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O líder revolucionário acertou e errou. Sua coragem nos anima e nos ensina. Seus erros nos sinalizam rumos hoje, quando há a exigência de procurarmos unir o máximo de forças para derrotar o espectro fascista a nos rondar

Este texto foi a minha participação no simpósio 100 anos da Internacional Comunista1. Os organizadores do encontro de alguma forma buscaram um gancho para a discussão em torno de Marighella porque, de fato, as relações do revolucionário com a III Internacional são tênues. Vamos à tentativa de estabelecer esses vínculos, escassos sejam, e com isso voltar ao pensamento e à prática do revolucionário indômito.

A III Internacional tem história curta, e de forte impacto. Nasce sob a inspiração da Revolução Russa, com a missão de impulsionar a revolução socialista no resto do mundo. Não tem trajetória linear, e nem é marcada por muitos sucessos.

Na primeira fase, sob Lênin e Trotsky, há a tentativa de levar à frente a revolução na Europa, de modo especial na Alemanha. A revolução recusava-se a despontar na Europa. E outra fase, grosso modo, quando se inicia o domínio do aparato construído sob Stálin.

A admissão da política do “socialismo num só país” fez a URSS voltar-se para dentro e num primeiro momento advogar para a III Internacional a política esquerdista de “classe contra classe” igualando social-democratas e nazistas para só depois, com a evidência do crescimento do nazismo, defender a ampliação das alianças para esse enfrentamento.

Encerra suas atividades em 1943, quando já era possível vislumbrar uma vitória das forças aliadas, decisão comemorada pelas forças de direita no mundo, tentativa de facilitar negociações vindouras com os países capitalistas.

Stálin queria demonstrar boa vontade, ao eliminar formalmente um centro condutor das lutas proletárias, pretensamente dando autonomia aos partidos comunistas de todo o mundo.

A III Internacional deixou, não obstante, marcas profundas para a esquerda mundial. Talvez caiba lembrar, não obstante a cessação de suas atividades em 1943, a continuidade da hegemonia da União Soviética como uma espécie de centro condutor dos partidos comunistas. Não nos termos iniciais. Mas seguia sendo uma espécie de farol.

Poucos serão os partidos comunistas a pensarem de modo original, a criar teorias próprias para seus países. Alguns o farão, como exceções. A interpretação da realidade era quase ditada desde a III Internacional, de modo esquemático, independentemente de situações tão variadas de cada país. E continuaria após a sua extinção.

A visão dos modos de produção, própria de um marxismo dogmático, fortemente presente na III Internacional, sobretudo sob o stalinismo, levava os partidos comunistas a enquadrarem suas alianças, diminuírem a presença das classes trabalhadoras, fortalecerem as chamadas burguesias nacionais, traço a perseguir ainda muitas forças de esquerda mundo afora, pretensão de ressuscitar burguesias revolucionárias, malgrado o fim da União Soviética, a evidenciar a cultura impregnante da Internacional.

Carlos Marighella só pode ser pensado a partir da história do movimento comunista mundial e de modo especial da trajetória do PCB.  Marighella é um comunista.

Se é verdade que cada ser humano tem uma história singular, não a faz segundo sua livre determinação. Ele a faz cercado, determinado pelas estruturas econômicas, determinado pelo seu tempo, pelas circunstâncias que o rodeiam. Sob tais determinações, faz suas escolhas.
Marighella são muitos: é preciso dizer. E são muitos porque longa a sua história.

A influência da III Internacional sobre ele só pode ser pensada a partir do próprio PCB, da força hegemônica exercida sobre o PCB pela entidade.

Afinal, Marighella só entra para o PCB, às vésperas da chamada, não sei se propriamente, Insurreição de 1935, operação compartilhada pela própria Internacional, com Prestes já no partido, e com papel essencial. Disso, Marighella de nada sabia.

Soube depois: fora dizimada. Um dos participantes enviados pela Internacional foi levado à loucura, Arthur Ewert, tanta a tortura. A própria companheira de Prestes, Olga Benário, mandada aos fornos crematórios de Hitler. Ele, encarcerado até 1945. Uma derrota e tanto.
Iniciativa tipicamente militarista.

Uma Internacional incapaz de apreender as realidades nacionais, quem sabe levada a isso pelo próprio Prestes, de cuja visão militar não devia ainda ter se livrado.

Incapazes, Prestes, o partido e a Internacional de analisar a correlação de forças do país. Talvez a maior responsabilidade pela iniciativa seja do próprio PCB, cujos informes devem ter contaminado o pensamento dos dirigentes da entidade.

O partido, depois disso, fará contatos com a III Internacional no início de 1942, com João Falcão e Arruda Câmara, em Buenos Aires, fase de um partido destroçado. Logo depois, virá a dissolução.

Três Marighellas

O primeiro Marighella entra na luta em 1932, ainda sem ser propriamente um comunista. É já a revelação do espírito indômito, da coragem, da insubmissão, do revolucionário.

O segundo, as primeiras iniciativas militantes na Bahia, depois, já no Sul, preso no Rio de Janeiro, em seguida, São Paulo. Dessa última prisão, só sai em 1945, com a anistia, comunista amadurecido, integrando Comitê Central do PCB a partir de decisão da Conferência da Mantiqueira de 1943, no processo de reorganização do partido, quase destroçado depois de 1935.

O terceiro, a partir daí, experimenta as oscilações do próprio PCB, ele oscilando junto.

Depois das cassações do registro do partido e dos próprios parlamentares comunistas, na segunda metade da década de 1940, o PCB mergulha no esquerdismo com o “Manifesto de Agosto de 1950”, inclusive com proposição de luta armada.

Marighella só se insurge, nessa fase, de modo sereno e firme, quando, na direção do movimento sindical do partido em São Paulo, pretendia fazer alianças sindicais mais amplas e a política do “Manifesto de Agosto” as impedia.

Durante todo esse percurso, e o partido seguirá sempre nessa toada, defende a revolução anti-imperialista, antifeudal, sempre com a participação da burguesia nacional, revolução democrático-burguesa, primeira etapa da caminhada em direção ao socialismo, o chamado caminho da revolução em duas etapas.

Esse terceiro Marighella, cada vez mais integrado ao PCB, comunista convicto, enfrentará o terremoto das revelações do XX Congresso, realizado em fevereiro de 1956, no qual surgem os chamados crimes de Stálin.

Marighella chora, sofre, o seu mundo desaba. Vacila. Por um momento, quer se aliar aos renovadores. Mas, por fim, fica ao lado de Prestes, cuja orientação é de abafar a discussão surgida depois das revelações do XX Congresso, cuja intensidade já era grande devido à gravidade delas.

Marighella não quer ênfase na discussão dos erros cometidos pelos dirigentes do partido. Estimula os desiludidos a seguir em frente, nada de sair. Envolvido pela autoridade de Prestes.

Há a exclusão em 1957 de vários dirigentes da Executiva, a dar argumento para o surgimento do PCdoB em 1962.

Acontece a ascensão de Giocondo Dias como o número dois em substituição a Diógenes Arruda Câmara. Marighella chega à Executiva, e mais, ao secretariado do Comitê Central, organismo condutor do partido no dia a dia.

Na crise, cresce, apostando no partido, nunca contra ele.

Esse terceiro Marighella irá ainda acompanhar a “Declaração Política de Março de 1958”, uma virada estratégica do partido, de confiança na democracia, cujo processo era inexorável na crença exposta pelo documento, defendendo a via pacífica para as transformações do país, mantendo a ideia da revolução em duas etapas, a rigor a primeira reação ao “Manifesto de Agosto de 1950”.

A principal lacuna era a de não anunciar quaisquer políticas de preparação para os duros embates que inevitavelmente viriam, que vieram, e que pegaram o partido e o povo de surpresa em 1964, desprevenidos.

Marighella, o terceiro, começa a se inquietar em 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros, quando sentiu o partido despreparado para conjunturas difíceis, como era aquela.

Em 1962, na IV Conferência Nacional, pedia mais ousadia, mais confiança nas massas populares, evitar contê-las, temê-las. O partido esvazia suas atribuições. Talvez nem o próprio Marighella tivesse noção da mudança a se iniciar em seu pensamento, cuja explosão se daria no pós-64.

E viria o golpe de 1964. Derrota fragorosa de toda a esquerda, fim da experiência democrática iniciada em 1946. Os dois últimos Marighella não se distanciam das concepções oriundas da III Internacional, grosso modo, nem das diretrizes advindas do centro dirigente da URSS. O partido e ele estavam ainda impregnados daquela cultura política.

O PCB formulara uma concepção de alguma originalidade com a “Declaração Política de Março de 1958”. Intelectuais da densidade de Mário Alves, Jacob Gorender, Armênio Guedes e Alberto Passos Guimarães estavam entre os elaboradores do documento. A democracia passava a ser defendida em meios termos. Especulação: já havia indícios de apontamentos gramscianos, sobretudo pelo uso constante do conceito de hegemonia.

Mas, ficou a meio caminho, já o dissemos. Não houve a preparação para a dura luta de classes a vir, e mesmo para aquela já em andamento. O partido não foi tensionado o suficiente para tempos de acirramento da luta de classes.

1964 e a virada

É com o golpe a revolução teórico-prática de Marighella. Uma profunda revolução. Era o quarto Marighella, o definitivo, o último. Certamente, vinha matutando, assuntando, refletindo desde 1961. Mas, tinha relações fortíssimas com o partido. O rompimento não era fácil. Fora sua vida desde 1934. Três décadas. Mas, era chegada a hora.

Muito já se discutiu sobre Marighella. Muito há a discutir. Ele é o homem do ardor revolucionário. Da coragem indômita. A permanecer na história como exemplo. Nunca deixar de lutar, resistir sempre. Apontou, como poucos, o burocratismo, a incapacidade de buscar respostas para conjunturas complexas, próprios do velho PCB. Ele o conhecia por dentro. Não podia sequer negar tivesse ele próprio cometido erros lado a lado com o partido. Vai, a passos cada vez mais acelerados, caminhando para o rompimento com o partido. Dele, nunca nos esqueceremos.

O quarto Marighella, ao apontar os graves equívocos do PCB, também errou, e muito. Esses erros do quarto Marighella trataremos aqui.
Errou quando acreditou ser possível caminhar sem partido. Quando alimentou a fé na ação pela ação. Quando apostou enfaticamente no voluntarismo mais exacerbado.

Claro, Florestan Fernandes assinala isso no artigo “Carlos Marighella: a chama que não se apaga”: um partido novo, quisesse ele construí-lo, levaria tempo, ia requerer uma difícil e longa construção.

Não, nada de partido. Firme nessa convicção. Preferiu pensar e construir uma organização clandestina bem estruturada, flexível, móvel, de vanguarda para agir, praticar a ação revolucionária constante e diária, capaz de estimular espírito de iniciativa aos militantes, libertos devessem estar de qualquer espírito burocrático e rotineiro, não mais devessem esperar pelos chamados assistentes, nem ficar de braços cruzados aguardando ordens.

Agir, agir e agir.

Se olharmos com atenção para tais objetivos, podemos falar de uma espécie de núcleo central de proposta mais afeita a uma unidade guerrilheira. De alguma forma era. A guerrilha é a parteira da “vanguarda revolucionária brasileira”, ele dirá sem rodeios.

Não quis esperar, não quis na maturidade começar essa construção, a dura construção de um novo partido, reclamou os direitos da impaciência, e isso foi erro brutal.

Apolônio de Carvalho enxergava em Marighella um quê de anarquista a partir do pós-1964, revolucionário incapaz de se submeter às normas clássicas da militância, aquelas normas ditadas, de uma forma ou de outra, pela III Internacional.

Foi vitimado, diz ainda Florestan Fernandes, por essa vulnerabilidade central: a de recusar a construção de um partido.

Nesse quarto Marighella, vamos localizar a ruptura definitiva com a III Internacional. Durante décadas, não obstante o fim da III Internacional em 1943, ele esteve sempre marcado pelo espírito do tempo inaugurado por ela, espírito, cultura mantidos pela URSS, repassados aos partidos comunistas.

De 1964 em diante, é preciso dizer isso, Marighella foi tomado por outro espírito do tempo, marcado pelo debraysmo, pelo “Revolução na Revolução”, pelo foquismo, pela visão da revolução realizada por um punhado de homens e mulheres corajosos, bastava isso e a revolução se realizaria.

Régis Debray, ele, Che Guevara e tantos outros revolucionários e teóricos interpretaram equivocadamente a Revolução Cubana, cujo desenvolvimento não esteve fundada tão somente nos guerrilheiros de Sierra Maestra.

Foi episódio histórico muito mais amplo, mobilizou a classe trabalhadora cubana e foi a última fase de um processo revolucionário vindo desde o final do século 19 ao menos.

Os cultivadores do direito à impaciência não compreenderam a nova realidade.

A via militar revolucionária, depois da Revolução Cubana, se mostraria frágil sob o capitalismo dependente da América Latina, como diz Florestan Fernandes, cuja voz sempre se levantou na defesa do revolucionário encarnado em Marighella, e se diz isso para não imaginar haja da parte dele qualquer tentativa de desqualificação quando elabora a crítica.

Marighella não compreendeu: nos termos da condução da luta propostos por ele, era impossível fugir ao cerco estratégico imposto pelo inimigo. E, quando deu por si, já estava aprisionado no cerco tático.

Em nenhum momento pensou em jogar a ALN na luta de massas, cujo desenvolvimento, na visão dele, devia servir como celeiro de recrutamento de quadros para a luta armada. No movimento estudantil, vai buscar os seus principais militantes e prepará-los para a guerrilha urbana. Apenas para isso, nada de luta de massas.

Entramos, aqui, em outra discussão, no caso de Marighella indispensável.

Esclareço minha posição: a luta armada, nas condições do Brasil de então, considerada a correlação de forças, era um equívoco. Podia nos levar, e levou, a um massacre, e aí o pau que dava em Chico dava em Francisco. A ditadura não pretendia preservar ninguém da esquerda, e não preservou.

Como tese, como possibilidade, a luta armada só poderia ocorrer com intensa, ampla participação popular, com disposição do povo para pegar em armas, o que obviamente não estava no horizonte.

Parece indiscutível: a ditadura só poderia ser derrotada pela ampla mobilização das massas populares, e o foi. É discussão para outra ocasião, mas importante fixar o parâmetro do autor.

Bem, mas para ficar nos termos propostos pela visão foquista particular do processo brasileiro propostos pela ALN tudo indicava a prioridade da deflagração da guerra de guerrilhas no campo. O campo seria o elemento detonador da luta revolucionária. É da teoria do foco.

O PCdoB, com outra teoria, fundada na Revolução Chinesa, na ideia do cerco das cidades por meio da luta no campo, levou às últimas consequências a teoria do foco com a guerrilha do Araguaia.

A ditadura foi impiedosa com aquela experiência. Demonstrou-se o quanto era inexequível a proposta.

Naquele momento, era essa a proposta da ALN, e voltada mais ou menos à mesma região. Marighella mudou o rumo.

Já foi dito, já disse isso em meu livro sobre ele, mas não custa insistir, por necessário. Isso tem sido pouco destacado, subestimado nas incontáveis análises sobre o papel do revolucionário.

Não foi apenas a demora nas cidades em decorrência do círculo vicioso de fazer expropriações de variada natureza para sustentar a infraestrutura da Organização, manter os aparelhos, substituí-los quando das constantes prisões. Não, não se tratou disso.

Marighella passou a dar prioridade à guerrilha urbana – essa é a questão. Não se está dizendo da correção ou não da estratégia de seguir para o campo. É que a guerrilha urbana veio para o centro da atuação da ALN.

Isso significava trazer a luta para um campo de atuação cujo território era muito mais conhecido pela repressão e implicar num ataque fulminante da ditadura, podendo chegar rapidamente ao seu comandante máximo, como chegou.

A prioridade militar-urbana fica clara já quando da estruturação do primeiro Grupo Tático Armado (GTA) em 1968, e se consolida com a publicação do “Pequeno Manual do Guerrilheiro Urbano”, em junho de 1969, tentativa de situar de forma detalhada e sistemática a guerrilha na cidade.

Ação, sempre ação, melhor enganar-se agindo do que não agir para não se enganar. Atirar e apontar são para o guerrilheiro urbano como a água e o ar para o ser humano. O manual continha tais exortações.

Marighella acreditava fortemente na atuação dos grupos de fogo. Um militarismo exacerbado. Com seus sem-número de ações, os grupos de fogo podiam fazer vacilar o triângulo de abastecimento do sistema do Estado brasileiro – Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte, e cuja base era o eixo Rio-São Paulo, “sobre o qual repousa o gigantesco complexo industrial-financeiro-econômico-político-cultural-militar-policial que detém todo o poder de decisão do país”. Acreditava poder enfraquecer o sistema de segurança e colocar a ditadura na defensiva.

Tinha convicção de poder aumentar progressivamente a agitação e a ação da guerrilha urbana, ela no centro sempre, com uma série imprevisível e atordoante de ações. Criar um ambiente intenso e tenso de guerra nas cidades para só depois implantar a guerrilha rural, adiada sine die, no entanto.

Vamos insistir: tudo isso se dava numa conjuntura da mais ampla radicalização da ditadura, do desenvolvimento acelerado de seu aparato repressivo, da criação da Operação Bandeirante (Oban, do fortalecimento dos DOI-CODIs, de uma impressionante escalada de violência, mortes, desaparecimentos.

Tudo numa situação política de defensiva política, de isolamento inegável da esquerda brasileira, de toda a esquerda. Hora de recuo, e tentar reorganizar as forças, compreender a correlação de forças absolutamente desfavorável às esquerdas, e pouco importava fosse a favor da luta armada ou não.

Todas as forças de esquerda eram alvos da repressão violenta da ditadura, agora esmerando-se na inteligência e apurando seus métodos de terror, a crescer numa proporção assustadora.

Marighella, incontido na sua pressa revolucionária, não entendeu isso. Não chegou nem perto de uma tentativa de analisar a real correlação de forças. Prevaleceram o voluntarismo, a impaciência, sustentadas por coragem inigualável. A base teórica sobre a qual se assentavam suas concepções: o castro-guevarismo, como denominado por ele.

No Manual, fala em marxismo-leninismo, aqui adereços sem serventia prática, declaração de princípios. Nem marxismo, nem leninismo – ao menos quanto à proposta de levar à frente a guerrilha urbana, estranha a um e a outro.

Volto: a Revolução Cubana não pode ser reduzida à simplificação realizada naquela conjuntura por alguns defensores da luta armada no Brasil. Não pode ser alicerce do foquismo. Debray, sim. Artífice e estimulador da teoria do foco.

Como, com sua ação, o guerrilheiro Che Guevara, talvez, fosse no espírito o grande estimulador de Marighella. Ainda nos limites da proposta de Marighella, há de se reconhecer nela alguma originalidade. Era uma teoria do foco aplicada às cidades. Acreditava na guerrilha urbana como impulsionadora da Revolução, como rastilho de pólvora, como capaz de acossar a ditadura, colocá-la na defensiva.

As cidades, muito grandes devido ao acelerado processo de urbanização, se constituíam num campo de luta estratégico, onde se acumulava força. Não era apenas um elemento tático a fustigar o inimigo. Era uma estratégia capaz de colocá-lo na defensiva.

Essa compreensão, fundada na opinião de Gilney Amorim Viana, joga luz sobre a concepção de Marighella. Essa concepção, a da natureza estratégica das cidades, provocou o adiamento da implantação da guerrilha rural – a não concretização da ida ao campo é um fato.

O foco guerrilheiro no campo, ou os vários focos guerrilheiros, ficou para outro tempo, e esse outro tempo não chegou. Chegasse, o foco guerrilheiro teria chances? Isso já foi respondido, não pelo autor, pela história. Não teria.

Viana considera outro aspecto. Marighella tinha consciência de que o campo brasileiro era muito diferente do chinês. Pelas mais variadas razões, a preparação de uma base camponesa da guerrilha demoraria muito. Só teria força a longo prazo. Assim, as cidades se constituíam naquele momento na área de luta essencial.

O fato é que a ALN se militarizou inteiramente, tornou-se uma organização militar, totalmente afastada de qualquer trabalho de massas, e esse teria sido, na visão de Viana, um dos erros estratégicos centrais.

Para pensar: corrigisse o rumo, seguisse no trabalho militar e fizesse a combinação com o trabalho de massas, possível fosse, mudaria alguma coisa no processo revolucionário? Não creio.

Caminho com Jacob Gorender: a linha política geral estava errada, e uma eventual dedicação de alguns militantes ao trabalho de massas não mudaria nada no essencial.

O erro era de fundo – a estratégia foquista baseada na cidade. Estivesse baseada no campo, se foquista, não seria diferente, insista-se.
Marighella era um obstinado e, por isso, quem sabe, persistia em seus erros de avaliação. Em setembro de 1969, a dois meses de seu assassinato pela repressão, concede entrevista à revista Front, francesa, a última de sua vida. A novidade representada pelo surgimento da ALN é a ação, tudo nasce da ação, a vanguarda, os dirigentes. Nada de criar novo partido. A unidade dos diversos grupos revolucionários nasceria da prática da guerra revolucionária em curso no Brasil. Começar pela guerrilha urbana porque as cidades reúnem as condições objetivas e subjetivas exigidas para desencadear a guerrilha com êxito, enquanto a situação no campo é claramente menos favorável. Aqui, o pensamento de Marighella, revelado à revista.

Mais: a experiência cubana foi determinante para ele, especialmente a ideia de um pequeno grupo de combatentes como detonador do processo revolucionário. Estava sendo criado um clima de rebelião no País e os revolucionários já haviam conseguido a cumplicidade da população. Ele acreditava na gestação acelerada de um clima de rebelião. Marighella raciocinava, pensava sobre um país imaginário. O pensamento desejoso o guiava.

A ditadura só viria a ser derrotada em 1985. A derrota veio como consequência da mobilização popular, a maior delas a experimentada pelo movimento das Diretas Já.

Derrotado, foi o elemento central a apressar o fim de um regime de terror.

As guerrilhas rural, representada na Guerrilha do Araguaia, dirigida pelo PCdoB, e urbana, dirigida por Marighella, foram derrotadas, esmagadas de modo cruel, violento, e as ditaduras nunca são diferentes quanto a seus inimigos.

Resta tirar lições.

Não há atalhos na luta política. A luta de classes exige participação das classes. Um punhado de homens e mulheres corajosos, destemidos, é necessário em todos os processos revolucionários.

No entanto, fora de partidos e de movimentos de massa amplos, distante das classes trabalhadoras, é invariavelmente aniquilado.

Num texto sobre a última fase do pensamento de Marighella, Florestan Fernandes faz ao final uma interrogação histórica apropriada sobre a guerrilha pensada por Marighella. Como dar vida à guerrilha num país com a extensão territorial do Brasil, com a dispersão dos trabalhadores e a concentração de poder e riqueza, sem condená-la a um fim trágico?

Tendo em vista os estratos sociais no poder, dirá Fernandes, a guerrilha interessava diretamente à ditadura militar. Graças à guerrilha, incapaz naquela quadra de ameaçar o regime, “foi possível estender e aprofundar a repressão, intensificar a opressão e criar no Brasil uma situação catastrófica, o que se concretizou após a edição do AI-5 e a posse da Junta Militar”.

A guerrilha era necessária – conclui o sociólogo. Não aparecesse pela esquerda, teria de ser criada pela direita precisamente para que “fossem manejados a repressão, opressão, destruição e o massacre em massa de todos os dissidentes capazes de ir à luta pela derrubada daquele regime odioso”. Uma conclusão impiedosa, e necessária.

Não se faz uma discussão sobre os erros sem deles tirar lições para a atualidade. Não há atalhos possíveis para derrotar o inimigo. Sem a participação ampla do povo nada se faz. A coragem é essencial, mas não suficiente. O voluntarismo é sempre pecado mortal. Como a impaciência. Como o esquerdismo, doença infantil do comunismo.

Quando ouço comparações entre o povo brasileiro e outros povos com um quê de lamento pela bravura dos outros, submissão da nossa gente, percebo a inútil impaciência e a inutilidade de tal reflexão.

Cabe aos partidos de esquerda sintonizar-se com a classe trabalhadora em sua nova fase, completamente distinta daquela outra, em que nos baseávamos numa classe operária fabril. Chegar até o povo uberizado, terceirizado, do trabalho intermitente, do empreendedorismo, desempregado, compreender seus sentimentos, sua cultura, aprender com ele, estabelecer-se lado a lado, para então caminhar para a construção de um novo tempo.

Devemos ter pressa. Por tudo. Sem nunca, no entanto, caminhar distante do povo brasileiro.

*

Da trajetória de Marighella, para honrá-lo, nos incumbe lembrar a coragem, a capacidade de lutar, a coerência militante no partido, a disciplina, a resistência na prisão, o ficar calado na tortura, a disposição teórico-prática de romper com as estruturas burocráticas do PCB, de apontar a necessidade de ousar mais na luta contra a ditadura.

E discutir os seus erros, e também eles, nos sinalizam rumos nos dias de hoje, quando há a exigência de procurarmos unir o máximo de forças do povo brasileiro para derrotar o espectro fascista a nos rondar.

Marighella acertou e errou. Como qualquer revolucionário. Sua coragem nos anima e nos ensina.

Da ditadura, cuja fúria e covardia assassina o vitimaram no dia 4 de novembro de 1969, nos lembraremos sempre com indignação e nojo. Dele, sempre com respeito e admiração.

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Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (v. I), entre outros