Qualquer governante, para converter seu programa de governo em políticas públicas em benefício da população, precisa de três condições: capacidade financeira (recursos), capacidade institucional e instrumental (eficiência da máquina pública, mecanismos de regulação e controle) e capacidade operacional (interação com a sociedade, com a política, inclusive com outros poderes, e com o mercado).
O governo Bolsonaro – com sua visão de mundo fundamentalista, seu estilo reativo, confrontador e voluntarista, combinado com o conteúdo polêmico das políticas que adota – tende a falhar, em maior ou menor escala, em cada uma dessas dimensões, senão vejamos.
A capacidade financeira está duplamente comprometida. De um lado pela crise fiscal e pelo baixo crescimento econômico, que dificultam simultaneamente o aumento da arrecadação, o investimento público e a manutenção, a ampliação ou adoção de novas políticas públicas com caráter distributivo ou redistributivo. De outro, pela decisão política, por parte do governo, mas também apoiada pelo Congresso, de ser contra qualquer aumento de tributos, o que poderia ampliar a arrecadação, e favorável a um forte e amplo ajuste fiscal, que corta gasto público e deixa de atender as demandas da população por políticas públicas, notadamente nas áreas de saúde, educação e segurança.
Além disso, a visão fiscalista e o apoio governamental à continuidade da vigência da Emenda à Constituição 95, do congelamento dos gastos públicos, contribui para agravar o quadro, o que inevitavelmente pode levar ao colapso dos serviços públicos, com a punição dos vulneráveis, que dependem dos programas sociais e do fornecimento de bens e serviços pelo Estado.
A capacidade institucional também se encontra duplamente comprometida. De um lado, pelas medidas de desmonte da máquina pública e dos mecanismos de regulação, fiscalização e controle, com a desregulamentação e o enxugamento dos órgãos e entidades da Administração Pública, e, de outro, pela visão ideológica equivocada, segundo a qual o Estado é perdulário, ineficiente e corrupto, além de estar dominado pela esquerda e pelos “comunistas”. Por isso mesmo, na lógica do governo, seria mais eficaz e mais barato adquirir no mercado os bens e os serviços atualmente prestados pelo Estado.
A capacidade operacional, que depende da interação do governo com a sociedade, com os outros poderes e com o mercado, também está comprometida pelo menos em duas dessas três dimensões.
A interação com a sociedade inexiste. O governo desativou ou esvaziou os principais espaços de debate e diálogo com os setores organizados da sociedade. Além disso, passou a criminalizar os movimentos sociais e considerar adversárias as organizações da sociedade civil de advocacy ou de formulação de políticas públicas. Há, claramente, excesso de centralização por parte dos tomadores de decisão, que viraram as costas para as demandas sociais ao emudecer as ferramentas e meios de controle social na formulação e avaliação das políticas públicas.
O governo aceita se relacionar apenas com instituições de caridade e de prestação de serviço, desde que sejam “de direita” e conservadoras, ou seja, desde que haja coincidência de agenda e de visão de mundo para legitimar as ações governamentais.
A interação com os demais poderes é errática e conflituosa, com provocações e pouco respeito pela autonomia do Poder Legislativo e do Judiciário. Só não houve crise grave, ainda, porque os titulares dos outros poderes temem colocar em risco a agenda liberal e fiscal, que eles também defendem, embora discordem frontalmente da postura autoritária e da pauta cultural (comportamentos, costumes etc.) do governo.
A interação com o mercado também não é das melhores, porém, como o governo fez sua a agenda do mercado, não é conveniente confrontá-lo, pelo menos enquanto estiver sendo útil ao colocar em prática as medidas de interesse desse segmento, especialmente as reformas liberais e fiscais, como privatizações, desregulamentação da economia, abertura comercial, afrouxamento da fiscalização trabalhista e ambiental, redução de gasto público e revisão do papel do Estado na economia e na provisão de bens e serviços à população, entre outras.
A crise de governabilidade se expressa, como regra, em três dimensões: 1) por excesso de demandas ou por incapacidade do governante de atender as demandas da população; 2) por questões ético-morais do governante ou questionamentos de legitimidade por parte da sociedade; e 3) por distribuição distorcida do poder ou favorecimento a determinados grupos em detrimento de outros. E as três estão presentes na atual conjuntura governamental.
Na primeira dimensão, como o governo não dispõe de recursos nem reúne capacidade institucional e operacional, como demonstrado anteriormente, logo estará caracterizada a incapacidade de atendimento ou de resposta às demandas da população.
Na segunda dimensão, como o governo não é capaz de converter essas demandas em políticas públicas satisfatórias, logo terá sua legitimidade questionada, cuja consequência natural será o enfraquecimento político de seus principais integrantes, em especial do presidente da República.
Na terceira dimensão, como o governo favorece apenas o mercado na interação ou na distribuição de poder, mantendo relação conflituosa com a sociedade e com os demais poderes, logo terá deslegitimada sua autoridade, e a partir daí sua liderança entrará em colapso.
O governo Bolsonaro, como se vê, caminha a passos largos para uma crise de governabilidade. O presidente, por seu estilo confrontador e autoritário, é mais temido do que respeitado. Em situações como essas, o desgaste e a deslegitimação são apenas questão de tempo. Entretanto, caso não haja uma rápida mudança de estilo, por iniciativa própria ou por ações dos outros poderes e da sociedade, capazes de interromper essa insensatez que estimula a formação de crises – algo corriqueiro ao longo desse primeiro semestre –, o risco é que o país, além de paralisado, fique sem condições (meios e recursos) de recuperar a capacidade de o Estado cumprir sua missão de combater desigualdades regionais e de renda, bem como de promover políticas de inclusão, sabidamente a única condição para a continuidade da paz social num país tão complexo como o Brasil.
Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, diretor licenciado do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) e sócio-diretor da Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais