Nos dias 13 e 14 de agosto, a capital federal acolheu dezenas de milhares de mulheres de todo o país e representantes de organizações sindicais e de defesa dos direitos das mulheres de outras 25 nações. O motivo da reunião foi a VI Marcha das Margaridas, com o lema “Margaridas na luta por um Brasil com soberania popular, democracia, justiça, igualdade e livre de violência”. No dia 13 ocorreu também a I Marcha das Mulheres Indígenas, com o tema “Território: nosso corpo, nosso espírito”, que reuniu mais de 3 mil mulheres de cerca de 120 povos indígenas brasileiros.
Organizada pelas mulheres rurais da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), a Marcha das Margaridas teve sua primeira edição em 2000, seguida de 2003, 2007, 2011, 2015 e finalmente 2019. Diferentemente das edições anteriores, que contaram com apoios de outras organizações, desta vez a marcha foi efetivamente construída pelo conjunto dos movimentos do campo, das florestas e das águas do Brasil. A gravidade do momento presente e a urgência de organizarmos a resistência ativa foram aspectos determinantes para esta sinalização de unidade, que resultou no maior ato de rua em Brasília desde o início do governo de Jair Bolsonaro.
Outra diferença em relação aos anos anteriores tem a ver com o fato de que desta vez as mulheres não foram recebidas pela Presidência da República. Não entregaram a tradicional carta de reivindicações de programas e políticas públicas de apoio à agricultura familiar e à reforma agrária. Houve uma solenidade no Congresso Nacional no dia 13, mas o momento fundamental foi mesmo a caminhada que começou no Parque da Cidade e seguiu por toda a Esplanada dos Ministérios em direção ao gramado em frente ao Congresso. As mais de quatro horas de marcha demonstraram a força das trabalhadoras rurais brasileiras e sua capacidade de sensibilizar e construir alianças com trabalhadoras urbanas, que também se fizeram presentes em grande número, vindas de todo o país.
A paisagem da Esplanada remetia, todo o tempo, ao desmonte do Estado brasileiro que vivemos desde o golpe contra a presidenta Dilma. No que diz respeito diretamente às Margaridas, lembramos da extinção do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Secretaria de Política para as Mulheres (SPM) no primeiro dia do governo Temer, quando este ainda era interino. Um Diário Oficial da União extraordinário daquele 12 de maio de 2016 sumariamente extinguiu dois dos órgãos que promoviam políticas de apoio às mulheres e aos povos do campo, das florestas e das águas. De lá para cá (quase) todas as políticas foram extintas, como também os Conselhos que formulavam e avaliavam as políticas. O fim de um período iniciado ainda na Constituinte e que teve como alguns de seus marcos a criação do MDA – em 1996, como resposta ao Massacre de Eldorado dos Carajás –, a criação da SPM em 2003 e toda uma série de políticas e ações voltadas ao reconhecimento de diversidade dos sujeitos do campo e à promoção do desenvolvimento rural sustentável no Brasil.
A marcha homenageia Margarida Maria Alves, sindicalista rural de Alagoa Grande/PB, assassinada em 1983. Infelizmente a história de Margarida Alves não é exceção no Brasil e segue se repetindo até os dias de hoje. A brutalidade da desigualdade brasileira, que tem como uma de suas principais raízes a concentração fundiária, é irmã da violência de Estado e civil que mata indígenas, quilombolas e trabalhadoras/es do campo todos os dias, como mostram os levantamentos sobre violência e conflitos no campo organizados pela Comissão Pastoral da Terra. Dados do Censo Agropecuário de 2017 mostram que segue crescente a concentração da terra no Brasil. Desde o último censo, de 2006, as propriedades com mais de 1 mil hectares passaram de 45% para 47,5% e cresceram em número (mais de 3.287) e área ocupada (mais de 16,3 mi de ha). Os latifúndios com mais de 10 mil hectares são cerca de 2,4 mil fazendas no país (0,04% das propriedades rurais do país), as quais ocupam 51,8 milhões de hectares e 14,8% da área produtiva do campo brasileiro. O contraste com as pequenas propriedades é gritante. As terras com até 50 hectares são 81,3% do total de estabelecimentos agropecuários, ou seja, mais de 4,1 milhões de propriedades rurais. Juntas, elas somam 44,8 mi de ha, o que equivale a somente 12,8% do total da área rural produtiva do país.
Diante desse contexto, a Marcha das Margaridas é um grito de denúncia contra a desigualdade da distribuição da terra e contra todas as formas de violência, em especial contra as mulheres. É um movimento que luta pela soberania nacional e popular, pela educação do e no campo, pela soberania alimentar e nutricional, contra os agrotóxicos e pela saúde de quem planta e consome os alimentos, luta em favor da agroecologia e de um modelo de desenvolvimento voltado para a promoção da vida humana e da natureza. Expressa a diversidade do rural brasileiro, em termos de bioma, fauna, flora e sobretudo em termos dos sujeitos. Exprime a diversidade das mulheres rurais do Brasil, cada uma a sua maneira, dignamente empunhando essa luta coletiva que é tão utópica quanto concreta: a luta por terra e justiça social.
Luiza Dulci é militante da JPT, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo. É economista (UFMG), mestre em Sociologia (UFRJ) e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura (UFRRJ)