos populares em razão da “decapitação” a que foram submetidos em 1994, quando uma grande parte de seus quadros foi integrada às estruturas do Estado) está a “valsa das hesitações” do PC, dilacerado entre sua inserção nas estruturas diretivas do CNA (e a presença de quadros comunistas no próprio governo) e seu enraizamento na base. Apesar de seus 75 mil afiliados, o PC é pouco influente, pois não ousa questionar muito as políticas governamentais, criticadas pela base. Jeremy Cronin, um quadro do partido, pode falar de cadeira depois que sua crítica pública à atual política econômica do governo suscitou não só a ira de Mandela, mas também a de Charles Nqakula, secretário-geral do PC, que afirma que “a aliança com o CNA não pode ser questionada”7.

Nesse contexto, o terreno está fértil para o surgimento de movimentos de cunho populista, baseados em temas de fácil apelo como a “corrupção” das novas elites negras e sua colaboração com a minoria branca. Durante os últimos meses, esse fenômeno ganhou certa visibilidade sobretudo nas regiões tradicionalmente vinculadas ao CNA, como a de Cabo do Leste, reduto histórico do movimento de Mandela.

Uma das estrelas do CNA nesta região, Bantu Holomisa – que até muito recentemente foi ministro-adjunto do gabinete sul-africano e que obteve, com Mbeki e Winnie Mandela, o maior número de votos no congresso do partido, em 1995 – tornou-se líder desse neopopulismo. Expulso do governo, e posteriormente do CNA, Holomisa continua popular na província de Cabo do Leste, onde conseguiu, apesar da oposição manifesta de Mandela, reunir multidões de vários milhares de pessoas. Ele não poupa ataques abertos a vários dirigentes do CNA, acusando-os de ligação com os meios financeiros e de dilapidar os fundos públicos8. Enquanto isto, o governo provincial de Cabo do Leste, dirigido por Raymond Mhlaba, é acusado de incompetência e corrupção.

Ataques como esses, provenientes das bases regionais do CNA deixadas à margem do poder político, estão em curso em outras regiões do país, sobretudo no Estado Livre de Orange, onde o primeiro-ministro Terror Lekota, depois de ter denunciado a corrupção de alguns quadros do partido, demitiu-se em conseqüência de pressões de seus próprios militantes, inclusive Pat Matosa, presidente do CNA naquela província, e isto apesar dos esforços pessoais de Mandela9. Na província de Natal, o partido está profundamente dividido; o mesmo ocorre na província do Cabo, onde perdeu as últimas eleições municipais em 1996.

No momento atual, os populistas que poderiam se unir a Holomisa não têm nem programa nem alternativas e se contentam em criticar o governo. Bantu Holomisa é popular no seio de uma parte importante das comunidades khosas (majoritárias no centro e no leste do país), sobretudo entre os jovens. Ainda que até a presente data tenha se recusado a fazer o jogo perigoso do etnismo, não é certo que se mantenha nesta linha. Enquanto isso, deu início a negociações com diversos movimentos, inclusive com o Partido Nacional, com o objetivo de construir uma grande aliança anti-CNA.

O caso Winnie Mandela

Holomisa aguarda a sua hora. Mas Mbeki certamente não ficará passivo e, considerando-se o poder que lhe confere o controle do Estado, poderá sem dúvida somar ainda mais forças até as próximas eleições. Recentemente Mbeki tentou, com certo sucesso, obter o apoio do que resta do Pan Africanist Congress (PAC), um movimento que teve seus anos de glória na década de 70 e que desde então busca se impor no cenário político com um discurso populista, violentamente antibranco. Isto permitiria ao primeiro-ministro não apenas se apresentar como aglutinador, mas também aproveitar-se de uma aliança com setores que, em certa medida, competem com dissidentes populistas como Holomisa.

Mbeki, até certo ponto, conseguiu mesmo neutralizar outros dissidentes que tentavam se aglutinar no CNA em torno de Winnie Mandela, que tem, sobretudo nos setores mais pobres da população, muita credibilidade. Paradoxalmente, as acusações dirigidas contra ela pela Comissão do arcebispo Tutu reforçaram seu prestígio. Ainda que tenha sido acusada de ter participado de assassinatos e de exações contra negros no seu reduto de Soweto nos anos 80, a ex-esposa de Mandela soube reverter o quadro a seu favor, aparecendo como “vítima” do apartheid. Ao mesmo tempo, seu discurso populista sempre atinge cordas sensíveis. Um pouco antes do congresso do CNA ela chegou a ser proposta por vários membros como candidata à vice-presidência, o que fazia tremer a direção do partido. Conchavos com Mbeki e Mandela conseguiram evitar o enfrentamento. Winnie recuou, mas provou ao partido que continua sendo um pólo potencial.

O certo é que o movimento que esteve no centro da luta contra o apartheid não voltará a ser o que era. Dividida entre suas simpatias pelos jovens lobos que tomam de assalto o setor privado até então monopolizado pelos brancos; e as massas urbanas e rurais desvalidas; ameaçada por um contexto internacional muito restritivo do ponto de vista econômico, a organização dirigida por Mandela está numa difícil encruzilhada.

Pierre Beaudet é diretor de Alternatives – réseau d'action et de communication pour le développement international (Montreal) e autor dos livros L'Afrique du Sud en mutation (L'Harmattan, Paris, 1994); Southern Africa and Apartheid (MacMillan, 1996) e Depuis que nous sommes libres – entretiens sur l'Afrique du Sud post apartheid (L'Harmattan, Paris, 1997)

(Tradução Mila Frati)