A libertação de Lula é um acontecimento de repercussão mundial. Aqueceu os corações de milhões de brasileiros. Despertou novas esperanças na esquerda de todo o mundo. O significado dessa saída da prisão não será apreendida tão rapidamente. Registro: Lula provou estar certo. Não cabia, como tantos propuseram, asilar-se numa embaixada, como não era acertado resistir em São Bernardo no dia 7 de abril de 2018, provocando, quem sabe, um morticínio. Lula sabia: falaria de um jeito ou outro ao povo brasileiro e ao mundo, lutando por sua inocência, e um dia a verdade surgiria, transparente, seus algozes desmascarados, pequenos mentirosos, incapazes de apresentar quaisquer provas, até porque não existiam.
A liberdade não veio como um raio caído num dia de céu azul. Dependeu da resistência de parcelas significativas do povo brasileiro, dos de baixo. Da impressionante tenacidade dos militantes e das militantes da Vigília Lula Livre que durante os 580 dias de sua prisão saudavam-no com um bom dia, uma boa noite. O presidente sabia com isso não estar só. Isso lhe deu forças para resistir. Essa vigília, notável por sua abnegação, encarnava o sentimento de milhões de brasileiros, e Lula soube reconhecer isso. O primeiro encontro ao sair da prisão foi com as centenas de pessoas do bom dia, boa noite, a quem agradeceu emocionado a tanta disposição política e tanto amor.
Razões da volta às ruas
Os fatores a levá-lo de volta às ruas são muitos. A luta de parlamentares de tantos partidos, de personalidades das mais variadas origens, de intelectuais responsáveis por uma quantidade impressionante de livros, artigos, ensaios, retratando os crimes da Operação Lava Jato e a injusta prisão. A campanha mundial pela sua libertação. O trabalho impressionante de seus advogados, atentos a tudo, prontos a todas as medidas no campo jurídico. Os movimentos sociais, com sua diversidade. E destaco, por obviedade, o esforço do PT de modo especial. Sozinho, o partido não era nada. Sabia disso. Soube, primeiro, manter acesa a luta por Lula Livre. Segundo, ampliar o leque da aliança para tal luta.
Lula tinha contra si a mídia empresarial brasileira. Ela trabalhou por sua prisão. Também ela cultivava impedir sua chegada à Presidência da República, razão essencial do encarceramento dele. Havia uma santa aliança entre mídia, Judiciário, Forças Armadas e parlamento para embargar Lula de qualquer maneira. Essa santa aliança sabia: deixassem-no solto e ele se elegeria. Foi uma decisão política fria, calculada, executada pela república de Curitiba, mero joguete dos EUA, dos capitais internacionais, do capital nacional. Bolsonaro é resultado dessa decisão, foi eleito na esteira dela.
Acreditou-se na morte de Lula. Metafórica, mas morte.
Preso, estaria inteiramente fora do jogo político. Esmagado pela dureza da prisão, não teria forças para nada. Não conheciam Lula. Não é preciso escrever muito para demonstrar ter ele ganhado a liberdade mais forte do que antes. Quando lhe deram a palavra, quando a Constituição foi respeitada e ele pôde falar à imprensa, tornou-se referência mundial e nacional, ocupando um espaço político inimaginável para um prisioneiro. Cada vez mais, afirmou-se como preso político, e sempre ditou rumos para a oposição na linha de juntar todos os que se opunham à retirada de direitos sociais, ao ataque às liberdades, à supressão de nossa soberania.
Entre os fatores a contribuir para sua libertação está sem dúvida o jornalismo. Um tipo especial de jornalismo. The Intercept mostrou à mídia golpista brasileira como deve ser desenvolvida a atividade jornalística. O denunciado antes pelo PT, por todos os partidos de esquerda, por movimentos sociais, por intelectuais, sobre o significado da Operação Lava Jato, revelou-se, está se revelando, numa profusão impressionante de escândalos, de crimes cometidos pela Lava Jato.
Se antes tais revelações apareciam como teorias conspiratórias, apesar de insistentemente defendidas pelos advogados de Lula e pela oposição, hoje aparecem desmascarando Moro e seus comandados, deixando o rei inteiramente nu. Uma parte da mídia empresarial, encostou-se no trabalho do The Intercept, reconhecendo a veracidade de todas as apurações, ainda inconclusas. Gleen Greenwald soube construir alianças antes impensáveis com parcelas da mídia golpista, acertadamente. Toda ela estava atônita. A maior parte continua fazendo de conta que nada acontece.
Foi uma bomba impossível de ser ignorada pelo STF. As revelações desmoralizavam a Suprema Corte, a demonstrar o quanto a Operação Lava Jato manipulava ministros, fazia campanha contra vários deles, manobrava de todas as maneiras para condenar pessoas, especialmente Lula. O STF tornara-se um joguete nas mãos da Lava Jato. Agora, não teve jeito senão decidir, não obstante por margem apertada, a necessidade de cumprir a Constituição e, assim, só admitir a prisão após sentença transitada em julgado. E isso implicou a libertação de Lula.
Rumo político
Ele anunciou em São Bernardo a preparação de um pronunciamento à Nação. Quem sabe, um programa político para a crise. Sabe qual o país recolhido das cinzas do golpe de 2016 e do tempo de governo Bolsonaro. Retrocedemos quase 80 anos quanto a direitos sociais. A miséria se alastra. O desemprego, gigantesco. A precarização do mundo do trabalho, absurda. A uberização se dissemina, revelada por motoboys, por bikeboys, pelo trabalho temporário, pela supressão do emprego formal, pelos sem teto, pela ampliação dos moradores em situação de rua.
A indústria retrocedendo ao final dos anos 1940 quanto à participação no Produto Interno Bruto. A Petrobras sendo destruída, o Pré-Sal sendo entregue às multinacionais, as empresas de infraestrutura destruídas pela Lava Jato, a Embraer vendida à Boeing, a Base de Alcântara entregue à administração americana – ausência de qualquer política soberana, submissão completa aos EUA. Destruir é uma das primeiras tarefas da voragem neoliberal quando chega ao poder. Assim, agiu Temer, assim o faz Bolsonaro.
Não será uma tarefa fácil, a de Lula. Nem se diga dele só, porque não é. Ele próprio não deixa de insistir na atividade coletiva, na junção de forças, na unidade. Mas, ele sabe que encarna a ideia de um país soberano e baseado na igualdade. É inegavelmente a principal liderança do país. Terá o papel de unir os compromissados com a democracia, com as liberdades, com a luta pela igualdade, com o desenvolvimento nacional soberano. De unir países irmãos para essa luta. De difundir a paz no mundo contra a tentativa permanente dos EUA de subjugar povos, fazer a guerra, insuflar e dirigir golpes. E a tarefa se afigura ainda mais complexa quanto a alianças a fazer.
Aquele país do chão da fábrica desapareceu. O mundo do trabalho pulverizou-se, e o desafio é buscar mobilizar, juntar, agregar as multidões espalhadas pelo país, sem direitos, lutando desesperadamente para ganhar o minguado pão de cada dia. Os sindicatos vivendo dificuldades imensas, tanto pelo ataque sistemático sofrido desde o golpe, deixando vulnerável suas finanças, quanto porque vivem uma crise profunda face às mudanças no mundo do trabalho. O fordismo acabou há tempo, e eles ainda não conseguiram se reciclar para enfrentar os tempos novos e difíceis da atualidade.
A burguesia industrial acabou. Não creio tenha hoje qualquer projeto nacional, se teve algum dia. Prefere manipular recursos financeiros a investir na produção. Algum apelo ao capital comercial, quem sabe. Terá ele alguma preocupação com a expansão do mercado interno? Talvez. Mas, topa Lula? Sabe-se da tentativa de Lula pela conciliação no melhor sentido, não está fácil juntar gente. Unir classes sociais com programas tão díspares. Capital financeiro, sem chances. Não quer qualquer projeto sob a liderança de Lula. Não haverá jogo fácil, portanto. Esse cenário, provavelmente, levou-o a uma postura mais radical ao sair.
Novo bloco histórico
O bloco histórico a unir não será mais o mesmo de quando esteve na Presidência da República.
O mundo mudou, e muito. O Brasil mudou.
Lula não acende fósforo na gasolina. Não radicaliza à toa.
Sabe da necessidade de unir os deserdados, de juntar o mundo do trabalho. De chegar às classes médias iludidas, também trabalhadoras, aos trabalhadores rurais, à agricultura familiar, aos operários. Vai procurar chegar ao centro, tão desarticulado, boa parte aceitando acenos da extrema direita. Sabe da existência de setores sociais e econômicos incapazes de embarcar na aventura da extrema direita, menos entre os grandes grupos econômicos, e mais entre médios e pequenos empresários. Há partidos tentando interpretar tais anseios, e Lula irá tentar atraí-los para um programa assentado na democracia.
Tudo isso fará, seguramente. Confiado na sua intuição, na sua capacidade de elaboração, na formulação do PT e dos partidos de esquerda e daqueles partidos aliados de centro, vacilantes estejam.
Uma pedra foi mexida. Lula está nas ruas. É necessário refletir sobre isso, indo além das comemorações. Já se demonstrou o impacto político disso, o significado extraordinário dessa presença, o novo cenário formado, positivo.
Gosto sempre de repetir: fazer como o velho marinheiro que durante o nevoeiro leva o barco devagar.
Pensar na fórmula de Romain Rolland, enfaticamente defendida por Gramsci: pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.
Ter capacidade de analisar o quadro, refletir sobre ele, e em seguida definir as políticas. Vamos combinar: a extrema direita e uma parte da direita não vão descansar. Lula não é inimigo a se desconsiderar.
O ministro Dias Toffoli aconselhou parlamentares a tomarem medidas para derrubar o dispositivo constitucional relativo à prisão somente após a sentença ter transitado em julgado. Isso já está em andamento no Senado. Toffoli votou a favor da Constituição obviamente a contragosto.
E tudo isso tem um nome: Lula. Podia ser chamada PEC Lula a que está em andamento. No Senado, já falam em maioria, não sei.
Creio em maiores dificuldades na Câmara, mas não tenho convicção. O chamado mercado não gosta de Lula nas ruas. O capital financeiro abomina.
Há setores envergonhados da direita a insistirem nos riscos da polarização por causa da libertação dele. Vestem roupagens liberais, mas dizem da confusão causada por ele pelas teses defendidas, da liberdade e igualdade.
Se eliminar o Lula, tudo volta ao normal. Pura mistificação.
A sociedade brasileira é complexa. A emergência do bolsonarismo fez aflorar uma parte defensora de valores racistas, homofóbicos, violentos.
Não foi Lula a fomentar isso. Essa luta político-cultural será travada com a presença de Lula ou sem ela. Polarização tem nome: luta de classes. Nunca deixou de existir.
A extrema direita e os setores de direita atraídos pelo bolsonarismo pretendem eliminar Lula da vida política, e ele não pode ser eliminado a não ser pela violência, pela prisão.
Por tudo isso, pelo ódio visceral alimentado pelo bolsonarismo, sustentado por grande parte das classes dominantes, por detentores de privilégios, creio ser necessário vigilância, dar adeus a quaisquer ilusões, não acreditar na paralisia dos adversários.
O momento na América Latina é de convulsão. Povos em luta revoltados com as políticas neoliberais no Chile, no Equador. O povo argentino dando vitória a Alberto Fernandez e Cristina Kirchner. A esquerda não venceu no primeiro turno no Uruguai, e não será fácil a vitória no segundo. Há uma evidente radicalização da extrema direita, animada, orientada pelos EUA, a desembocar num golpe violento como o da Bolívia. No Brasil, a vitória de Bolsonaro. Os EUA passaram a dar importância ao continente, e todos sabemos como se dá essa importância.
Não vivemos um momento no Brasil de normalidade democrática, não obstante Bolsonaro ter sido eleito.
Há uma espécie de Espada de Dâmocles militar a pairar sobre os destinos do país.
O espectro permanente do Estado de Exceção. Mobilizar multidões, eis nossa tarefa. Chegar ao coração do povo brasileiro. Só que essa não é uma tarefa fácil. Demandará trabalho político-cultural, esforço de persuasão de corações e mentes.
Lula sabe disso. Está certo ao combater o ódio. Está certo também em defender a luta diária. Luta a incluir sua manutenção em liberdade. Ela é parte inseparável da nossa luta pela democracia no Brasil.
Volto a Gramsci. O fascismo, e esse espectro nos ronda em palavras e atos, reflete o medo coletivo. Nessas situações de crise, o velho mundo morre, o novo mundo demora a aparecer, e no claro-escuro surgem os monstros.
Os monstros estão à solta. Matam índios, trabalhadores, camponeses, mulheres, homossexuais, a juventude nas cidades. Às vezes, à luz do dia.
Foram liberados desde cima, milicianos foram estimulados.
Só a nossa mais ampla mobilização pode detê-los. Só ela pode manter Lula na linha de frente de nossas lutas, livre.
Desfrutar a felicidade de Lula livre é nosso direito. Essa felicidade, o privilégio de ter a maior liderança de nossa história nas ruas, para não ser passageira, fugaz, dependerá de nossa capacidade de formar uma frente política a mais ampla possível, chegarmos inteiros às eleições de 2020 e, sobretudo, às eleições de 2022, para então iniciar o trabalho de reconstrução do país.
Nada de ilusões. Lula só continuará em liberdade com a nossa luta, com a luta de todo o povo brasileiro, com a unidade de milhões para resgatar a democracia.
Emiliano José é jornalista e escritor, autor de Lamarca: O Capitão da Guerrilha com Oldack de Miranda, Carlos Marighella: O Inimigo Número Um da Ditadura Militar, Waldir Pires – Biografia (2 vol.), entre outros